Em dezembro de 2015, quando o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, pediu demissão, caiu por terra a última esperança que o mercado tinha de o governo Dilma Rousseff entrar em uma trajetória de disciplina fiscal. Foram dias de Bolsa em queda, dólar em alta e uma nova rodada de revisões de economistas para uma Selic maior, às vésperas do fim de um ano que terminou com retração de 3,5% para o PIB e inflação acima de 10%.

Hoje, o contexto é completamente diferente, mas a recente piora da Bolsa, do dólar e do juros, que juntos formam o que o mercado chama de aperto das condições financeiras, já estão “no meio do caminho” para chegar ao que foi naquele final de 2015, segundo o economista Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional e diretor da Asa Investments, gestora fundada no ano passado por Alberto Safra, um dos herdeiros de Joseph Safra.

Segundo ele, a outra metade do caminho poderá ser percorrida se houver quebra do teto de gastos e se as regras fiscais forem deixadas de lado pelo atual governo, que tem demonstrado estar mais preocupado com as eleições.

“A piora que tivemos naquela época foi o dobro do que estamos tendo agora”, ele afirma, em entrevista ao NeoFeed. “Estamos no meio do caminho, mas podemos andar bem mais na direção da piora. Aí teríamos recessão. Um PIB de zero ou até negativo, caso isso se configure”, diz o economista, que, hoje, projeta expansão de 5% para a atividade econômica em 2021 e 1,5% em 2022.

Apesar de esperar um novo aumento do PIB em 2022 e uma desaceleração da inflação, de 8,7% em 2021 para 3,8% no ano que vem, Kawall não descarta um cenário de estagflação. “Se olharmos a economia no último trimestre, houve queda. E a inflação está acelerando. Ok, achamos que isso é um momento, uma foto do tempo, mas não estamos tão distantes assim”.

O economista, um dos diretores de uma gestora com R$ 260 milhões sob gestão e quatro fundos, também falou sobre o trabalho do ministro Paulo Guedes, reformas, projeções para a Selic, inflação, cenário fiscal e eleições. Confira:

Qual a sua projeção para a Selic?
Nossa visão é que nós vamos ter dois aumentos de 1 ponto porcentual cada para a Selic ainda este ano, para chegar a 8,25% ao ano, e depois mais um aumento de 0,75 pp na reunião de fevereiro. E aí, fechamos o ciclo em 9%.

Quais os fatores que vão levar os juros a esse patamar?
Basicamente, nós vamos calibrando o orçamento (do governo) com as previsões de inflação, para medir o juro que é necessário para fazer a inflação de 2022 atingir a meta (do Banco Central, de 3,5%). A nossa previsão está em 3,8% para 2022, depois de 8,7% em 2021. O Focus está com 4,17% para IPCA para 2022, um pouco acima. A questão da crise hídrica corre em paralelo, para sabermos o que vai acontecer com a bandeira tarifária. Há uma incerteza com isso, sobre a qual a política monetária não atua. E tem os preços de alimentação, que ficaram bem altos em 2021.

E qual o cenário para a inflação do ano que vem?
As primeiras perspectivas de plantio de safra para o ano que vem parecem favoráveis para os preços de grãos e proteínas. Mas é um cenário que está sendo traçado aos 10 minutos do primeiro tempo, porque parece bastante distante. Para não falar do grande problema no momento, que são a alta do preço da energia, do preço do petróleo e do gás natural na Europa. Estamos partindo de preços de energia, mesmo internacionalmente, muito elevados. A preocupação do BC será com os núcleos da inflação, os preços livres, sobre os quais ele consegue atuar, e essa inflação também está rodando muito alta. Talvez não chegue a 10% em 2021, que é o que temos em 12 meses agora, mas ainda em patamares altos. A Selic a 9% parece o indicado para você colocar a inflação do ano que vem mais para 4%, encerrando este ano próximo de 9%.

A velocidade do aperto monetário tem sido razoável? O BC poderia se antecipar?
Poderia. Mas, quando modelamos, a diferença é pequena. Não é muito significativo se ele fizer um aumento de 1,25 pp ou algo do tipo. Não alteraria muito. Já o orçamento, sim. O IPCA de agosto veio muito alto, a 0,87%, e o de setembro ficou em 1,16%. Fizemos esse movimento de projetar a Selic a 9%, mas mantendo um ritmo de 1 pp. Há toda uma discussão, com incertezas e várias variáveis e choques. O BC ir subindo a um ritmo de 1pp já é um ritmo bastante elevado. Ele poderia optar por aceleração, mas não parece ser o plano de voo dele. O mais importante é o final do ciclo: será que é 9%? Mais de 9%? Se o orçamento for o adequado, o ritmo de 1 pp é adequado. Se o orçamento for maior, talvez faça sentido ir um pouco mais rápido.

"O BC ir subindo a um ritmo de 1pp já é um ritmo bastante elevado. Ele poderia optar por aceleração, mas não parece ser o plano de voo dele"

Se as projeções para a Selic têm mudado com rapidez, isso significa que o grau de convicção do mercado é baixo?
Com certeza. Fomos surpreendidos e muito pela magnitude da inflação de 2021, que já chegou a ser 5%, 6%, e agora estamos falando de um número em torno de 10% (em setembro, acumulou alta de 10,25% em 12 meses). A convicção é menor. Mas, na medida em que partimos de patamares muito elevados de alguns preços, e temos limites de renda disponível e poder de consumo, ficamos sempre com a impressão de que acima disso talvez não seja. O grande risco, e não é um risco acima do normal no Brasil, é o político. Vamos entrar em ano eleitoral e o dólar se torna uma variável extremamente volátil. Como você tem agora um repasse muito mais rápido para combustíveis, não podemos descartar um novo choque, vindo do dólar, para 2022.

A inflação cair de 8,7% em 2021 para 3,8% em 2022 não seria um movimento muito brusco de preços? O que te leva a crer que haverá essa redução?
Em primeiro lugar, a própria política monetária. Há efeitos em termos de preços livres, via hiato do produto. Estamos em uma situação de mercado de trabalho ainda bastante fragilizado. Isso deve conter a inflação de serviços, que é a que mais depende de mão de obra. Em segundo lugar, não esperamos aceleração do câmbio no ano que vem. Pode vir a ter, mas não esperamos que seja uma aceleração no câmbio como vivenciamos no ano passado e neste, que se somou à alta das commodities. Em termos de commodities, há percepção de que não haverá pressão adicional.

E quanto à pressão que vem de alimentos e energia?
Em particular, o quadro de commodities para o setor do agronegócio é bom, sem a elevação que estamos tendo desde o segundo semestre do ano passado. Há o cenário para o setor elétrico, de que essa bandeira tarifária da crise não prevaleceria no fim do ano que vem, havendo menor pressão resultante desse componente. A inflação deste ano, embora não só, saltou muito rapidamente por conta de choques. Então não teríamos uma devolução integral desses choques no ano que vem, mas com algum alívio vindo de preços administrados e alimentos. Os alimentos, na última leitura, estavam subindo algo como 12%. No ano que vem, esperamos algo em torno de 3,5%, uma alimentação bem mais branda, que representa 15% do índice.

E o que você espera para a atividade econômica?
Para este ano, estamos prevendo expansão de 5% (PIB). Mas há uma grande preocupação com o aperto das condições financeiras. O que estamos vendo, desde o terceiro trimestre e continua agora, no quarto, é que, dada a incerteza no campo fiscal, com teto de gastos, Bolsa Família ampliado, você tem o que chamamos de aperto das condições financeiras, que envolvem curva de juros mais inclinada, dólar mais alto, risco país mais alto e Bolsa caindo. Os modelos para as condições financeiras indicam poder preditivo de 3 a 6 meses para a economia à frente. A piora das condições financeiras nos fez, no fim de agosto, reduzir a previsão para o PIB do ano que vem, de 2% para 1,5%.

A tendência é de piora?
Desde então, esse aperto das condições financeiras continuou. O exercício que fazemos agora é que, se houver uma quebra do teto dos gastos e as regras fiscais forem deixadas de lado, seria possível comparar com a deterioração das mesmas condições financeiras no final de 2015, quando a então presidente Dilma Rousseff optou pela expansão do gasto e houve a saída do ministro Joaquim Levy. A piora que tivemos naquela época foi o dobro do que estamos tendo agora. Estamos em 50% do que tivemos naquele momento. Estamos no meio do caminho, mas podemos andar bem mais na direção da piora. Aí teríamos recessão. Um PIB de zero ou até negativo, caso isso se configure.

"O problema é que a inflação também virou problema político, porque gera pressão por mais gasto. Zerou praticamente o espaço que o governo tinha dentro do teto"

E o cenário fiscal?
O problema é que a inflação também virou problema político, porque gera pressão por mais gasto. Zerou praticamente o espaço que o governo tinha dentro do teto. Vieram os precatórios e toda essa pressão política para expandir os gastos públicos. É isso que está estragando o cenário de 2022.

A pandemia perto do fim pode ajudar?
Se você fosse esquecer o lado político, a eleição, estamos finalmente deixando a pandemia para trás. Os números vêm melhorando e a vacinação está ficando cada vez mais consistente. No fim do mês vamos atingir números superiores aos dos americanos. Ok, que lá não é uma maravilha, mas nem isso tínhamos. A atividade econômica está se recuperando. A arrecadação está subindo. Parte disso tem a ver com inflação, não é algo estrutural, mas estamos colhendo números melhores. Se, no ano que vem, formos para o terreno da disciplina fiscal e deixarmos para trás o grosso dos gastos com pandemia, teríamos melhora adicional na trajetória das contas fiscais. Com tudo isso, poderíamos ter um ano de 2022 muito bom.

A dívida em relação deve voltar patamares razoáveis, então?
Em janeiro de 2020, antes da pandemia, o prisma fiscal (relatório do governo que colhe projeções de economistas) previa para 2021 uma dívida em relação ao PIB de 78%. Nosso cálculo, agora, aponta para 81%. A diferença não é tão grande assim, dado tudo que aconteceu. É quase como se tivéssemos voltando à trajetória mais benigna, apesar do salto da pandemia.

Mas existe um risco de estagflação?
Sim. Se você fizer tudo errado, o PIB do ano que vem pode ser zero ou negativo, em recessão. A inflação pode ser mais alta, porque haverá impactos no câmbio, e nós não conseguiríamos entregar inflação perto da meta no ano que vem. Se olharmos a economia no último trimestre, houve queda. E a inflação está acelerando. Ok, achamos que isso é momento, uma foto do tempo. Mas não estamos tão distantes assim (de uma estagflação). Um cenário parecido com o do final do governo Dilma, mas num contexto totalmente diferente, não está tão distante.

"A minha torcida, e não só minha, é que o governo não avance nessa agenda (de reformas), que é muito ruim. É aquela história de que o empate na casa do adversário é uma vitória"

O que você espera para a agenda de reformas do governo?
A minha esperança é que a agenda não avance até o final do mandato. A minha torcida, e não só minha, é que o governo não avance nessa agenda, que é muito ruim. É aquela história de que o empate na casa do adversário é uma vitória. É uma agenda que, em boa medida, envolve retrocessos, na parte tributária, na reforma administrativa, na PEC dos precatórios. Já vimos o custo que foi a história da privatização da Eletrobrás. Aprovou-se, mas com custo razoavelmente alto. Então, na medida em que o próprio governo já deixou claro que o objetivo dele é populista, de expansão de gasto eleitoral, essa agenda foi mal formulada, em um momento errado, porque há todo um processo de barganha política ligada à eleição. A minha torcida e a de muitos é que a agenda seja paralisada e retomada lá na frente, em novo mandato presidencial.

O ministro Paulo Guedes chegou ao governo como o fiador de uma agenda liberal. Se agora o mercado não gosta da agenda em curso, faz diferença a presença dele lá?
Eu sou particularmente crítico à reforma do imposto de renda. Não faz sentido. O ministro defende. Eu acho que não faz sentido. E também sou contrário à solução que eles estão dando para precatórios. Mas, até agora, tivemos balanço positivo de reformas durante o governo Bolsonaro, que inclui a da Previdência. Houve várias mudanças ligadas a marcos regulatórios e a autonomia do BC. A própria Eletrobrás, apesar de tudo, terá um saldo positivo quando for vendida. Não sou crítico do que o governo fez até agora, inclusive sendo pragmático em dar continuidade a uma agenda que já existia em boa medida.

Mas e olhando para frente?
Em 2021, eu acho que claramente estamos indo numa direção errada. Eu acredito, nesse contexto, que a melhor opção seria não avançar com essa agenda. Felizmente, há dificuldades de avançar no Senado, até porque o ano está terminando. Acho que vamos aprovar outra coisa de marco regulatório, quem sabe sai a parte de ferrovias, que é importante. Aí fecha o ano e deixa as reformas mais complexas, como tributária e administrativa, para 2023.

Mas o cenário eleitoral tem mostrado que as opções para as eleições de 2022 são a continuidade do governo atual ou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), uma vez que uma terceira via com força ainda não se apresentou. Você acha que pode chegar alguém para tocar essa agenda?
Acho que pode. É muito cedo para antever o resultado da eleição um ano antes. Na hipótese da vitória do Lula, também é preciso saber qual vai ser o Lula que assume. Eu trabalhei no governo Lula em um momento em que se praticava responsabilidade fiscal e a situação foi muito positiva. Não sei se isso vai acontecer ou não e que linha de política econômica ele adotaria. O que cabe a nós, analistas do mercado e pessoas que já fizeram parte do governo, é defender princípios e, sobretudo, na área fiscal, vimos o desastre que foi em 2015 e 2016 o abandono da âncora fiscal, a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). Tivemos que criar uma outra, uma nova, o teto de gastos, que nos levou a ter uma situação de relação da dívida com PIB que é semelhante ao que tínhamos antes da pandemia, e que pode entrar numa trajetória descendente novamente nos próximos anos.

Não há espaço para ser expansionista, então?
Todo mundo está percebendo que existe condição de ter uma trajetória fiscal sustentável mesmo depois de tudo que passamos na pandemia em termos de expansão de gasto. Quem quer que entre, em algum momento, terá de refletir se quer ir por esse caminho ou tentar fazer aquilo que a Dilma tentou fazer e deu errado. Aí podemos ter mais um impeachment de quem fracassou trilhar o populismo fiscal.

A história das offshores do ministro Paulo Guedes e do presidente do BC, Roberto Campos Neto, pode afetar a credibilidade e a condução do trabalho deles?
Compete a eles dar as explicações. Mas não há nenhuma ilegalidade nisso, em ter esse tipo de estrutura. Muita gente tem. Cabe a eles dar os esclarecimentos necessários. Não vi ninguém se preocupar muito com isso. Por já ter trabalhado no governo, eu sei que você é triado antes de ser escolhido. Então, entendo que tudo isso será esclarecido e não vejo ninguém no mercado se preocupar com isso não.