O roteiro se repete com cada vez mais frequência. Mudam-se apenas os atores e os cenários. Com forte apelo digital e modelos disruptivos, empresas até então desconhecidas subvertem a ordem em um determinado segmento da economia. E com a mesma velocidade que atraem consumidores, despertam reações pouco amigáveis dos nomes já estabelecidos naquele setor.

Foi assim nos embates entre Uber e taxistas. Airbnb versus hotéis. WhatsApp e empresas de telefonia. E em tantas outras disputas que colocaram em cantos opostos do ringue as novas empresas e a chamada velha economia.

No Brasil, as análises clínicas são um dos novos campos de batalha. Com uma boa dose de inovação, a curitibana Hi Technologies está enfrentando a resistência de parte dos laboratórios tradicionais e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em jogo, um mercado que movimenta R$ 30 bilhões por ano.

O ponto de partida do conflito tem nome: Hilab. Com três gotas de sangue, o laboratório portátil permite realizar 22 exames, entre eles, HIV, dengue, zika e hepatite, a partir de qualquer local. O material coletado é digitalizado e transmitido, via computação em nuvem, a uma central de diagnósticos.

No laboratório central, o material passa pela análise de especialistas e de um sistema com recursos de inteligência artificial. Em questão de minutos, o paciente recebe o resultado em seu celular. Além da velocidade, o modelo proposto abre caminho para reduzir o custo dos exames.

Sob pressão

Lançado em 2017, o Hilab entrou na mira dos questionamentos um ano depois, quando começou a ser usado em farmácias de todo o País, por meio de parcerias fechadas pela Hi Technologies.

“Nossa presença começou a ficar mais evidente”, diz Marcus Figueredo, CEO e cofundador da Hi Technologies. “E, à medida que crescíamos, houve uma pressão de alguns players tradicionais para que a Anvisa se manifestasse.”

Em abril, a Anvisa publicou um ofício suspendendo a utilização do Hilab em farmácias, sob duas alegações. A agência ressaltou que o laboratório é de uso profissional. E citou ainda a resolução RDC 44/2009, que autoriza apenas a realização da medição de glicemia nesses estabelecimentos.

A disputa migrou, então, para a esfera judicial. No fim de junho, o desembargador Jirair Aram Merequiam, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, concedeu liminar permitindo que o Hilab seguisse em operação nas farmácias. O caso segue em tramitação, após um agravo de instrumento impetrado pela Anvisa.

Procurada pelo NeoFeed, a Anvisa informou que a revisão do tema é um dos focos de sua agenda regulatória 2017-2020. Com parte desse processo, a agência promoveu um Diálogo Setorial para discutir a regulamentação de testes realizados por laboratórios portáteis.

Paciente colhe sangue para exames no Hilab

O encontro teve como objetivo analisar e identificar eventuais problemas nessa vertente. “É uma etapa de entendimento do problema, mas ainda sem proposição de norma ou solução específica”, explicou a Anvisa, por meio de sua assessoria de imprensa.

Para Figueredo, a suspensão não tem fundamento sob o ponto de vista médico e tecnológico. “A única explicação é reserva de mercado. Mas como esse argumento é ilegal, o subterfúgio que encontraram são as farmácias”, afirma o empreendedor. “Chega a ser um contrassenso, em um país tão desigual, ter uma tecnologia que amplia o acesso aos exames e barrar a inovação para privilegiar grupos empresariais.”

Em um contraponto, Luiz Fernando Barcelos, presidente da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC), diz que a entidade não tem críticas quanto à eficácia do equipamento e à tecnologia. Mas sim em relação a procedimentos que são impostos aos laboratórios e que deveriam ser estendidos.

“A regra exige que se faça o controle de qualidade no local do exame”, diz Barcelos. “Sei que há um controle no laboratório do Hilab, mas isso não elimina a exigência de que ele seja feito também nas farmácias.”

À parte dessa questão técnica, Barcelos avalia o impacto potencial do Hilab para o modelo de negócios tradicional do setor. “É, de fato, uma ameaça, mas acredito que esses exames ficarão restritos por uma questão cultural”, afirma o presidente da SBAC.

Ele cita os testes de gravidez como exemplo. “As pessoas até buscam o autoteste nas farmácias, mas sempre fazem a confirmação do diagnóstico num laboratório tradicional.”

Demanda reprimida

Figueredo, por sua vez, entende que o Hilab não significa o fim do laboratório tradicional. “Não estamos roubando pacientes dos laboratórios, mas sim trazendo novas pessoas para o sistema”, diz. “Há uma demanda reprimida anual de pelo menos 700 milhões de exames que não são feitos hoje por falta de acesso.”

Em 2018, foram realizados 2 bilhões de exames clínicos no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed).

A Hi Technologies não divulga o volume de exames realizado pelo Hilab. Mas, com um crescimento mensal desse indicador na faixa de 40%, o laboratório portátil já tem um peso considerável dentro da empresa, o que traria riscos no caso de novas suspensões.

Atualmente, o Hilab representa 40% do negócio. Até o fim do ano, a projeção é de que supere 50% da receita. O portfólio da companhia inclui ainda outras ofertas, como o Milli, mescla de oxímetro de pulso e tablet que monitora os sinais vitais do paciente. E o Milli Sleep, um sensor de dedo que monitora o sono.

No caso do Hilab, o equipamento é oferecido no modelo de serviços. As farmácias pagam apenas uma taxa por cada exame emitido. O número de drogarias que já contam com o Hilab também não é revelado. Hoje, ele está presente em 118 cidades.

A relação de farmácias parceiras inclui nomes como Pague Menos, Panvel, Nissei, Drogaria Araújo, Promofarma, São João e São Bento

A relação de farmácias parceiras inclui nomes como Pague Menos, Panvel, Nissei, Drogaria Araújo, Promofarma, São João e São Bento. Até o fim do ano, o plano é firmar acordos com todas as dez maiores redes do País. E expandir o negócio, naturalmente, por meio da capilaridade dessas empresas.

Outro ponto que ganhará força é a redução no preço dos exames. Hoje, diz Figueredo, dependendo da modalidade, o custo chega a ser até 20% do valor cobrado no mercado. Nos próximos meses, a Hi Technologies vai investir em descontos mais agressivos.

“Não temos os custos fixos de um laboratório tradicional e nosso modelo nos dá economia de escala”, afirma Figueredo. “Quanto mais exames fazemos, mais conseguimos transferir a redução para o preço na ponta.”

Pelo aplicativo

Ao mesmo tempo, a Hi Technologies está expandindo as fronteiras do Hilab. Desde julho, a empresa toca um projeto-piloto em Curitiba. Nele, é possível solicitar um exame, via aplicativo, e ser atendido em casa por um profissional de saúde, munido do equipamento.

A companhia vem cadastrando enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais habilitados para o serviço. O objetivo é atender um perfil de paciente diferente. “Vai desde idosos, com dificuldade de locomoção, até pessoas com doenças sexualmente transmissíveis, que muitas vezes ficam desconfortáveis em fazer exames fora de casa”, afirma Figueredo.

A ideia é seguir testando o modelo nos próximos três meses na capital paranaense. E levar o conceito a outras praças a partir do primeiro semestre de 2020. São Paulo é um dos locais em avaliação.

Depois de alguns ensaios em mercados como a Espanha, a expansão internacional também deve ganhar força. Em julho, a empresa obteve autorização da Food and Drug Admnistration (FDA), agência americana de fiscalização e regulamentação de alimentos e remédios. O primeiro ponto no mapa internacional, no entanto, deve ser um país da América Latina, em 2020.

Hi Technologies versus Theranos

No caminho para a incursão no exterior, Figueredo e companhia certamente vão lidar com uma comparação indigesta, especialmente no mercado americano: a Theranos, empresa do Vale do Silício fundada por Elizabeth Holmes.

A fraude da Theranos, da empreendedora Elisabeth Holmes, virou um documentário na HBO

Os pontos em comum nas duas trajetórias não se restringem ao ano de fundação das duas companhias – 2004. A Theranos surgiu com a promessa de revolucionar a indústria americana de saúde.

O gancho era um laboratório portátil, batizado de Edison, capaz de fazer mais de 200 exames com apenas duas gotas de sangue do paciente. E por um preço inferior a US$ 3.

Com essa proposta, Elizabeth virou celebridade, passou a figurar em capas de revistas e atraiu US$ 1 bilhão em aportes. A Theranos tinha entre seus investidores nomes do calibre do magnata Rupert Murdoch, além de diretores e conselheiros como os ex-secretários do Estado americano George Schultz e Henry Kissinger.

Outro paralelo com a Hi Technologies foi o acordo firmado com a rede de farmácias Walgreens para o uso do Edison nas lojas da rede. No auge, em 2014, a Theranos contabilizava 800 funcionários e foi avaliada em US$ 9 bilhões.

A verdade veio à tona, no entanto, pouco tempo depois. A empresa nunca apresentou um equipamento que funcionasse de fato como prometido. No acordo com o Walgreens, por exemplo, boa parte dos exames era realizada por equipamentos e laboratórios terceirizados.

“Somos, como muitos brincam, a Theranos que deu certo”, diz Figueredo

As falsas divulgações e projeções de receita, entre outras mentiras propagadas por Elizabeth, contribuíram para que ela fosse multada e enfrentasse uma série de sanções da Securities and Exchanges Commission (SEC), órgão regulador do mercado financeiro americano. Sob a acusação de fraude de US$ 700 milhões, a Theranos fechou as portas em 2018.

“A comparação é natural e surge o tempo todo. Mas, claramente, além da fraude, há diferenças cruciais entre os dois casos”, diz Figueredo.

O primeiro ponto, diz ele, é o fato de a Hi Technologies já ter criado outros produtos na área de saúde, um mercado extremamente regulado. E de o próprio Hilab já estar no mercado há dois anos. “Já fomos testados na prática e superamos essa barreira lá atrás.”

Ele acrescenta que a empresa tem controles auditados externamente e um corpo de especialistas conhecidos no mercado de saúde. Bem como investidores – Positivo Tecnologia e os fundos Monashees e Qualcomm Ventures – habituados com o setor de tecnologia.

“Nos distanciamos na proposta e na execução”, afirma Figueredo, que prefere encarar a comparação sob uma ótica bem-humorada. “Somos, como muitos brincam, a Theranos que deu certo.”

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