Um estudo da Confederação Nacional da Indústria  (CNI) acabou expondo uma grande contradição no  mercado de gás. De acordo com o documento, quatro anos após a aprovação da Nova Lei do Gás – considerada como a consolidação do marco regulatório do setor -, a abertura do mercado brasileiro avançou muito pouco.

Segundo o estudo, divulgado na semana passa, há falta de acesso à infraestrutura e custo elevado para o gás chegar à indústria, com valor até 10 vezes maior que nos Estados Unidos, entre outros problemas.

Por outro lado, os investimentos privados em várias verticais do setor continuam avançando, devendo chegar a R$ 150 bilhões nos próximos dez anos. Gigantes de energia do País estão apostando não apenas na produção, como em geração de energia térmica, transporte e distribuição.

Parte dessa contradição reforça o cenário de incerteza jurídica que cerca o mercado de gás. Isso porque a maioria desses investimentos foi decidida ou iniciada antes da Lei do Gás, de 2021, ou no intervalo entre a entrada em vigor do marco e as medidas baixadas pelo governo federal em 30 de agosto do ano passado, uma intervenção sem precedentes na cadeia do gás.

Uma delas, o Decreto 12.153/2024, conhecido como Gás para Empregar, por exemplo, tinha como objetivo forçar um aumento da produção de gás natural para reduzir o preço do produto. Como a produção de gás é atrelada à exploração de petróleo, mais lucrativa, o objetivo era obrigar as petrolíferas a reduzir a quantidade de gás extraída junto com o óleo reinjetada no poço, o que reduziria o preço do gás.

As medidas, porém, tiveram péssima recepção na época, por impactar no planejamento da produção das petrolíferas, trazendo insegurança jurídica.

A rigor, um dos maiores investimentos anunciados recentemente, em 21 de março - a exploração do campo Gato do Mato, um projeto em águas profundas na área do pré-sal da Bacia de Santos –, reflete essa desconfiança.

O projeto de Gato do Mato prevê a produção de até 120 mil barris de petróleo por dia quando entrar em operação, em 2029, por parte do consórcio formado pela Shell (a operadora, com 50% de participação), Ecopetrol (30%), TotalEnergies e a estatal PPSA.

Mas a insegurança jurídica em relação ao mercado de gás, porém, teria levado o consórcio a desistir da exploração de gás no campo – detalhe que não é citado no comunicado oficial recente, mas chamou a atenção de especialistas.

Tarifa elevada

A discussão sobre os preços elevados das tarifas e seu impacto na concorrência ocupa grande espaço no estudo da CNI, “Gás Natural: uma avaliação da abertura do mercado brasileiro sob competência da União”.

De acordo com o estudo, o gás natural chega às indústrias por US$ 20 por milhão de BTUs, em média. O valor é muito superior ao dos EUA, onde a molécula do gás custa cerca de US$ 2 por milhão de BTUs, e representa o dobro do preço praticado no mercado europeu, de cerca de US$ 10 por milhão de BTUs.

Outro tópico destacado é a falta de regulamentação efetiva e os sucessivos atrasos na agenda da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Essa demora de regulamentação impede a implementação plena dos benefícios da Nova Lei do Gás. Dos 15 temas relacionados ao mercado de gás natural incluídos na Agenda Regulatória da ANP para 2022-2023, apenas três foram concluídos.

A agência também tem adiado o cronograma de abertura do mercado, sendo a falta de recursos humanos um dos principais fatores apontados para essa demora.

Embora exista progresso no desenvolvimento do mercado, o estudo adverte que, sem regulamentação completa e mecanismos de transparência, os efeitos positivos dessas medidas ainda são limitados.

A Petrobras, por exemplo, disponibilizou acesso a sistemas de escoamento e processamento de gás, mas as informações sobre a capacidade disponível e as condições contratuais ainda são limitadas, dificultando a atuação de novos entrantes.

Além disso, a estatal de petróleo ainda controla 80% da comercialização do gás e enfrenta constantes interferências em suas operações, decorrentes de mudanças de legislação, da estrutura e funcionamento do mercado, e da própria governança da empresa, que teve dois presidentes nos últimos dois anos.

O estudo reforça que a abertura do mercado de gás depende de uma atuação coordenada entre governo, reguladores e setor privado, garantindo previsibilidade e segurança jurídica para novos investimentos.

Insegurança jurídica

“A intervenção do governo no ano passado mostrou sua impaciência com a questão dos preços, cuja redução não foi entregue pela Lei do Gás de 2021 porque é preciso tempo para regulamentar as medidas, e a guerra na Ucrânia elevou muito os preços, trazendo um complicador a mais”, diz ao NeoFeed Sylvie D’Apote, diretora de Gás Natural do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP).

Segundo ela, os investidores ainda estão preocupados com o decreto do ano passado. A intervenção do governo federal mudou os planos de investimentos de grandes empresas, mexendo com toda a cadeia.

A perspectiva de mudança de regras nos processos de escoamento e de processamento é um exemplo da insegurança jurídica criada pelo decreto de 2024.

“A revisão desses processos, de acesso negociado livremente a um acesso regulado, interferiu em planos de investimentos, pois as empresas que pretendiam fazer novos dutos de escoamento ou plantas de processamento não sabem se tudo vai ser regulado com tarifa imposta ou se ainda vai ser negociada livremente”, diz D’Apote.

Entre os investimentos relevantes em curso, a especialista cita o Projeto Raia, da Equinor, de exploração no pré-sal da Bacia de Campos, que teve início logo após a aprovação da Nova Lei do Gás. “É o maior projeto privado de gás natural, uma aposta nesse mercado”, diz a diretora do IDP.

A Equinor é a operadora do campo de Raia, com 35% de participação. Pelo projeto, de US$ 9 bilhões, desenvolvido pela Equinor em parceria com a Petrobras e Repsol Sinopec (35%), o consórcio fechou com a Comgás um contrato de dez anos para comercialização do gás natural pelo qual terá capacidade para entregar até 16 milhões de m³/dia ao mercado, quando estiver concluído.

Em termos de investimentos, os volumes atuais estimados de recursos recuperáveis do desenvolvimento do ativo são de aproximadamente 370 milhões de barris.

D’Apote também lista investimentos em duas outras  áreas-chave. No segmento de plantas de regaseificação - processo de transformar gás natural liquefeito (GNL) em gás natural no estado gasoso -, a New Fortress Energy (NFE) inaugurou no ano passado o Terminal Gás Sul (TGS) na Baía de Barbilonga, em São Francisco do Sul (SC).

Antes, a empresa já havia inaugurado um terminal de importação de GNL em Barcarena (PA), onde investiu R$ 300 milhões. O empreendimento servirá a duas termelétricas a gás atualmente em construção pela NFE, com investimentos de aproximadamente R$ 7 bilhões e previsão de inauguração da primeira fase para este ano.

“Há cinco anos, várias empresas anunciaram investimentos na importação de GNL, mas hoje o GNL está mais caro”, diz D’Apote. Já o avanço do segmento de transporte de gás cresce sob risco de uma incerteza. “Os investimentos só crescem com aumento de oferta, e essa depende do avanço da demanda”, complementa.

Ela cita como fontes de incertezas a demanda industrial - onde custo caro do gás citado pela CNI leva à procura por outros combustíveis mais baratos – e a viabilidade das usinas térmicas a gás, mais caras que as renováveis, mas ainda atraentes por causa do leilão de capacidade do governo, que ocorrerá este ano.

Mesmo assim, há investimentos de ampliação de dutos de duas das principais transportadoras de gás natural do País, a TAG e a NTS. As duas, por sinal, colocaram em operação em janeiro uma interconexão de seus gasodutos em Macaé, no Rio de Janeiro.

A iniciativa, que recebeu R$ 46 milhões em investimentos das transportadoras, teve como objetivo tornar o mercado mais dinâmico e reduzir o preço do insumo. A taxa de entradas e saídas recebeu um desconto de 90%, na comparação com as taxas cobradas no Rio, para atrair os agentes.

Outros planos ambiciosos envolvem comercializadores. A Edge, braço do Grupo Cosan, amplia a aposta na comercialização de biometano e gás no mercado livre, seja o GNL importado pelo terminal próprio que instalou na Baixada Santista, seja fornecido por caminhões.

No ano passado, o Grupo J&F adquiriu a comercializadora Mgás, consolidando sua participação no setor de energia por meio da Âmbar, vertical do grupo nessa área.

“O setor de comercialização tende a crescer porque não depende de investimentos em infraestrutura”, diz Sylvie D’Apote, do IBP.