A crise da Americanas começou bem antes da divulgação do fato relevante em 11 de janeiro deste ano que anunciou que “numa análise preliminar, a área contábil da companhia estima que os valores das inconsistências sejam da dimensão de R$ 20 bilhões na data-base de 30/09/2022”.
O NeoFeed teve acesso a uma série de documentos, planilhas e troca de mensagens por e-mail e WhatsApp entre a alta cúpula da Americanas que mostram que a rede varejista enfrentava fragilidade financeira e queima de caixa, que se intensificou no último trimestre de 2022.
Estão em uma ou mais dessas mensagens o ex-CEO Miguel Gutierrez; os ex-executivos Anna Saicali, Marcio Cruz, Timotheo Barros, Christina Nascimento, Thiago Mendes Barreira, Breno Lima, Fabio Abrate e Marcelo Nunes; os conselheiros Carlos Alberto (Beto) Sicupira, Celso Louro, Eduardo Saggioro e Paulo Lemann, além de Roberto Thompson, do 3G Capital.
Os números que o NeoFeed teve acesso são do quarto trimestre de 2022, são inéditos e foram vistos e analisados por todos da alta cúpula antes da divulgação da fraude contábil da Americanas.
Esses números também não poderão ser comparados com uma futura publicação do balanço do mesmo período em razão da revisão de todos os dados após a divulgação do fato relevante assinado por Sergio Rial e André Covre, naquele momento CEO e diretor de relações com investidores, respectivamente, da rede varejista.
Com base em duas planilhas financeiras compartilhadas entre os executivos e o conselho, de janeiro a novembro do ano passado a rede varejista já acumulava um Ebitda negativo.
Essas mesmas planilhas mostram que planejamento da Americanas previa um Ebitda de R$ 3,16 bilhões no ano passado. Mas o número real, registrado até novembro, era de um lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização de R$ 2,4 bilhões, ou seja, R$ 760 milhões a menos do que a meta estabelecida para 2022 até novembro.
No rodapé da planilha Decof Financeiro - resultado pro-forma, uma nota afirmava que “o resultado de nov/22 apresentado desconsidera os efeitos não recorrentes da venda de estoque com baixo giro: aproximadamente R$ -1,4 bilhão no Ebitda”. Em 11 meses, quase R$ 2,2 bilhões de Ebitda negativo da Americanas.
Dos 12 indicadores compartilhados com a alta cúpula, todos mostravam uma situação delicada da companhia. O GMV (volume bruto de mercadorias) orçado em R$ 55,1 bilhões para o ano, por exemplo, já estava R$ 6,42 bilhões abaixo em novembro. E o prejuízo líquido até novembro era de R$ 760 milhões.
Entre julho e outubro do ano passado, a receita bruta orçada da Americanas ficou dois dígitos abaixo do registrado em 2021. A expectativa era que o último trimestre, com datas importantes para o faturamento da rede varejista, pudesse, pelo menos, minimizar esse problema.
Mas em outubro, as vendas do Dia das Crianças registraram uma receita 11,7% menor do que no ano anterior. No mês seguinte, que é bastante influenciado pela Black Friday, o faturamento foi 5,7% menor.
Dezembro não foi diferente. Semanalmente, a planejadora financeira Renata Alessandra encaminhava um e-mail para executivos e conselheiros com o acompanhamento de vendas das plataformas físicas e digitais.
Estavam nessa lista de remetentes: Anna Saicali, Beto Sicupira, Celso Louro, Miguel Gutierrez, Roberto Thompson, Christina Nascimento, Marcio Cruz, Thiago Mendes Barreira, Timotheo Barros, Fabio Abrate, Marcelo Nunes, Eduardo Saggioro e Breno Lima.
Em um dos e-mails que o NeoFeed teve acesso, que engloba as vendas de 1º a 25 de dezembro, essas 13 pessoas souberam que o período do Natal de 2022 foi pior que o do ano anterior, o que agravaria a situação da companhia. O GMV Total das plataformas física e digital, que engloba fornecedores, marketplace e sellers, estava negativo em 34% ante o mesmo período do ano anterior.
Na situação que a Americanas se encontrava, cumprir o orçamento na demonstração de resultados do exercício (DRE) era imperativo para a empresa ganhar tempo e resolver a situação de caixa.
Em uma apresentação feita em dezembro ao Conselho de Administração, o print de um gráfico compartilhado com o NeoFeed mostra a queima de caixa da companhia ao longo de 2022.
Janeiro foi o único mês em que o indicador dívida líquida sobre Ebitda foi positivo em 0,1 vez. A partir de fevereiro, o índice passou a ser negativo em 0,4 vez e foi aumentando mês a mês. Em novembro, estava negativo em 3,1 vezes.
Em peça assinada em 10 de setembro deste ano pelos escritórios Basilio Advogados e Salomão Advogados entregue para a segunda câmara de direito empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, encaminhada ao NeoFeed, a defesa da rede varejista afirma que a “antiga diretoria indicava ao Comitê Financeiro que a Americanas geraria R$ 504 milhões de caixa no quarto trimestre. Além disso, expuseram que a geração de caixa nos anos subsequentes seria muito mais robusta: R$ 783 milhões em 2023, R$ 1,24 bilhões (sic) em 2024 e R$ 3,15 bilhões em 2025”.
Fragilidade financeira
As trocas de mensagens com reports diários, semanais e mensais indicam que o conselho de administração tinha conhecimento que o caixa da companhia entraria em colapso e a Americanas precisaria de uma captação, seja via empréstimo ou capital.
Antes do fim do ano, em 31 de outubro, o sinal de alerta já estava ligado. Uma mensagem por WhatsApp trocada entre o então CFO da Americanas, Marcelo Nunes, com Paulo Lemann, que integra o conselho de administração da rede varejista como representante dos acionistas de referência, ao lado de Sicupira e Saggioro, mostra a preocupação do conselheiro:
“Oi Marcelo, tudo bem? Para o CF [Comitê Financeiro] da semana que vem, você pode detalhar o resultado 3Q e alguma previsão do 4Q. Seria importante uma olhada na evolução do caixa e dívida no ano (com e sem recebíveis) e uma forecast para o ano. No K de giro, você consegue nos [dar] mais transparência da piora entre normalização pgto (sic) a fornecedores, antecipação fornecedores e aumento de estoque? Obrigado. Abs”
Pouco mais de um mês após essa troca de mensagens entre Lemann e Nunes, em 2 de dezembro, uma reunião interna de planejamento para 2023 reuniu Sergio Rial, Anna Saicali, Marcio Cruz, Timotheo Barros, André Corve, João Guerra e a secretária Vanessa Carvalho, que escreveu o documento interno que o NeoFeed teve acesso.
Essa reunião, é bom salientar, ocorreu apenas com as informações que eram públicas até o 3º trimestre e, portanto, antes da divulgação do fato relevante que indicou a fraude com o risco sacado.
O resumo em cinco páginas traz desde novas estratégias e direcionadores, como o rebalanceamento entre os canais físico e digital até trechos motivacionais como este:
“O Mercado precisa acreditar novamente na gente. Tem gente grande interessada, temos que ter uma história e uma estratégia consistente. Se a gente estiver convencido do que a gente faz, a gente convence o mercado de capitais. Talvez demore um pouco, mas a gente convence.”
Mas o que chama a atenção é o trecho que afirma que a “área financeira precisará assumir o seu papel de 2ª linha de defesa, levantando a bandeira vermelha de forma racional sempre que necessário, para a nação Americanas como um todo. Importante levarmos em consideração o asset da empresa achatado, fizemos um follow on espetacular no momento certo, mas gastamos o dinheiro todo”.
O parágrafo se encerra com este complemento: “Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’. Se a gente frear muito, poderemos ter implicações no médio prazo. Então, a arte será onde frear e o tamanho do freio”.
A ação da Americanas, que iniciou o pregão de 3 de janeiro de 2022 sendo negociada a R$ 30,53 fechou o ano, em 29 de dezembro, a R$ 9,65, uma desvalorização de 68,4%. Em 2023, o papel acumula uma perda de 90,4% e era negociado a R$ 0,93 em 12 de setembro.
A guerra entre as partes
Conforme o site de notícias Pipeline, do Valor Econômico, publicou, o ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, está reunindo e-mails e mensagens de WhatsApp entre o alto escalão da Americanas que serão anexadas, nos próximos dias, em processo entre a varejista e o Bradesco e também na CVM.
Na segunda-feira, 11 de setembro, a Americanas encaminhou um comunicado à imprensa refutando argumentos de Gutierrez apresentados em ação movida pelo Bradesco contra a companhia, em que o banco questiona o papel dos acionistas de referência da rede varejista.
A Americanas aproveitou também para refutar pontos que Gutierrez levantou em carta enviada, na semana passada, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o caso.
A empresa afirmou que essa carta possui “várias contradições e mentiras”. Uma delas seria a respeito das dificuldades financeiras que a companhia passava no segundo semestre do ano passado. O ex-CEO afirmou que seria preciso um aporte de capital de R$ 8 bilhões e que todos os órgãos da administração tinham ciência desse fato.
Segundo a Americanas, documentos apontam “de forma inequívoca” que a antiga diretoria apresentou aos conselheiros a visão de que a Americanas geraria R$ 500 milhões de caixa no quarto trimestre e “continuaria gerando caixa nos anos subsequentes, mantendo índice de endividamento financeiro saudável”.
Procurados pelo NeoFeed, Miguel Gutierrez e a defesa do conselho de administração se pronunciaram por meio de notas.
A defesa de Miguel Gutierrez, representada pela banca Viera Rezende Advogados, “reafirma o que o executivo informou à CPI da Americanas: era do conhecimento do conselho de administração e de seus comitês de assessoramento – todos órgãos com integrantes ligados aos acionistas controladores –, bem como do novo CEO eleito (em processo de transição), que a companhia se encontrava em uma complicada situação financeira ao final de 2022, o que demandava o ingresso de recursos em patamar relevante. Este era o cenário independentemente de qualquer eventual problema contábil, que Miguel não conhecia”.
Os advogados dos conselheiros, da banca Wald Advogados, ressaltam que “seus clientes sempre atuaram com o máximo de zelo e ética sobre a companhia, observando rigorosamente as normas e a legislação aplicável. A Americanas foi vítima de uma fraude extremamente complexa que lesou todos os seus acionistas, além de stakeholders em geral, e cujos malfeitores deverão ser responsabilizados pelas autoridades competentes”.
A reportagem entrou em contato com a Americanas e também com a LTS Investments, o veículo de investimentos de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que prestava consultoria ao Conselho. Até a publicação do texto, não obtivemos resposta.