Os brasileiros têm vários motivos para considerar a cerveja um produto 100% nacional. O país, afinal, é um dos que mais consomem e produzem a bebida. E não dá para esquecer do papel de três brasileiros – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – na história da AB Inbev, um gigante que hoje soma cerca de 200 cervejarias e faturou US$ 54,3 bilhões em 2021.

Só que praticamente todo o lúpulo usado pela Ambev, o braço brasileiro do conglomerado, vem de países como Estados Unidos, Alemanha, Argentina e África do Sul. Trata-se do ingrediente que confere aroma e amargor às cervejas – os cervejeiros, mesmo quando sóbrios, costumam falar em alma.

Chamar a cerveja de bebida brasileira, portanto, é forçar a barra. O único estilo considerado nativo, por sinal, é o Catharina Sour, oficializado em 2018. Trata-se de uma versão frutada do Berliner Weisse que você dificilmente encontrará nos bares de cerveja artesanal do país, nos quais IPAs e companhia costumam roubar a cena.

“É complicado falar em cerveja brasileira quando só se aposta, por exemplo, em estilos belgas e em lúpulo americano”, diz Felipe Sommer, coordenador de um projeto da Ambev que ambiciona alterar esse quadro. “Queremos fomentar a escola brasileira de cerveja”.

Sommer está à frente da Fazenda Santa Catarina, que pertence à Ambev e fica a 200 quilômetros de Florianópolis, no município de Lages. Desde 2020, a propriedade dispõe de uma planta de beneficiamento de lúpulo com direito a peladora (a máquina que separa as flores, também chamadas de cones), secadora, trituradora, peletizadora (responsável por dar forma rígida ao resultado final), embaladora e câmara fria.

A fazenda também dispõe de um hectare dedicado ao cultivo de lúpulo, que pertence à mesma família da maconha, vide a semelhança das flores das duas espécies – só a que é proibida provoca efeitos psicotrópicos, é bom frisar.

O lúpulo do projeto já deu origem aTodaNossa, uma Brazilian Pale Ale feita em parceria com a Lohn Bier

Mas a planta de beneficiamento não é voltada só para os lúpulos plantados pela Ambev em Santa Catarina. Isso porque a dona da Brahma e da Antarctica se aliou a dezesseis produtores enraizados no mesmo estado – em conjunto, são responsáveis por 26 hectares de lúpulo.

Com todos eles, a Ambev firmou o compromisso de adquirir tudo o que for colhido. Os produtores que enviam as flores já prensadas recebem R$ 150 por cada quilo. Aqueles para os quais a companhia de Jorge Paulo Lemann doou mudas, além de ajudar no manejo dos canteiros e se incumbir do beneficiamento, embolsam R$ 100 por cada quilo do produto final.

“Nosso objetivo é estimular o desenvolvimento da cadeia do lúpulo brasileiro”, afirma Sommer. “Os produtores daqui em geral são muito pequenos e não conseguem, por conta própria, ganhar escala e competitividade. Uma planta de beneficiamento, fundamental para o ingrediente não estragar, custa mais de seis dígitos”.

A Ambev não revela quanto investiu na Fazenda Santa Catarina. “É um número muito alto, para o qual ela não se enxerga payback”, desconversa o porta-voz. “O que move o projeto é o intuito de fomentar o segmento craft”.

Colorado, também do portfólio do conglomerado de Lemann, recorreu ao lúpulo da Fazenda Santa Catarina para criar a Colorado Brasil com S17, uma Hop Lager

A primeira safra, a deste ano, resultou em 1,4 tonelada de lúpulo peletizado. É o suficiente para produzir uns 700 mil litros de cerveja pilsen. Ou somente 28 mil litros de IPA, variedade que demanda mais amargor (a primeira safra foi celebrada durante 1º Festival de Colheita de Lúpulo, promovido pela Ambev na região em abril).

Para 2023, Sommer espera dispor de pelo menos 4,2 toneladas, levando em conta apenas o natural desenvolvimento das mudas de lúpulo, que dão mais flores com o passar dos anos – a colheita em Santa Catarina ocorre entre janeiro e abril.

A matéria-prima saída da Fazenda Santa Catarina já deu origem a cinco cervejas, todas com edições limitadas. Uma delas é a TodaNossa, uma Brazilian Pale Ale feita em parceria com a Lohn Bier, uma pequena cervejaria do estado.

A Little Cata é uma Catharina Sour, único estilo considerado brasileiro

A Little Cata, uma Catharina Sour, foi feita por essa mesma marca em conjunto com uma do grupo AB Inbev, a americana Goose Island, que tem um brewpub em São Paulo.

Já a riopretana Colorado, também do portfólio do conglomerado de Lemann, recorreu ao lúpulo da Fazenda Santa Catarina para criar a Colorado Brasil com S17, uma Hop Lager.

“O Brasil ainda está longe de ter uma produção regular de lúpulo e com escala suficiente para abastecer uma cerveja de linha”, acrescenta Sommer. Ele aproveita para dizer que a Ambev não tem planos de substituir os lúpulos importados, que costuma comprar com dois anos de antecedência.

Há cerca de 200 produtores de lúpulo espalhados pelo Brasil, estima-se. Estão localizados nas mais variadas regiões, de Alagoas ao Paraná. De acordo com a Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (Aprolúpulo), sediada em Lages, a safra catarinense deste ano deverá chegar a 10 toneladas.

A maioria das iniciativas do país começou a brotar a partir de 2018. As espécies plantadas, entretanto, ainda não se adaptaram completamente ao nosso solo – de origem americana, o lúpulo Chinook que brota na Fazenda Santa Catarina exala aroma de frutas amarelas como o maracujá.

A entrada da Ambev na corrida do lúpulo brasileiro espelha seu conhecido desejo de dominar o universo craft. De acordo com a Fortune Business Insights, as cervejas desse segmento movimentaram globalmente US$ 95,2 bilhões em 2020 – e US$ 102,5 bilhões no ano passado. A expectativa para 2028 é chegar a US$ 210,7 bilhões.

Quem saiu na frente na disputa pelo lúpulo nacional foi a cervejaria Baden Baden, de Campos do Jordão. Hoje nas mãos do Grupo Heineken, ela lançou um rótulo comemorativo feito só com variedades nacionais em 2014.

Vieram de um pequeno produtor de frutas de São Bento do Sapucaí, município vizinho. A segunda parceria, de 2017, deu origem à Marzen, de estilo homônimo.

Em 2020, a marca Black Princess, do grupo Petrópolis, lançou a Braza Hops. Os lúpulos dessa German Pils foram colhidos em Teresópolis, no Rio de Janeiro, e produzidos pelo mesmo grupo, também dono da Itaipava e da Petra, entre outras marcas.

Em parceria com o Viveiro Ninkasi, a empresa planta variedades de lúpulo oriundas de outros países desde 2018 – o projeto consumiu R$ 2,5 milhões. Começou com 316 mudas, de 10 espécies, para testar a adaptabilidade de cada uma, e ganhou mais 7 mil pés em 2019. Para 2021 a meta era chegar a 20 mil.

A Braz Hops leva quatros espécies – cascades, chinook, triple pearl e comet – que conferem notas herbais, florais e alguma picância.

Em 2021, o grupo Petrópolis começou a vender seus lúpulos, em flor, opção mais indicada para cervejeiros de pequeno porte, no e-commerce da companhia, o BomDeBeer.com.br. Três variedades foram disponibilizadas – cascade argentino, triple pearl e comet – a R$ 24,99, o pacote de 100 gramas.

Os lúpulos fluminenses foram os primeiros do país a obter aval do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A Ambev dificilmente engoliu essa conquista.