Após a euforia inicial causada pelo avanço da vacinação, os economistas e analistas do mercado financeiro têm tomado doses de realidade nas últimas semanas. Não só as expectativas para os juros estão ficando cada vez mais altas, o que retarda a recuperação econômica, como o País tem se mostrado vulnerável a problemas pontuais, como a crise energética.

O resultado é que, nas últimas quatro semanas, a mediana das projeções do mercado para o PIB de 2021 caiu de 5,28% para 5,04%. Para 2022, recuou de 2,04% para 1,72%. E a onda de revisões não deve parar por aí.

Na visão da economista Zeina Latif, uma das mulheres mais respeitadas do mercado financeiro, a mais recente ameaça do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), que teve como palco as manifestações de 7 de setembro, “ainda vai bater” na economia. Afinal de contas, quem investe em longo prazo não gosta de instabilidade institucional.

“Um CEO de uma multinacional, no segundo semestre, que é o momento de planejar o ano que vem, vai ter dificuldade para defender investimentos no Brasil”, disse Zeina, em entrevista ao NeoFeed. “Já havia, na minha visão, algum desconforto. Mas acho que piorou, mesmo que o presidente tenha recuado.”

Ex-economista-chefe da XP Investimentos e desde 2020 na consultoria Gibraltar, Zeina também anda preocupada com a inflação. A de 2021, que já ronda na casa dos 8%, está jogada à própria sorte, uma vez que a ação do Banco Central tem pouco efeito sobre o curto prazo, em sua visão.

Para o ano que vem, Zeina vê com desconfiança as previsões do mercado, que apontam para uma desaceleração para algo em torno de 4%. “A inflação não cai de 8% para 4% assim tão rápido”, afirmou a economista.

Na entrevista a seguir, a economista falou também sobre os efeitos dos recuos do presidente no âmbito institucional, o trabalho do ministro da Economia, Paulo Guedes, o cenário para a agenda econômica daqui para frente e o que é possível esperar para as eleições de 2022. Confira:

O mercado tem revisado para baixo as projeções para o PIB de 2021. Você também está mais pessimista?
Eu não faço projeções, mas já estava achando o mercado muito otimista. Para este ano, vejo com dificuldade uma previsão de 5,5%, por exemplo (a mediana das projeções do mercado é de 5,04%). Depois da recuperação em V, a economia vai estar praticamente andando de lado, porque não há impulso para o crescimento, nem mesmo da vacinação. Da mesma forma que a falta de vacina e a segunda onda da pandemia não fizeram as pessoas aderirem ao isolamento, e com isso o PIB não sofreu como se esperava, não vejo também como a vacinação pode puxar o crescimento. Além disso, tivemos alguns elementos de deterioração do ambiente macroeconômico, como a alta dos juros e a crise energética. Com isso, poderemos ter leituras ainda mais negativas para o PIB.

Também vale para 2022?
Sim. As leituras mais negativas que podem ocorrer valem, principalmente, para o ano que vem, porque dificilmente vamos ver o Banco Central (BC) parando tão cedo com a alta de juros (a Selic está em 5,25% ao ano e a mediana das projeções do mercado aponta para 8% ao fim do ano). Isso mostra que a política monetária funciona, porque, quanto mais você olha o médio e o longo prazos, mais você percebe que o Brasil tem um baixo potencial de crescimento do ponto de vista estrutural. Um dos sinais desse baixo potencial é o efeito que tem a questão da crise de energia. A crise ocorre porque não choveu? Sim. Mas também porque questões estruturais não foram resolvidas lá atrás. Ou, então, você tem falta de mão de obra em setores como tecnologia da informação. São problemas estruturais que aparecem aqui e ali.

O quanto desse maior pessimismo está ligado a Brasília?
Esses eventos mais recentes, como as manifestações do último 7 de setembro, ainda vão bater. Não deu tempo. As incertezas na política não são neutras para a economia. São coisas que deixam as pessoas em compasso de espera e limitam investimentos. Diminui o apetite para investimentos no País. Um CEO de uma multinacional, no segundo semestre, que é o momento de planejar o ano que vem, vai ter dificuldade para defender investimentos no Brasil. Isso tem efeito no câmbio, que bate na inflação e depois na Selic. Já havia, na minha visão, algum desconforto. Mas acho que piorou, mesmo que o presidente (Jair Bolsonaro) tenha recuado.

Por que os recuos do presidente não são suficientes?
Porque ele não recua na mesma intensidade em que avança. O efeito líquido é sempre pior. O que aconteceu no dia 7 de setembro foi muito grave.

Mas a Bolsa subiu após o último recuo. Significa que o mercado ainda confia?
Sim, é verdade. Mas a análise tem que ter uma dose de psicologia, para identificar o próximo passo do presidente. Mas não era para eu estar tendo de adivinhar o comportamento do presidente. Se tem uma espiral de piora, o investidor reverte todas as posições. Mas, se há algum respiro, para que ele possa manter a carteira, ou para aproveitar que os preços estão caindo, como o recuo do presidente, isso acaba acontecendo. Ainda mais porque há uma liquidez mundial. Mas não é tão raro que o mercado faça avaliações que, com o tempo, se mostram erradas.

"Acho pouco provável avançar com a reforma administrativa. A reforma do imposto de renda encontra dificuldades no Senado. Mas, em ambos os casos, é uma boa notícia, porque as propostas são ruins"

Após o 7 de setembro, como fica o cenário para a agenda econômica no restante do governo?
Acho pouco provável avançar com a reforma administrativa. Já achava antes, na verdade. A reforma do imposto de renda encontra dificuldades no Senado. Mas, em ambos os casos, é uma boa notícia, porque as propostas são ruins. Há pontos que são de interesse muito grande do Congresso e é possível que o Senado não avance com elas. Vai ser bom. A PEC dos precatórios, do ponto de vista do Congresso, é necessária porque os parlamentares querem garantir emendas parlamentares. Quanto ao Auxílio Brasil, surge a preocupação fiscal, porque as discussões são sempre no sentido de gastar mais, mas nunca no sentido de encontrar espaço no Orçamento para medidas compensatórias. O saldo líquido é negativo.

E qual a sua avaliação sobre o trabalho do ministro da Economia, Paulo Guedes?
Qualquer ministro teria muito dificuldade nesse governo. É importante que se coloque: a responsabilidade final pela agenda econômica é do presidente, que, na maioria das vezes, atrapalhou, ou enfraquecendo medidas ou gerando tumulto no ambiente político, dificultando tramitações. Isso dito, acho que o Guedes tem méritos, porque toca em temas importantes que o Brasil precisa discutir. Mas acredito que ele falhou em mostrar internamente ao governo a importância da disciplina fiscal. Perdemos um tempo precioso na reforma tributária. Acho que ele subestimou as dificuldades de avançar em certos temas e as limitações estruturais do nosso país. Faltou um projeto mais estruturado. Com isso, o ministro acabou prometendo demais, indo além do que poderia entregar. Mas, mesmo que tivesse um projeto estruturado, isso não seria suficiente. O presidente teria de abraçar o projeto, o que não ocorreu.

O ministro perdeu o controle da agenda econômica?
Esse é o resultado final. O Ministério da Economia não conseguiu controlar a agenda.  Vimos isso na aprovação da reforma do Imposto de Renda na Câmara. O ministro não consegue controlar e também o governo, pois a Casa Civil deveria ser parceira e o maestro da agenda econômica. E o que vemos é uma Casa Civil alheia a essa agenda.

Quanto à inflação, as projeções para este ano também têm ficado maiores e já rondam a casa dos 8%. Para 2022, a expectativa gira em torno de 4%. Acha que pode ser mais?
Acho que será maior no ano que vem, sim. Para este ano, estamos dependendo da sorte, pois o efeito da política monetária sobre a inflação é muito baixo no curto prazo. Quando o BC começa a subir juros, é preciso alguns trimestres para que isso bata nos preços. Os comunicados do BC já falam que o foco é o ano que vem, porque este ano já foi. Então, estamos dependendo da sorte, caso as chuvas venham, pelo menos a tempo de evitar mais quebras de safra e não pressionar tanto a bandeira vermelha (da tarifa de energia). Estamos vulneráveis a choques e o quadro, de forma geral, é muito ruim para a inflação. Por isso, os preços, sistematicamente, surpreendem o mercado. Quando se olha a abertura do IPCA, vemos que não é bom. Há uma pressão disseminada pelos preços. A inflação de bens finais no atacado já está rodando acima de 20%.

Mas a inflação pode estourar o teto da meta de inflação novamente em 2022, de 5%?
Com certeza ficará acima do centro da meta (de 3,5%). Uma projeção de 4% para o ano que vem é otimista. O problema da inflação é que ela vai ficando mais resistente. Cada comerciante ou provedor de serviços, na hora de definir o preço, se ele sente que está tudo subindo, fica mais à vontade para repassar, sem ter tanto receio de perder participação de mercado. Vale a pena arriscar. O ambiente de falta de controle na economia reforça. Se o BC estivesse subindo juros e o governo reafirmando, não só com palavras, mas com ações de compromisso com as contas públicas, poderia ter mais efeito. O professor Heron do Carmo (da USP, especialista em inflação) está estimando uma inflação de 8,7% em 2021 e, por causa desse componente inercial, deve ficar em 6% no ano que vem. Uma inflação de 8% não volta para 4% assim tão rápido. No combate à inflação, o BC está sozinho.

"Uma projeção de 4% para o ano que vem é otimista. O problema da inflação é que ela vai ficando mais resistente"

Há quem defenda que, por causa da retomada, o ano de 2022 seria de mais bem-estar econômico, o que poderia influenciar a eleição. Você não vê isso acontecendo, então?
Eu não vejo como o presidente pode capitalizar o bem-estar que pode vir da vacinação. A taxa de desemprego continua muito elevada (de 14,1%, no trimestre encerrado em junho, segundo o IBGE) e a inflação é um quadro que preocupa. Não vejo um tremendo alívio para o ano que vem. Não basta comparar o ano de referência com o ano anterior. A sociedade cria expectativas. E a expectativa que se cria é frustrada. Mesmo com a vacinação, não teremos um impulso para o crescimento.

Você vê o surgimento de uma terceira via na eleição presidencial do ano que vem?
É muito difícil prever. O próprio Bolsonaro, ninguém esperava. Em 2017, ninguém imaginava que ele seria competitivo. O Brasil sempre surpreende. É precipitado dar como certo que a eleição ficará entre Bolsonaro e Lula.

Acha possível que Lula faça como Cristina Kirchner fez na Argentina e, em nome de uma coalizão mais ampla, se coloque como candidato a vice?
Acho que a probabilidade é baixa. Não me parece algo que o PT faria, ainda mais considerando esse desenho das pesquisas.