Com boa parte das pessoas confinadas em casa, o e-commerce brasileiro vem experimentando taxas chinesas de crescimento. Segundo a Ebit Nielsen, já nas primeiras semanas da Covid-19, entre 17 de março e 27 de abril, a receita do setor avançou 48,3% no País, ante igual período de 2019.
No rastro do salto expressivo nos cliques, há quem entenda que a pandemia vai acelerar a consolidação dos carrinhos de compra virtuais como uma via de consumo de alto tráfego no Brasil. E para avaliar as perspectivas desse cenário, o Itaú BBA produziu uma nova edição do estudo “The Covid-19 Series”.
O relatório, adiantado com exclusividade ao NeoFeed, parte da possível influência da epidemia de SARS, em 2003, no avanço substancial do comércio eletrônico da China para traçar paralelos com o contexto atual e o futuro do e-commerce no Brasil, a partir do novo coronavírus.
Para Enrico Trotta, analista de tecnologia do Itaú BBA, a SARS pode ter sido o pontapé para o e-commerce chinês. “Mas não foi o fator determinante para o avanço do setor que, na época, era incipiente no país”, diz. “No pós-pandemia, outras questões foram muito mais decisivas.”
Essa constatação inicial poderia frear as expectativas de um crescimento exponencial para o setor no Brasil nos próximos anos, sob o impulso da Covid-19. Mas a comparação dos estágios de desenvolvimento dos dois países nesses respectivos períodos traz, na realidade, uma boa projeção para o e-commerce local.
“O Brasil está muito mais preparado do que a China estava na época”, observa Thiago Macruz, analista de varejo do Itaú BBA. “Então, sem sombras de dúvidas, essa pandemia pode ser um vento de cauda importante para a aceleração definitiva do comércio eletrônico no País.”
A pesquisa destaca cinco componentes que foram fundamentais na consolidação da China como uma referência global no segmento. E analisa a maturidade do Brasil em cada um desses tópicos. Em todos eles, apesar dos desafios, o País tem um cenário bem mais favorável que aquele observado no mercado chinês, em 2003.
O primeiro ponto em que o Brasil está à frente é a penetração da internet entre a população, na casa de 70,2%. O índice é maior mesmo na comparação com a fatia atual dos chineses, de 59,35%. Em contrapartida, o País tem a maior carga tributária em conexões fixas de banda larga do mundo, segundo a União Internacional de Telecomunicações, o que limita o acesso de mais brasileiros ao serviço.
O custo também pesa no bolso dos brasileiros em outra frente que ajuda a explicar o avanço chinês: a penetração dos smartphones. “Os chineses praticamente pularam a fase do PC em casa e foram direto para o smartphone”, diz Trotta, sobre o país, no qual 55,3% dos habitantes têm aparelhos desse tipo.
Com essa transição, a participação das compras via smartphone no e-commerce chinês saltou de 1,5%, em 2011, para 61,7%, em 2018. “Essa presença elevada do mobile-commerce é fundamental, pois impulsiona as melhorias na experiência de compra”, afirma Trotta.
A fatia brasileira do mobile commerce no e-commerce é de 43,1%, enquanto a penetração dos smartphones está na casa de 40%
Aqui, mesmo com índices menos expressivos, o Brasil ganha de lavada no paralelo traçado com a China de 17 anos atrás, já que esses dispositivos nem existiam. A fatia local do mobile commerce no e-commerce é de 43,1%, enquanto a penetração dos smartphones está na casa de 40%.
Alta velocidade
Nesse jogo, porém, o principal desafio do Brasil na visão dos analistas é a questão da infraestrutura e da logística. A China começou a superar esse gargalo, de fato, a partir de 2008, quando passou a investir pesado em sua rede ferroviária e nos trens de alta velocidade. O maior salto dessa estratégia veio no ano seguinte, com um aumento de 50% dos aportes na área.
Até então, as compras do e-commerce estavam restritas aos grandes centros urbanos, como Pequim. Hoje, o país tem uma rede de 139 mil quilômetros, o que ajudou a desbravar novas fronteiras para o segmento.
Com a estratégia, o e-commerce da China conseguiu reduzir o tempo de entrega para o prazo médio de um dia, além de diminuir os custos nesse processo. Também com dimensões continentais, o Brasil, por sua vez, tem uma malha ferroviária de 29,1 mil quilômetros. E o prazo médio para que encomenda chegue até o consumidor é de 11 dias.
Na China, o tempo médio de entrega de um produto é de um dia. No Brasil, o prazo é, em média, de 11 dias
“O governo chinês foi muito importante para resolver essa fricção”, ressalta Trotta. “Aqui, até pela situação fiscal do Estado não dá para esperar grandes investimentos. O caminho para destravar essa questão virá da iniciativa privada.”
Se não há perspectiva de solução a partir do Estado, o mercado brasileiro começa a enxergar a evolução de alternativas propostas pelas próprias empresas de comércio eletrônico para superar essas lacunas no País.
Nessa direção, o analista Thiago Macruz destaca duas vias: as estratégias multicanal e as ofertas no modelo de fulfillment, no qual um varejista oferece aos lojistas parceiros de seu marketplace serviços que vão desde a coleta e o armazenamento até o empacotamento e a entrega dos produtos aos clientes.
“O Magazine Luiza tem sido extremamente eficiente ao usar suas lojas para melhorar o serviço, o tempo de entrega, a assertividade e reduzir o custo”, diz Macruz, sobre o primeiro formato. “Já o Mercado Livre conseguiu atingir uma marca expressiva, de 20% de penetração no fulfillment.”
As diferenças entre o papel estatal dos dois países também envolvem os outros dois fatores apontados no estudo como responsáveis pelo desenvolvimento do e-commerce na China: os superapps e os pagamentos digitais.
“O governo chinês foi o grande patrocinador das empresas que consolidaram esse formato”, diz Trotta, sobre as duas companhias locais que dominam amplamente esses mercados, Alibaba, com serviços com o Alipay, e a Tencent, com o WeChat. “No Brasil, dificilmente esse modelo será replicado, porque o mercado é mais livre e aberto a competição, o que, no fim do dia, é mais benéfico.”
Macruz reforça essa visão: “Se você é um pequeno varejo na China, precisa se associar a essas duas plataformas, ou não cresce. E fica obrigado a pagar as taxas que elas definem”, afirma. “No Brasil, só em marketplaces, por exemplo, temos cinco ou seis players estabelecidos e competindo de forma franca.”
Ele destaca outra questão que também deve estimular a competição e, ao mesmo tempo, impulsionar o e-commerce local. “O PIX, do Banco Central, vai tornar o pagamento digital uma alternativa muito mais interessante e consistente no País”, observa Macruz.
Valorização
Se o cenário é favorável para a competição e o crescimento mais acelerado do segmento nos próximos anos, no curto prazo, as empresas brasileiras puramente de e-commerce ou com forte operações nesse campo listadas em bolsa já estão capturando bons indicadores com a pandemia.
A valorização das ações dessas companhias no acumulado de 2020 é um bom termômetro. A alta da B2W no período foi de 77,77%; seguida pelo Magazine Luiza, com 69,1%; e pelo Mercado Livre, com 66,4%. Completam a relação a Via Varejo, com 65,53% e a Lojas Americanas, com 51,44%.
Para os analistas do Itaú BBA, todas elas estão sabendo, em diferentes níveis, surfar na onda da digitalização. A B2W, por exemplo, com o acréscimo acelerado de novos parceiros em seu marketplace, o aumento na recorrência de compra a partir do impulso a categorias como alimentos e o desenvolvimento dos esforços multicanais em parceria com a Lojas Americanas.
“O Magazine Luiza e a Via Varejo são players de varejo físico e e-commerce tradicional se aventurando, com bons números, no marketplace”, diz Macruz, que destaca ainda o tráfego orgânico “gigantesco” do Mercado Livre. “E é a empresa com maior penetração em serviços de fintech, com o Mercado Pago. E quem está mais próximo de construir um ecossistema.”
A valorização das ações das companhias do setor no acumulado de 2020 é um bom termômetro. A alta da B2W no período, por exemplo, foi de 77,77%
As boas perspectivas do e-commerce não estão restritas a quem está no mercado de capitais. Nessa seara, duas empresas são apontadas entre as que avançaram nesse período de crise e podem ganhar ainda mais escala: iFood e Rappi.
Na avaliação dos analistas, as duas, no entanto, escolheram caminhos distintos. Enquanto o iFood decidiu se concentrar mais em dar tração ao seu negócio principal, o delivery de comida, a Rappi está ampliando sua oferta em diversas categorias, em direção à consolidação do modelo de superapp.
“A estratégia do iFood está muito mais em linha com os superapps asiáticos, de crescer primeiro em uma vertical e, depois, aproveitar sua base de usuários para expandir”, diz Trotta. “É uma escolha muito menos intensiva em queima de caixa e mais eficiente que a Rappi.”
Ele ressalta, porém, que a dupla deve ganhar, em breve, a concorrência pesada do Facebook. “Eles vêm reforçando a ideia de integrar o Facebook com o Instagram, o WhatsApp e ofertas de e-commerce e de pagamento”, diz. “Se a empresa, de fato, entrar nessa briga, ela supera qualquer outro player no Brasil.”
Mesmo sob esse cenário, Macruz entende, por sua vez, que é cedo para eleger quem mais se beneficiará no jogo do e-commerce brasileiro. “O mercado vai ter crescimento para todas essas empresas”, diz. “Temos muito avanço nos próximos anos antes de nos preocuparmos em escolher quem será o vencedor.”
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