Uma reviravolta inusitada num negócio de US$ 23 bilhões que movimentou o setor de transporte marítimo global no início de 2025 promete agora abrir um novo capítulo na guerra comercial entre Estados Unidos e China.
De acordo com reportagem veiculada pelo The Wall Street Journal, o governo da China está ameaçando bloquear uma venda articulada por pressão do presidente americano Donald Trump, que até o fim do mês vai transferir dois terminais no Canal do Panamá e outros 40 portos em vários países para um consórcio ocidental.
Os ativos, de propriedade da CK Hutchison - empresa de transporte marítimo sediada em Hong Kong e controlada pelo bilionário Li Ka-shing -, foram vendidos em março para um consórcio formado pela BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, e um braço da suíça MSC, operadora de porta-contêineres.
O negócio, de US$ 22,8 bilhões, saiu depois de Trump ameaçar retomar o Canal do Panamá se a empresa chinesa não abrisse mão dos dois terminais de cargas que operava no canal.
A duas semanas para vencer o prazo de exclusividade de venda, o jornal americano revelou na quinta-feira, 17 de julho, que o governo chinês está exigindo que a estatal chinesa Cosco, uma das maiores empresas de transporte marítimo do mundo, faça parte do consórcio – incluindo no Canal do Panamá. A Casa Branca não comentou a ameaça.
O governo chinês ficou irritado com a decisão da CK Hutchison de se desfazer de seus ativos no país centro-americano sem sua anuência. De início, empresas estatais chinesas foram instruídas a congelarem quaisquer acordos futuros com a CK Hutchison ou outras empresas ligadas ao seu acionista controlador, o bilionário Li.
Como a BlackRock e a Hutchison têm interesses comerciais na China, e a MSC é uma das maiores movimentadoras de exportações chinesas em todo o mundo, a entrada da Cosco no consórcio não deve enfrentar resistência – segundo o WSJ, as três empresas envolvidas no negócio teriam concordado com a exigência.
Os dois portos que a CK Hutchison opera no Canal do Panamá há três décadas são estratégicos. Os terminais de Balboa (lado do Pacífico) e Cristóbal (lado do Atlântico) são considerados cruciais para o comércio global, conectando mais de 1.900 portos em 170 países.
No início do mandato, Trump alegou que a presença da CK Hutchison no Canal do Panamá representava uma influência chinesa indevida sobre uma infraestrutura vital para os interesses americanos. Ele chegou a afirmar que o Panamá havia “cedido o controle à China” e ameaçou retomar o controle do Canal caso os ativos não fossem vendidos.
Em março, a CK Hutchison acertou a venda de 90% dos ativos no Canal do Panamá, e de 80% de participação em subsidiárias portuárias que operam 43 portos em 23 países, incluindo instalações no Reino Unido, Alemanha, México e Austrália, para a Black Rock e a MSC.
Reação chinesa
Desde o anúncio da venda, o governo chinês tentou bloquear o negócio. Durante as negociações comerciais entre os EUA e a China na Suíça, em maio, representantes chineses levantaram a possibilidade de incluir a Cosco no consórcio, mas a proposta não foi sequer considerada pelo governo americano.
A importância estratégia do novo consórcio deve ter influenciado a decisão do governo de Xi Jinping de forçar a inclusão da estatal no negócio.
Com sede em Genebra, a MSC é a maior companhia de transporte de contêineres do mundo, com mais de 800 navios e capacidade de 5,6 milhões de unidades equivalentes a vinte pés (TEUs). A BlackRock tem sob gestão US$ 14 trilhões.
Já a estatal chinesa tem operações em mais de 160 países – incluindo o Brasil, onde possui uma unidade operacional em Santos, próxima ao porto, responsável por controle de contêineres, documentação aduaneira e suporte aos navios. A Cosco é uma das empresas internacionais que devem participar da leilão do terminal de contêineres STS 10, do Porto de Santos, que deve ocorrer ainda este ano.
A estatal chinesa, por sinal, está investindo pesado na América Latina. Em 2024, comprou por mais de US$ 4 bilhões uma participação de 60% no porto peruano de águas profundas de Chancay, para atracar navios graneleiros de grande porte.
No total, a China já investiu em cerca de 130 portos ao redor do mundo, contra apenas alguns controlados por empresas americanas, o que mostra o avanço chinês num segmento estratégico na guerra comercial com os EUA, no qual o controle da movimentação de cargas e de portos pode afetar o preço do frete.
Em relação ao comércio marítimo, empresas chinesas possuem mais de 5.500 navios mercantes oceânicos, contra apenas 80 de empresas americanas, reforçando a enorme capacidade do setor de construção naval da China, 232 vezes superior à dos EUA.
Foi esse avanço que levou Trump, em sua primeira iniciativa nessa área, a exigir a venda dos ativos da CK Hutchison no Panamá. O presidente americano certamente deverá reagir à exigência chinesa, que sequer é inédita.
Em 2014, o governo chinês impediu três empresas ocidentais de formarem uma aliança de transporte marítimo que pudesse prejudicar seus interesses comerciais. Nesse caso, a China anulou um acordo entre a MSC, a dinamarquesa AP Moeller-Maersk e a francesa CMA CGM, no qual as empresas compartilhariam navios e escalas em portos no mundo todo.