Dois acidentes, na Indonésia e no Egito, um intervalo de apenas cinco meses e com um total de 346 mortos. As duas tragédias, ocorridas entre novembro de 2018 e março de 2019, provocaram a suspensão dos voos com os aviões 737 MAX 8, fabricados pela Boeing, em todo o mundo.

Desde então, a fabricante americana busca, sem sucesso, reverter a decisão. Enquanto isso, vive o dilema de recuperar a confiança do mercado e encontrar uma saída para superar a maior crise dos seus quase 104 anos de história, que foi agravada, ainda, pela Covid-19.

Depois de pouco avançar nessa direção, a Boeing recebeu, enfim, um aceno para um horizonte mais favorável. Ele veio com uma autorização da Agência Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA) para que a companhia iniciasse os testes para uma nova certificação do 737 MAX nesta segunda-feira, 29 de junho.

Com um prazo de três dias, o programa irá envolver voos com pilotos e tripulantes da FAA, partindo do Aeroporto Internacional King County, também conhecido como Boeing Field, em Seattle.

A bateria de testes irá incluir aterrissagens, curvas e manobras mais arriscadas para testar, especialmente, o sistema MCAS, apontado como a origem das duas tragédias, há pouco mais de um ano.

Até então, o modelo já vinha cumprindo uma rotina de voos de testes capitaneada pela própria fabricante. Em 2019, por exemplo, foram mais de 800 voos e mais de 1,5 mil horas com o sistema atualizado.

Procurada pelo NeoFeed, a Boeing informou, em nota, que segue trabalhando diligentemente para a retomada da operação comercial do 737 MAX com segurança. “Nós apoiamos o FAA e os reguladores globais neste processo”, afirmou a empresa.

A resposta do mercado não tardou. Depois de um histórico marcado por baixas na Bolsa de Nova York desde o início da crise, as ações da empresa operavam em alta próxima de 14,4% por volta das 17h00, cotadas a US$ 194,5.

Apesar da reação positiva, o início dos testes com a FAA não significa que a Boeing terá um caminho fácil até que a Boeing consiga permissão para que os 737 MAX distribuídos nas frotas de companhias aéreas de todo o mundo voltem a cruzar os céus.

Em primeiro plano, tudo indica que a FAA será extremamente rigorosa no processo, já que foi acusada de ter sido complacente com a Boeing na concessão da primeira certificação do modelo.

Com os acidentes e questões que vieram à tona nas investigações, a FAA entrou na mira das críticas de congressistas americanos e de boa parte do mercado global de aviação.

Ao mesmo tempo, não há perspectivas de que uma eventual aprovação pela FAA será endossada, automaticamente, por outras agências reguladoras em mercados como a Europa, China, Rússia e Brasil. Ao contrário. A expectativa é de que cada um desses processo também exija um prazo considerável para serem aprovados.

“É provável que os reguladores europeus sejam ainda mais cuidadosos e que as autoridades chinesas dificultem por razões políticas”, afirma Neil Hansford, presidente da consultoria Strategic Aviation Solutions. “Agora, todos os reguladores do mundo vão olhar a Boeing sob uma perspectiva diferente.”

Mais desafios à frente

Há outros desafios no caminho da Boeing, especialmente na concorrência com sua grande rival, a franco germânica Airbus. E as falhas que vieram à tona no 737 MAX bem como a insistência na família em questão são apontadas como alguns desses pontos críticos.

“Ficou evidente para o mercado que a família 737, que foi concebida na década de 1960, está obsoleta e no fim do seu ciclo”, diz Francisco Lyra, sócio da consultoria C-Fly Aviation. “A Boeing gastou mais com essa crise do que se tivesse investido em um projeto feito do zero que, mesmo assim, levaria de sete a oito anos para chegar ao mercado.”

Segundo informações divulgadas pela própria Boeing, em janeiro, a crise do 737 MAX trouxe um custo estimado em US$ 18,7 bilhões. O fato de o montante não contabilizar os impactos gerados pela Covid-19 só agrava esse contexto.

Além dos efeitos substanciais em toda a indústria de aviação no curto prazo, a pandemia promete uma retomada extremamente lenta para todo o setor, com a postergação de investimentos e, por consequência, dos pedidos de novas aeronaves.

Desde meados de março de 2019, o valor de mercado da Boeing recuou de US$ 238,7 bilhões para US$ 95,9 bilhões

Alguns indicadores dão um pouco da medida do quanto a combinação do caso do 737 MAX e da Covid-19 pode ampliar o dilema da Boeing. Desde meados de março de 2019, quando as duas tragédias deram início à crise da companhia, o valor de mercado da fabricante recuou de US$ 238,7 bilhões para US$ 95,9 bilhões, de acordo com a cotação da sexta-feira, 26 de junho, na Bolsa de Nova York.

Já os primeiros reflexos da pandemia foram outro fator apontado pela Boeing na divulgação de seu resultado referente ao primeiro trimestre de 2020. No período, a receita líquida da empresa caiu 26%, para US$ 16,9 bilhões. E a fabricante saiu de um lucro líquido de US$ 2,1 bilhões, um ano antes, para um prejuízo líquido de US$ 641 milhões.

No roteiro traçado para superar esses dois obstáculos, os analistas enxergam que a desistência da joint venture de aviação comercial com a Embraer, anunciada no fim de abril, traz dois aspectos. “Sem a Embraer, a Boeing corre o risco de ficar mais restrita em seu portfólio na disputa com a Airbus”, diz Richard Aboulafia, vice-presidente da consultoria americana Teal Group.

Com o novo cenário do setor no pós-pandemia, Hansford acrescenta outra questão na qual a Embraer teria importância para a Boeing. “As companhias aéreas vão investir em aviões com 25%, 30% menos assentos”, diz. “Nesse contexto, a Airbus tem uma oferta mais abrangente.”

Para os analistas, a Embraer também poderia trazer um impulso na cultura de inovação da Boeing, algo que vem perdendo espaço dentro da empresa nos últimos anos. Em contrapartida, Aboulafia enxerga como positivo para a liquidez da companhia americana o fato dela abrir mão de um acordo que lhe custaria US$ 4 bilhões.

Mesmo com um horizonte recheado de barreiras, há também outro ponto no qual a Boeing pode se apoiar, segundo as fontes ouvidas pelo NeoFeed. “A única questão favorável, de fato, é que o governo americano dificilmente abandonará uma empresa em um setor tão estratégico, sob o risco do avanço de rivais externos”, diz Lyra.

Para fugir de eventuais questionamentos da Airbus e de outros concorrentes em órgãos como a Organização Mundial do Comércio, ele entende que esse auxílio poderia vir não de subsídios, mas de outra frente. “O governo americano pode ajudar a Boeing por meio de compras militares, na divisão de segurança da empresa.”

No primeiro trimestre, a unidade de negócios em questão da Boeing, batizada de Defesa, Espaço e Segurança registrou uma receita de US$ 6,04 bilhões, contra US$ 6,58 bilhões, um ano antes. O prejuízo no segmento foi de US$ 191 milhões, frente a um lucro de US$ 852 milhões, na comparação anual.

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