A logtech naPorta ilustra à perfeição uma das máximas do ecossistema dos negócios de impacto - a tecnologia pela tecnologia não significa muita coisa; a inovação surge do uso que se faz dela.

Fundada em 2021, a startup recorreu a uma ferramenta lançada pelo Google, há quase dez anos, para tirar da invisibilidade os moradores das chamadas “áreas de restrição” – um eufemismo para falta de endereço formal.

Só nas favelas e periferias brasileiras, são 36,2 milhões de pessoas. Levadas em consideração, as zonas rurais, as comunidades ribeirinhas, quilombolas, o número dos sem código de endereçamento postal vai às alturas.

Quem tem CEP não imagina a falta que faz. Mas a vida sem aquele conjunto de oito números pode ser bem complicada. De cada dez residentes de favelas, sete já deixaram de adquirir algum produto pela internet por não ter como recebê-lo em casa, revela estudo da Central Única das Favelas (Cufa).

Recém-concluído, o projeto-piloto da naPorta usou o “Plus Code” para endereçar digitalmente 100% das moradias das favelas dos Sonhos e Itaprata, em Ferraz de Vasconcelos, na zona leste da Grande São Paulo. Uma ação inédita no Brasil.

Baseado nas coordenadas de latitude e longitude, o sistema apresentado pelo Google gera uma sequência randômica de números, letras e caracteres especiais, para localizar um ponto no mapa. Bastante precisa, a ferramenta distingue casas distantes um metro umas das outras.

A iniciativa da naPorta contou com a colaboração do Google e da ONG Gerando Falcões e o apoio financeiro do programa ImpactaMOB, fruto da parceria entre a Fundação Grupo Volkswagen e a aceleradora Artemisia.

Iniciativa inédita

Rua por rua, durante duas semanas, a equipe da logtech esquadrinhou as comunidades, para então criar os “plus codes”. Em seguida, placas com o “CEP digital” foram afixadas em locais estratégicos. Cada uma das 350 casas das favelas dos Sonhos e Itaprata e seus cerca de 1,4 mil moradores passaram a ser facilmente localizáveis.

O “CEP digital” está integrado ao Google Maps. Basta o entregador jogar o código no campo de endereço do aplicativo, para o trajeto a ser percorrido aparecer na tela. Isso faz uma baita diferença.

A ideia agora é, até o fim do ano, estender o projeto para outras três comunidades, também em São Paulo. “Não queremos entregar apenas encomendas”, diz Katrine Scomparim, CMO da naPorta, em conversa com o NeoFeed. “Queremos entregar acesso às pessoas.”

A ausência de CEP é fator de exclusão e aprofundamento das desigualdades. Fornecê-lo, uma questão de “cidadania postal”. Criado pelos Correios, em 1971, o código garante o acesso a alguns dos direitos sociais mais básicos.

O CEP é essencial para fazer o cadastramento em órgãos governamentais, matricular as crianças na escola, tirar documentos, usufruir das políticas públicas de saúde, abrir conta em banco e até mesmo chamar uma ambulância em caso de emergência. A falta do código atrapalha até o trabalho dos recenseadores do IBGE. Como chegar sem saber aonde ir?

Por lei, os Correios não são obrigados a fazer uma entrega porta a porta, em áreas de difícil acesso, sem agências ou centros de distribuição próximos ou consideradas de risco. Mas, em um mundo como o nosso, ultraconectado, de serviços a um toque de distância, é um contrassenso manter todas essas pessoas fora do mapa.

Fonte de riqueza

Em termos de negócios, as favelas brasileiras têm o potencial de movimentar R$ 202 bilhões, por ano. Apenas no comércio eletrônico, seriam R$ 80 bilhões. Não custa lembrar, 90% dos moradores são bancarizados e estão conectados à internet, nas contas do Instituto Data Favela.

A naPorta nasceu com o objetivo de conectar essas duas pontas. A ideia da empresa foi de Sanderson Pajeú, CEO da logtech. Criado na periferia do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo, ele conhece o drama da vida sem CEP. Juntaram-se a ele na empreitada Katrine; Leonardo Medeiros; COO, e Rodrigo Yanez, CFO.

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Os fundadores da naPorta (da esq. à dir): Leonardo Medeiros, Rodrigo Yanez, Katrine Scomparim e Sanderson Pajeú

“Começamos como uma startup de ‘última milha’ e nos transformamos em uma empresa de LaaS (logistics as a service)”, conta a empreendedora. No início, a logtech coletava os produtos nos armazéns e os levava até os compradores. Hoje a logtech oferece uma batelada de serviços de logística. Entrega agendada, operação interestadual, logística reversa e operações crossdocking, por exemplo.

Com 12 clientes na carteira, como C&A, Riachuelo, Magazine Luiza e Americanas, a naPorta está em 20 favelas no eixo Rio-São Paulo. Seis delas dispõem de agências de distribuição, da própria startup. A meta para 2024 é mapear outras cem localidades, no mínimo.

Os cerca de 100 entregadores da logtech são moradores locais, o que agiliza o processo, já que eles conhecem por onde circulam. E, graças a esse modelo de operação, cerca de R$ 500 mil foram injetados de volta nas favelas. Além disso, 80% das encomendas são transportadas de bicicleta, reduzindo assim a pegada de carbono das operações.

A startup já passou por cinco grandes acelerações – Founder Institute (FI), Google for Startups, GB Ventures e BNDES Garagem. A empresa recebeu ainda alguns reconhecimentos importantes, como o primeiro lugar na HackBrazil, nos Estados Unidos.

E, desde o ano passado, a naPorta fez cerca de 100 mil entregas, impactando a vida de, pelo menos, 50 mil pessoas. Que diferença faz ter um CEP para chamar de seu.