O dilema do biscoito Tostines se encaixa perfeitamente no setor financeiro nacional: o Brasil tem uma bolsa de valores porque o mercado é pequeno ou o mercado é pequeno porque tem apenas uma bolsa?

A depender de quem for o interlocutor, a resposta penderá para um dos lados. Mas a linha de defesa da primeira parte está concentrada apenas na B3, a bolsa de valores do Brasil e provedora de toda a infraestrutura de mercado.

Em um modelo vertical, a B3 é a única responsável pela negociação, pós-negociação e registro dos ativos. Mas essa realidade está em rápido processo de transformação, com os competidores surgindo em todos os níveis. De ATG e SL Tools na negociação passando por Núclea, CSD BR e Cerc na pós-negociação.

É importante frisar que não há como resistir. Quando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a compra da Cetip pela B3, em 2017, uma das condições impostas foi o acesso à infraestrutura para eventuais concorrentes. E a B3 não ficou parada assistindo o avanço da concorrência. Nos últimos anos, a B3 fez uma joint venture com a Totvs e criou a Dimensa para oferecer infraestrutura, e comprou a Neoway, empresa de análise de dados, um negócio de R$ 1,8 bilhão, em 2021.

“Muita gente já bateu na porta deles para pedir conexão, acesso. Então, eles sabem há dois anos, pelo menos, que existem concorrentes chegando. Eles não têm boa governança, ficam andando com os pedidos para atrasar, mas a transformação vai acontecer”, diz o executivo de uma pleiteante à concorrente.

Há 30 anos, o Brasil chegou a ter 13 bolsas, mas com a consolidação ficou com apenas uma - o único entre os países do G20. A Argentina tem duas bolsas; nos Estados Unidos, há 16 bolsas de valores e 33 balcões organizados; e na Índia são 21 bolsas regionais e duas nacionais.

A verdade irrefutável, porém, é que o mercado brasileiro é pequeno. Na comparação entre o mercado à vista no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, os dados da consultoria Elos Ayta, de Einar Rivero, mostram que existem 3.456 empresas listadas na Nyse e na Nasdaq contra 386 na B3.

Se a diferença de listagem de empresas de capital aberto é pouco superior a nove vezes, a distância no volume financeiro médio entre o mercado americano e brasileiro se aproxima de 100 vezes.

Neste ano, até 22 de abril, Nyse e Nasdaq registraram um volume financeiro médio diário de US$ 378,3 bilhões, um aumento de 20,7% sobre todo o ano de 2023. Nessa mesma base de comparação, o volume da B3 foi de US$ 3,9 bilhões, uma queda pouco maior que 5% sobre todo o ano anterior.

“O aumento da competição não divide o fluxo. Ela aumenta porque torna o mercado mais amplo e democrático, seja por questão de preço ou mesmo pela arbitragem”, diz um ex-CEO que comandou grandes marcas do mercado brasileiro. “A questão de dividir o risco é outro fator muito importante.”

Nas últimas semanas, o NeoFeed conversou com vários participantes do mercado para entender o nível de interesse por novos entrantes e, também, os motivos para ter um mercado financeiro horizontal, com mais plataformas de negociação, mais clearings para registro de informações e mais centrais depositárias para guardar e garantir a existência e lastro dos ativos negociados.

Há um entendimento de que a chegada de novos players vai fazer o volume do mercado brasileiro aumentar de 50% a quatro vezes em um curto espaço de tempo.

Uma nova bolsa

Há alguns dias, Gilson Finkelsztain, CEO da B3, disse ao jornal Valor Econômico que bolsa é um negócio concentrado e “dada a relevância do negócio, que exige capital, investimento, caixa, em nenhum lugar do mundo é feito por fintechs, porque coloca em risco o mercado inteiro”.

Três executivos que conversaram com o NeoFeed receberam essa colocação com restrições. Em primeiro lugar porque Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) são bastante diligentes com novos entrantes e fazem um longo processo de análise para evitar aventureiros.

Além disso, a capacidade de desenvolvimento de novas tecnologias para o mercado financeiro criou janelas de oportunidade e muitos dos novos entrantes têm pesados investidores garantindo capital. E todos citaram como exemplo o Mubadala Capital.

Em fevereiro do ano passado, a gestora do fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos comprou a Americas Trading Group (ATG), uma empresa carioca de tecnologia especializada em negociação eletrônica de ativos financeiros com o objetivo de lançar a sua própria bolsa para negociação à vista de ações.

Quatro meses antes, o Mubadala liderou uma rodada de R$ 550 milhões na registradora de recebíveis Cerc, que tem pedidos no Banco Central para ser uma depositária e uma clearing. A ideia é ter uma infraestrutura financeira completa e encarar a B3 em todos os negócios.

Pessoas próximas à ATG afirmam que o nível de comprometimento com o projeto da nova bolsa é enorme. E está acelerado. A empresa está perto de fazer um segundo road show para market makers globais (participantes que garantem a liquidez com ofertas de compra e venda de ativos) para reforçar o plano de negócio e detalhes da plataforma de negociação.

Há um entendimento no mercado que a chegada de Claudio Pracownik à liderança da ATG mexeu no acelerador da companhia. Até janeiro deste ano, o cargo de CEO era ocupado por André Brandão, ex-HSBC e Banco do Brasil.

Pracownik trocou o seu projeto na Win the Game, empresa de gestão financeira com foco no futebol e em e-sports, que fundou em 2021 e que tinha BTG Pactual e Fix Delivery Partners como sócios, para ajudar no desenvolvimento da nova bolsa. O negócio Win foi encerrado com a decisão dele (o Mubadala, dono da ATG, chegou a fazer uma proposta para adquirir os direitos comerciais dos times que fazem parte da Libra).

Nos próximos meses, a ATG passará por um rebranding para “cortar a relação com o passado”. O entendimento é que, além dessa marca ser conhecida pela tecnologia, há um histórico que precisa ser mudado (a ATG foi criada por Arthur Machado e foi investigada por envolvimento em corrupção com os fundos de pensão).

Atualmente, a ATG já tem 320 clientes buy sides e 42 corretoras que utilizam o seu serviço de trading eletrônico, ou seja, o roteamento de ordens de ações listadas em outras bolsas de valores.

A ideia dos executivos é ter uma nova marca que passe a governança corporativa que eles estão construindo. Outras marcas novas também estarão nos outros mercados de atuação.

Toda a estrutura da nova bolsa estará pronta no quarto trimestre deste ano, mas internamente a data de estreia está marcada para o fim de 2025. Esse longo prazo considera o tempo de teste do regulador e as eventuais considerações.

Mas uma coisa é certa: a nova bolsa sairá com a negociação do mercado à vista de equities, aluguel de ações e fundos imobiliários. E de três em três meses outros produtos serão acoplados, como derivativos, opções etc.

Na renda fixa, é realidade

Se no mercado à vista de ações a B3 tem um horizonte, de certo modo, distante para a chegada da concorrência, na renda fixa a competição é uma realidade.

Em meados de fevereiro, o mercado secundário de negociação dos títulos públicos do Tesouro Nacional passou a ter uma segunda plataforma de negociação: a SL Tools, de André Duvivier, um ex-trader da Merrill Lynch e Bank of America (BofA), e por Ricardo Miraglia, um ex-executivo da então Bovespa.

Após mais de uma década com a Cetip Trader, da B3, sendo a única a receber essas ofertas no pregão, os dealers desse mercado começaram a apregoar (termo que indica que um operador quer divulgar a sua intenção de realizar a compra ou a venda de um ativo) na SL Tools.

A SL Tools quer transformar esse mercado ainda analógico em eletrônico. Por dia, o mercado secundário de títulos públicos negocia cerca de R$ 93 bilhões pelo telefone e apenas R$ 7 bilhões por plataformas.

Na sexta-feira, 12 de abril, a empresa deu mais um importante passo na direção de ser uma plataforma completa de negociação de títulos de renda fixa.

A SL Tools e a B3 assinaram um contrato para que todas as operações de valores mobiliários de renda fixa de crédito privado (debêntures, CRIs, CRAs etc.) feitas pela nova plataforma passem a ser capturadas, sem diferença, pela Câmara B3 (antiga Cetip). A governança corporativa desse negócio foi construída em parceria com a CVM.

“Essa licença nunca tinha sido assinada. Vamos colocar o mercado de renda fixa em um nível de eletronificação que ele nunca esteve no País. A B3 reagiu, colocando uma plataforma, mas é uma reação ao entrante”, diz Duvivier, CEO da SL Tools, ao NeoFeed.

A visão da SL Tools é muito clara: o mercado de renda fixa, que é o maior do Brasil, precisa ter uma negociação contínua e resiliente para que se possa desenvolver a plataforma de outros ativos.

“A gente foca onde a B3 não é boa ou não está presente. E achamos que tem oportunidade na renda fixa. Com mais participantes, o cliente vai decidir pela tarifa, pela conexão, pelo sistema, o que ele achar melhor”, diz Duvivier.

Para entender o potencial do mercado privado de renda fixa, a SL Tools fez uma pesquisa em 10 plataformas de varejo e encontrou, em média, 36 debêntures em oferta para o investidor. No País, são emitidas entre 1,5 mil e 2 mil debêntures.

A proposta da plataforma é plugar o maior número possível de títulos de renda fixa. A diversidade de produtos ficará ao alcance da plataforma, que vai multiplicar algumas dezenas de vezes as ofertas e poderá fazer a curadoria de quantas e quais serão oferecidas para o investidor.

Assim como o mercado secundário de títulos públicos é analógico, o secundário de renda fixa também. Para vender um papel é preciso entrar em contato com a corretora.

“O nosso projeto é de total eletronificação do mercado de renda fixa e ser o feed do mercado secundário centralizado. O Brasil é um mercado estruturalmente de juros altos. Nunca vai deixar de ser 70% do nosso dinheiro em renda fixa. Mas o que vai mudar é que vai deixar de ser 2% em debênture e virar 30%”, diz o CEO da SL Tools.

Pós-negociação vem com força

Ao contrário da disputa no mercado de negociação de ativos, a pós-negociação, que engloba clearing e depositária, tem um número maior de concorrentes conhecidos, como Núclea, Cerc e CSD BR.

Em comum entre esses três está a força financeira dos grupos sócios dos negócios. A Cerc tem o Mubadala; a Núclea, que passou por um processo de desmutualização recentemente, “ganhou” 48 acionistas, entre eles os principais bancos privados, como Itaú Unibanco e Bradesco; e a CSD BR conta com Chicago Board Options Exchange (Cboe), BTG Pactual e Santander.

“O mercado de infraestrutura é extremamente regulado, com padrões muito altos. Tudo o que fazemos é aprovado pelo BC e pela CVM, com inspeções in loco, testes, mas com grande espírito de inovação. Essa é a grande vantagem que temos em relação ao monopolista, que ficou parado durante anos e nunca sentiu a necessidade de se movimentar”, diz Edivar Queiroz, CEO da CSD BR.

Registradora de derivativos, valores mobiliários e apólices de seguro, a CSD BR atingiu recentemente R$ 1,5 trilhão de ativos financeiros registrados. Há dois anos, a empresa batia a casa de R$ 5 bilhões.

Neste momento, a companhia está na fase dois do seu projeto que é ser uma clearing no sentido tradicional, ou seja, fazer o match de todos os processos de débitos e créditos. “O passo seguinte vai ser construir uma exchange no topo disso tudo”, diz Queiroz.

Uma ação descontada

Com valor de mercado de R$ 62,6 bilhões, a ação da B3 acumula queda de 22,6% no ano - o Ibovespa recua 5,7% no mesmo período.

Cotada a R$ 11,09 em 23 de abril, queda de 1,6% sobre o pregão anterior, os analistas enxergam upside para o papel. O Santander, por exemplo, elevou a ação para outperform (acima de seus pares) no início de abril com preço-alvo R$ 17.

“Nas nossas recentes interações com investidores estrangeiros, temos visto clima construtivo em relação às ações do Brasil e a B3 poderia ser um veículo para esses investimentos porque alguns investidores veem a B3 como uma proxy do ETF brasileiro, além de ser uma ação de alta liquidez e uma empresa de alta qualidade”, escreveram Henrique Navarro, Arnon Shirazi e Anahy Rios, analistas do Santander.

Nessa mesma linha, Pedro Leduc, William Barranjard e Mateus Raffaelli, do Itaú BBA, afirmam que o desconto no valor da ação da B3 torna a escolha a mais interessante no mercado financeiro.

“A B3 é a empresa descontada, com um preço/lucro a futuro de 13 vezes, sendo 30% abaixo da média histórica de 10 anos de 19 vezes. Seu 45% de desconto em relação aos pares globais também está em máximas”, escreveram os analistas.

Procurada, a ATG não quis se manifestar para a reportagem. Já a B3 não quis conceder entrevista, mas encaminhou a seguinte nota oficial para o NeoFeed:

A B3 realiza constantes investimentos nas áreas de tecnologia, pessoas, governança, controles e resiliência. São investimentos relevantes, especialmente para atualizações tecnológicas em todos os segmentos em que atua, que incluem também investimentos em capacidade, segurança e desenvolvimento de novos produtos e funcionalidades. A estratégia da companhia é focar no core business, mas também aplicar esforços em adjacências nas quais tem capacidade de ser bem-sucedida, possibilitando não apenas novos negócios em infraestrutura de mercado, como também tornar o core business mais aderente às demandas de agilidade e eficiência do mercado.

A companhia tem trabalhado para antecipar demandas do mercado, modernizando e simplificando plataformas para aumentar disponibilidade e capacidade para suportar o crescimento do mercado brasileiro. Em 2022, anunciou parceria com a Microsoft e a Oracle, trazendo tecnologias de classe mundial para o Brasil. Nos últimos anos, fez progressos em resiliência tecnológica e operacional entregando alta disponibilidade dos sistemas. Além disso, deu início à modernização das suas plataformas de clearing, negociação de renda fixa, central depositária e do Sistema Nacional de Gravames.

A B3 já atua em diversos segmentos em que a concorrência é uma realidade. No segmento de Balcão, a B3 tem concorrentes em registro de ativos financeiros, negociação de títulos públicos e privados, entre outros. No mercado de renda variável, há concorrência com as bolsas internacionais, já que os investidores têm a opção de investir em outros mercados bolsas e as empresas brasileiras podem escolher fazer a listagem no exterior.

A B3 entende que a competição é saudável e estimula a companhia a ser mais ágil nas entregas e com capacidade de se antecipar às necessidades dos clientes, tendo uma disciplina muito forte na parte de inovação, de lançamento de produtos e foco no melhor atendimento ao cliente.

Além disso, acredita que, em algum momento, o mercado brasileiro irá crescer e permitirá o surgimento de outras bolsas, mas o Brasil tem hoje um mercado ainda em desenvolvimento se comparado a outras regiões. A experiência recente de outros mercados com tamanho semelhante ao brasileiro tem mostrado que pode haver custos extras aos participantes devido à necessidade de investimento em conexões, sistemas e controles com mais de uma infraestrutura.

A B3 se reúne mensalmente com empresas e players de mercado para discussões de temas como de interoperabilidades, em agendas acompanhadas pelos reguladores, e que a autorização da atividade a ser interoperada, dentro do arcabouço regulatório vigente cabe apenas ao regulador (CVM, BCB e SUSEP, conforme tipo de ativo e de atividade).

A bolsa reafirma seus compromissos em seguir as melhores práticas em todos os mercados em que atua, incluindo aspectos concorrenciais, de governança e controles, com a robustez e a segurança do mercado de capitais brasileiro.