"Militares não começam guerras, políticos sim" – a célebre frase atribuída ao comandante William Childs Westmoreland, que liderou a tropa americana na Guerra do Vietnã, voltou à tona na manhã da última quarta-feira, 22 de julho, dia em que a Casa Branca impôs o fechamento do consulado chinês em Houston, no Texas.
A equipe de Donald Trump estabeleceu um prazo de 72 horas para que a medida seja cumprida. Mike Pompeo, Secretário de Estado dos Estados Unidos, disse que tal decisão foi tomada porque a China estaria "roubando" propriedade intelectual americana.
Tal sanção acontece um dia após o Departamento de Justiça do país acusar dois hackers chineses de tentar subtrair informações e dados de empresas farmacêuticas americanas que estão desenvolvendo a vacina contra o novo coronavírus.
Em coletiva à imprensa, Pompeo disse que o crime não atenta apenas "contra a propriedade intelectual americana, mas europeia também, custando centenas de milhares de empregos". O secretário continuou sua fala dizendo que o fechamento do consulado é uma ação para zelar pelo povo americano, pela segurança nacional e pela economia.
Num comunicado à parte, a Casa Branca culpa a China por também engajar em "operações massivas e ilegais de espionagem e influência", o que interfere nas políticas domésticas.
O gabinete de Xi Jinping, por sua vez, negou as acusações e condenou o fechamento de seu consulado. A porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Hua Chunying, usou o Twitter para comentar o assunto: "Os Estados Unidos devem revogar essa decisão equivocada. A China certamente responderá com firmeza #contramedida", escreveu a diplomata.
Ainda na rede de microblogs, Chunying disse que "como resultado da campanha de ódio promovida pelos americanos, a embaixada chinesa recebeu ameaças de morte e bombardeamento".
Como a última vez que o governo de Trump ordenou o fechamento de um consulado estrangeiro em território americano foi em março de 2018, quando determinou o encerramento das atividades do consulado russo em Seattle, muita gente acredita que as duas maiores potências mundiais já estão em meio a uma nova guerra-fria.
O cientista político da Universidade de Columbia, Xiaobo Lü, enxerga um conflito entre as nações, mas pondera que "o campo de batalha, dessa vez, será na tecnologia e economia. Essa 'guerra' possivelmente terá efeitos colaterais desgostosos para o resto mundo – e pode afetar o Brasil", disse ao NeoFeed.
A estudiosa Elizabeth Wishnick, professora de ciências políticas da Universidade de Columbia, acredita que a comparação com a Guerra-Fria, travada entre EUA e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) entre 1947 e 1991, não é apenas exagerada, como também uma interpretação equivocada da história.
"Há certamente uma escalada na tensão geo-econômica entre EUA e China, mas o mundo hoje não é tão dividido em linhas ideológicas estritas como era na época da Guerra-Fria e não é comandado por duas nações com poderio militar semelhantes", afirma Wishnick ao NeoFeed.
"Os Estados Unidos ainda lideram o mundo do ponto de vista econômico e militar, e mantém um sistema internacional com aliados importantes, inclusive com o Brasil. Ao meu ver, China e Estados Unidos precisam cooperar para resolver problemas de escalas globais, como a pandemia e a mudança climática", diz ela.
Fogo no consulado
A China mantém cinco consulados em território americano, além da embaixada em Washington DC. E, por enquanto, apenas o escritório do Texas será o único paralisado.
A decisão veio depois que funcionários do consulado chinês foram vistos queimando o que seriam documentos no pátio do prédio do consulado, na terça-feira, 21 de julho. Imagens capturadas do ocorrido mostram pessoas atirando papéis no fogo.
O serviço de emergência da cidade de Houston foi acionado, mas, pelo Twitter, as autoridades confirmaram que "não foram autorizados a acessar o prédio", embora tenham visto a fumaça. As cenas capturadas em vídeo não permitem identificar os envolvidos.
Quanto a esse evento, outro porta-voz chinês, Wang Wenbin, afirmou se tratar de uma operação rotineira.
O fechamento do consulado é, entretanto, apenas o mais recente capítulo de uma disputa política, econômica e social que se desenrola há anos. As tensões começaram a aumentar em 2018, quando Donald Trump impôs novas tarifas a bens chineses, alegando que o país praticava uma política cambial que limitava a competição americana, prejudicando o país ocidental.
A China respondeu com a mesma moeda, e também elevou as tributações de bens americanos. Isso deu início a uma política alfandegária no estilo "toma-lá-dá-cá", até que em janeiro de 2020 os dois países assinaram um acordo no qual a China se compromete a comprar mais produtos americanos a fim de equilibrar a balança comercial entre as nações.
Para além dos impasses comerciais, há ainda o tecnológico. Os Estados Unidos são declaradamente contra o 5G da gigante asiática Huawei, que desde maio não tem mais acesso ao país. Os americanos acusam a companhia de praticar espionagem e, com esse pretexto, pressionam seus aliados a adotarem postura semelhante.
O Reino Unido, por exemplo, cedeu à pressão e cancelou seu contrato com a gigante chinesa. Romênia, Polônia, República Tcheca, Latívia e Estônia também assinaram termos se comprometendo a barrar a Huawei. A França, por sua vez, estaria inclinada a banir a empresa chinesa a partir de 2028, quando vencem as licenças atuais. Enquanto isso, Chunying declarou que o "único defeito da Huawei é ser chinesa".
Coronavírus e o papel de vilão
Sobram motivos para o "estranhamento" entre as duas maiores potências mundiais, mas o novo coronavírus global esquentou ainda mais o clima. Os Estados Unidos culpam a China pela pandemia, alegando que o país mentiu para a Organização Mundial da Saúde e escondeu dados preciosos sobre o vírus.
Apesar dos protestos, Donald Trump insiste em chamar o novo coronavírus de "vírus chinês" – termo que estudiosos rechaçam por promover xenofobia e desinformação. Essa narrativa internacional que coloca Xi Jinping no papel de vilão internacional ganha ainda mais força com as imagens e notícias que chegam de Hong Kong.
O território, que em 1997 "voltou" a fazer parte da China, deveria ter certa independência e autonomia, mas o governo de Xi Jinping desrespeita os acordos. Os manifestantes que vão às ruas reivindicar o que lhes foi prometido são presos e até torturados.
Por fim, a China é acusada por diversas organizações de direitos humanos de perseguir uma minoria muçulmana uigures. Estima-se que pelo menos 1 milhão de uigures tenham sido presos – um número que fica ainda mais expressivo quando colocado em perspectivas: existem cerca 11 milhões de uigures em Xinjiang, o que significa que quase um em cada 10 deles foram presos, segundo a ONU. Pequim, mais uma vez, nega todas as acusações.
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