Ilan Goldfajn já está de malas prontas. Nos próximos dias, vai deixar a presidência do conselho do Credit Suisse no Brasil para ocupar o cargo de diretor de Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Nacional (FMI). A data de início na nova função já está marcada: dia 3 de janeiro.

A partir daí, o ex-presidente do Banco Central no governo Michel Temer terá a missão de olhar para as economias dos Estados Unidos, do Canadá, México e toda a América Latina, incluindo o Brasil, é claro. Antes de partir para Whashington D.C., entretanto, ele concedeu uma entrevista ao NeoFeed na qual deu suas opiniões sobre o País.

Em um momento em que a inflação sobe, os juros são usados para conter a alta, Goldfajn dá o seu diagnóstico. “O primeiro problema que temos é a nossa incapacidade de décadas de lidar com as contas públicas. Você vai lá, tem uma meta, respeita a meta, depois a meta cai”, diz Goldfajn referindo-se ao teto dos gastos.

“Na verdade, o teto de gastos é um teto. Você sempre pode realocar recursos. O que isso mostra para a gente é que somos incapazes, mesmo colocando uma restrição constitucional, de fazer escolhas. Você quer dar um Bolsa Família, que é o dobro? Não tem problema nenhum, é uma opção política. Vai lá e retira o benefício que você deu para a indústria de não sei onde, o subsídio, a Zona Franca de Manaus”, afirma.

Na entrevista que segue, ele também ataca a falta de produtividade e ineficiência da indústria nacional, o protecionismo que mata a competição e da falta de confiança do investidor internacional. “A imagem do Brasil está chamuscada”, diz ele.

As questões ambientais e sociais são outros problemas que precisam ser resolvidos urgentemente. “Não dá para resolver a questão fiscal, o aquecimento da economia e deixar isso de lado.” Goldfajn diz que, ao baixar os juros para 2% no ano passado, o BC passou do ponto.

“Acho que o nosso sucesso no combate a inflação, ficando a 3%, 4% ou ao redor da meta, levou todo mundo a acreditar que a inflação estava morta. Em um país como o Brasil, esquece. Não podemos descansar”, afirma.

Ele ainda comentou sobre o perigo de uma bolha e fez sua análise sobre a euforia das criptomoedas. “É um mercado especulativo, onde tem um recurso escasso”, diz. “Acho que a criptomoeda permanece, as pessoas podem brincar igual a um cassino.” Acompanhe os principais trechos:

Se o Brasil fosse um paciente internado em um hospital, em que estado ele se encontraria?
Ele não está na UTI, mas está no quarto sendo tratado, precisando de um reforço. O pessoal está esperando-o sair, pensando que no futuro tem todas as condições de sair bem, mas está com os seus problemas.

Quais problemas?
Temos uma combinação de três grandes blocos de assuntos. O primeiro é a nossa incapacidade de décadas de lidar com as contas públicas. Você vai lá, tem uma meta, respeita a meta, depois a meta cai. Basicamente, tínhamos uma meta que ficou válida de 1998 a 2013, aí destruíram aquilo. Aí, acabou, tem que construir de novo. Passamos quase 15 anos andando relativamente bem no fiscal. A partir de 2013, virou um déficit primário. E, claro, que teve ao longo desses anos todos um crescimento da despesa que não parou. Cresceu, cresceu e cresceu. Aí, você começou a financiar via imposto, a sociedade não aguentou mais, se revoltou.

De que forma?
Por alguns anos, ninguém quis fazer ajuste de imposto e se criou o teto de gastos, que começou em 2017 e vinha fazendo seu papel até 2021. Na verdade, o teto de gastos é uma promessa que você vai estabilizar o primário, que é negativo hoje, lá na frente. Você promete que, com o teto de gastos, a coisa não explode e aí você tem alguns anos de alívio para fazer um ajuste bem gradual.

Mas não conseguiu...
Não conseguimos manter nem o ajuste gradual. Ou seja, o teto de gastos virou o inimigo a combater. É o teto de gastos que não deixa você cuidar da saúde, da educação, dos pobres, do investimento público. Na verdade, o teto de gastos é um teto. Você sempre pode realocar recursos. O que isso mostra para a gente é que somos incapazes, mesmo colocando uma restrição constitucional, de fazer escolhas. Você quer dar um Bolsa Família, que é o dobro? Não tem problema nenhum, é uma opção política. Vai lá e retira o benefício que você deu para a indústria de não sei onde, o subsídio, a Zona Franca de Manaus. Está prestes a bater no teto de gastos? Não faz emenda de relator. A emenda de relator explodiu. E aí não é só governo, a Câmara e o Senado, a oposição também, a sociedade está acostumada ao Estado que provém. Você tira o subsídio, onde tira uma bolsa. Um Estado que tudo pode e nada deve. Nesse contexto, temos, como sociedade, que decidir o que vamos fazer com os recursos que temos.

“Está prestes a bater no teto de gastos? Não faz emenda de relator. A emenda de relator explodiu”

O que vamos fazer?
Ninguém vai mais financiar, o contribuinte cansou. A inflação a gente meio que decidiu não ser. Tanto que, quando a inflação sobe, já tem um Banco Central, apertando o juro, desacelerando a economia, e em algum momento a inflação cai. A inflação não é a forma de financiar. Agora, a última forma de financiar é emitir dívida. Emitir dívida somos todos nós, 90% da dívida pública é o fundo que você tem, o CDB que tem no banco, o fundo DI. Nós meio que cansamos de financiar o governo com tantos riscos pela frente. Aí, os juros subiram. Um pré vai pagar 13% ou 14% e uma bolsa tem que pagar mais. Portanto, as ações têm de ser mais baratas e elas caem. Então, o mercado disse chega!. Se o contribuinte não quer, se a inflação não quer, a sociedade não quer chegar a conclusão nenhuma, o mercado está dizendo: ‘também não quero’. Se o governo insistir, o próximo passo é encurtar a dívida. Se o governo insistir mais ainda, vamos ter problema de rolagem. Mas, por enquanto, estamos na fase de prêmio mais alto. Esse é o primeiro problema, a sociedade decidir o que quer fazer com recursos que têm. Tem que fazer escolhas.

E o segundo problema?
Estamos há décadas sem conseguir crescer. Pode estar relacionado com as contas públicas, mas não é só isso. Acho que temos problemas de produtividade. Temos setores ineficientes que não queremos abrir para a concorrência. Então, protegemos aquilo que só vai nos trazer produtividade menor e é insustentável. Apesar da proteção, o que estamos conseguindo é uma morte mais lenta.

Quais setores?
Não vou citar setores específicos, mas o grau de proteção à indústria ainda é grande no Brasil. Convivemos com uma indústria que quer crescer, mas não quer abrir mão da proteção. Pode parecer contraditório, mas tirar o cordão umbilical da proteção do Estado pode ser a forma de sair. Uma proteção macroeconômica às vezes é a própria taxa de câmbio. Quando o dólar vai para R$ 5,50 fica tudo aqui barato e caro lá fora. Se isso não é suficiente, vai para R$ 6,00. O Brasil já está barato. Precisamos deixar muito acessível a nova tecnologia. Se não temos condições de fazer aqui, deixa entrar barato. Ainda tem burocracia, complexidade tributária e a falta da entrada de concorrência para fazer disrupção. Tudo isso faz com que você não cresça nada.

“Nós meio que cansamos de financiar o governo com tantos riscos pela frente”

Você elencou velhos problemas conhecidos do brasileiro...
Mas há um terceiro. São problemas como questões de meio-ambiente, questões sociais, a desigualdade. Chegou num momento que não dá para deixar para depois. Não dá para resolver a questão fiscal, o aquecimento da economia e deixar isso de lado.

Como você avalia a atuação desse governo e da equipe econômica em relação a esses problemas que você falou?
Não quero fulanizar, mas eu diria que os governos têm tentado. Acho que temos evoluído pouco em relação a produtividade. Na questão fiscal e contas públicas, temos o teto dos gastos que foi abatido. Acho que isso vai ser um problema não só para 2022, mas em 2026 teremos de reinventar o teto. Vai ser difícil para frente também. As últimas tentativas foram frustradas em termos de produtividade, ninguém conseguiu economia. Disseram que íamos melhorar com privatizações e elas não foram feitas nesse governo. Eletrobrás passou, mas com muito efeito colateral, não sei se ajudou muito o setor.

Você disse que a sociedade cansou e que o mercado cansou. Há risco de insolvência do Estado?
Não acho que há risco. Temos um Estado que passou muitos anos acumulando reservas, o tesouro tem caixa. A nossa dívida é, relativamente longa, então tivemos avanços nos últimos anos que permitiram termos tempo. Mas, se não oferecermos uma âncora fiscal, a percepção de que um dia a casa estará arrumada, independentemente se tem caixa ou não, todo mundo vai pedir mais prêmio, mais encurtamento, vai diversificar portfólio, mandar dinheiro para fora. Isso vai continuar.

Recentemente, vazou uma gravação do banqueiro André Esteves, do BTG Pactual, comentando uma conversa que ele teve com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na qual ele diz que o Brasil se achou “inglês” demais baixando a taxa de juros para 2%. Você concorda?
Eu era do campo que a gente deveria ser mais comedido na época. Eu falava que não dava para baixar tanto. Estamos num país onde o juro real ainda é alto. A gente conseguiu baixar bastante, mas o juro real não pode ser negativo no Brasil. Uma país que tem todas as confusões que a gente tem. Tudo bem que a gente não é o único emergente que tem confusões, mas somos um deles. Temos briga entre legislativo e executivo, o executivo com governadores sobre como gerencia a pandemia, o executivo com judiciário, o judiciário com STF... Em algum momento nesse ano, a gente ficou na dúvida se haveria eleições, se a democracia ia ficar. Esse mundo, que é o mundo emergente, que tem instabilidade, é um mundo em que você precisa pagar um prêmio para as pessoas manterem a poupança aqui. A gente viu esse ano, a inflação foi a 11% a Selic a 2% e a rentabilidade da maioria dos investimentos ficou negativo.

Em que patamar você teria deixado esses juros?
É difícil saber exatamente, mas lembro de eu ter falado que 2% já tinha passado do ponto. Enfim, talvez ali, pensamos que não éramos emergentes, que éramos o FED, onde pode ir para negativo e tudo bem, ninguém vai correr contra os títulos americanos. Ao contrário, quando o mundo foge, foge para os Estados Unidos. É muito diferente quando você é um país que as pessoas fogem para o seu país do que quando as pessoas fogem do seu país.

“Lembro de eu ter falado que 2% (de taxa Selic) já tinha passado do ponto. Enfim, talvez ali, pensamos que não éramos emergentes, que éramos o FED, onde pode ir para negativo e tudo bem, ninguém vai correr contra os títulos americanos”

O que os investidores estrangeiros pensam do Brasil? Estão fugindo?
Eles não estão fugindo, eles já fugiram. Há muitos anos que não entra dinheiro aqui. Às vezes, entra dinheiro para empresas específicas. Por exemplo, nessa revolução fintech, teve muito dinheiro alocado, mas saiu de um bolso e foi para o outro. Liquidamente, você não teve muito investimento. Ao contrário, nos últimos anos, com o diferencial de juros a 2% comparado com 0% no mundo, não precisa nem dizer, eles vão para fora que é mais garantido e vimos bastante realocação para lá. Agora, conversamos mais com hedge funds, porque o Brasil está muito barato, e não estão convencidos ainda.

Quando voltaremos a ser cobiçados?
Acho que temos que arrumar a casa aqui antes. A nossa imagem lá fora está muito chamuscada. Acho que não se pensou suficientemente como se trabalha uma imagem de um país. Pode até ser que tenhamos opiniões diferentes sobre questões básicas como pandemia, meio-ambiente, costumes, privatizações. Pode ser que não chegamos a uma conclusão do que queremos, mas, nesse debate, o que conseguimos foi passar a pior imagem lá fora. E, qualquer empresa, país e qualquer pessoa, tem de cuidar da sua imagem, porque é a sua credibilidade. A primeira coisa agora é contar a história de novo. Mostrar que não queremos destruir o meio-ambiente, que temos etanol, eólica, energia limpa, que vamos preservar a Amazônia.

Mas vai demorar para isso acontecer, não?
A gente destrói rapidamente, mas para construir são anos.

“Temos que arrumar a casa aqui antes. A nossa imagem lá fora está muito chamuscada. Acho que não se pensou suficientemente como se trabalha uma imagem de um país”

Escutei de alguns banqueiros que o Banco Central se concentrou demais em estimular a concorrência, lançar Pix, e esqueceu da política monetária. Você concorda?
Acho que tem de fazer as duas coisas, que dá para a gente trabalhar tudo isso. É uma agenda que já vem há anos. Você tem de fazer as coisas da conjuntura. Agora, uma agenda que vai melhorando ao longo do tempo você não pode esquecer. Acho que isso é um sucesso muito relevante do mercado, do BC e de todos que fizeram acontecer, o funcionalismo do BC. É claro que a gente puxou isso também (Goldfajn liderou a agenda BC+) e o Roberto tem puxado bastante. O Roberto (Roberto Campos Neto) gosta bastante desses assuntos de Pix, tecnologia, concorrência, avanços.

Mas o BC deixou de lado a política monetária?
Acho que a política monetária e a inflação deveriam ser o principal objetivo do Banco Central porque é o que está na lei. Você tem de estar preocupado com a estabilidade monetária. A inflação é o objetivo número um. Óbvio que, se você tiver um mercado financeiro muito bom, te ajuda nisso. Mas não dá, em nenhum momento no Brasil, para declarar vitória contra a inflação. Acho que o nosso sucesso do combate a inflação, ficando a 3%, 4% ou ao redor da meta, levou todo mundo a acreditar que ela estava morta.

E não dá para acreditar nisso nunca?
Em um país como o Brasil, esquece. Não podemos descansar. Não organizamos as contas públicas. Vira e mexe, alguém acha que a inflação é a solução. Vou te dar um exemplo: a quantidade de economistas comemorando a inflação ter corroído as contas públicas e a dívida e dito que é bem melhor do que se esperava no começo do ano, é enorme. Dizem: “a dívida ia chegar a 90% e agora está 80%, o déficit foi só 1%, é graças a inflação’. Isso é um equívoco total. Com a inflação, você ganha tempo para fazer alguma coisa porque depois vem a conta. O primário, você não reajustou o funcionalismo público, está congelado. O que você acha que vai acontecer em 2026? Quem não viu esse filme 1 mil vezes? Vai chegar lá, pressionar o novo governo, e vão querer recuperar 20% de perdas, e vai parar a máquina pública. Talvez aconteça isso em 2022.

Recentemente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os especialistas vão se arrepender das previsões, e que o Brasil vai crescer. Qual a sua visão? O Brasil vai muito bem e todo mundo vai se arrepender?
Eu vejo 2022 como um ano bem complicado, teremos uma inflação alta ainda, e o BC estará combatendo a inflação. Com os juros mais altos, a economia vai começar a desacelerar. Se você vai desacelerar de um crescimento normal de 2%, você tem pouco espaço. O mercado está cortando o crescimento do PIB de 2% para 1%. Mas tudo indica que pode ser menos do que um. Você vai combater a inflação em um ano complicado eleitoralmente. Eu não consigo ver essa eleição calma, na qual os candidatos vão colocar elegantemente seus programas e respeitando o outro. O mais provável é que tenhamos uma eleição polarizada, onde o voto de um, na verdade, vem pelo ante o outro. E é difícil para o mercado filtrar tudo.

Você quer dizer que vai prevalecer os discursos do caos?
É do caos, as promessas serão mais populistas. Não é à toa que os anos eleitorais no Brasil são de muita volatilidade e sempre o câmbio vai lá para cima.

As pesquisas mostram a polarização entre Lula e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira via?
Acho que tem, porque há uma grande rejeição aos candidatos. Mas ainda não vimos aparecer. Ainda tem que aparecer um candidato que empolgue e consiga aglutinar. A vantagem é que temos ainda uns dez meses pela frente.

“Acho que tem (chance de aparecer uma terceira via nas eleições presidenciais), porque há uma grande rejeição aos candidatos”

Você foi o precursor da agenda BC+ para estimular a competição no mercado financeiro. Hoje, os bancos dizem que existem muitas assimetrias, entre elas, por exemplo, exigência de capital de uma fintech e de um banco. Você concorda com essa distorção?
Existir assimetria por si só não é um problema. Você deveria cuidar quando tem assimetria quando estão fazendo a mesma coisa ou oferecendo o mesmo risco. Muitas vezes, o risco é bem diferente. Mas, muitas vezes, as instituições crescem, começam a oferecer um risco mais sistêmico e você tem de regular os iguais da mesma forma. O lema tem de ser regula diferente os diferentes e regula os iguais de forma igual. E essas coisas são dinâmicas, vão mudando ao longo do tempo.

Falando agora de mercado internacional. O investidor Ray Dalio diz que estamos num momento de bolha prestes a estourar, que as empresas estão sendo negociadas a múltiplos muito grandes, irracionais. Estamos nesse momento?
Sempre que tem um período longo de juros zero, você tende a puxar os mercados para cima. Aí, setores como firmas de tecnologia tendem a ser puxados com mais força. Se ficar muito tempo assim, acaba demorando mais tempo para o mercado se auto-ajustar e você pode ter momentos de exagero. O problema dos mortais é saber quando é esse momento e se já chegou ou não. O que sabemos é que os ajustes acabam acontecendo e sempre tem momentos de euforia seguidos de realização.

Sobre euforia, temos um mercado efervescente que é o de criptomoedas. O Jamie Dimon, CEO do J.P. Morgan, disse recentemente que é “ouro de tolo”. Qual é a sua visão sobre isso?
É um mercado especulativo, onde tem um recurso escasso, essa criptomoeda que, igual a ouro, precisa minerar. É um recurso escasso, não tem utilidade nenhuma. Com o ouro, pelo menos, você faz um brinquinho, uma corrente, aí você compra o ouro e ele sobe e desce. No caso da criptomoeda, é um jogo. O que tem de útil é que ela só existe por conta de uma tecnologia nova, que já não é mais nova, que é o blockchain. Inventamos o blockchain e, como efeito colateral, criou a criptomoeda. Acho que a criptomoeda permanece, as pessoas podem brincar igual a um cassino.