NOVA YORK - Desde o ano passado, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) vem lutando uma batalha para convergir a inflação para a meta de 2%. Via aumento dos juros, ele está puxando o freio de mão na economia americana, tentando esfriar o mercado de trabalho, principal motivo para impulsionar os preços.
Empurrando os EUA para uma recessão, ainda que leve, muito possivelmente a autoridade monetária vai conseguir domar a inflação e reduzi-la dos patamares atuais – em março, a taxa anual atingiu 5%, desacelerando dos 6% apurados em fevereiro.
Mas a expectativa de que a inflação americana chegue em 2% e se mantenha neste patamar, como visto nos últimos anos, é algo que ficou no passado, segundo Andrew Hollenhorst, economista-chefe para Estados Unidos do Citi.
“Acredito que não vamos voltar para uma economia parecida com o visto antes da pandemia, especialmente pelo lado da inflação”, diz Hollenhorst, em entrevista ao NeoFeed. “Viemos de uma década e meia em que os juros estavam próximos de zero, em que a inflação não era uma questão, mas isso deve mudar.”
Para Hollenhorst, a inflação nos Estados Unidos vai começar a ser influenciada por fatores estruturais, como a desglobalização e a transição energética. São dois fatores que terão efeitos positivos sobre os preços e que o Fed não será capaz de controlar via política monetária.
A consequência será forçar uma discussão sobre a meta de inflação, avaliando se um objetivo de 2% é o melhor neste cenário. “Existem razões para pensar que vamos viver num mundo fundamentalmente mais inflacionário. Então, talvez seja difícil obter uma inflação de 2%”, diz Hollenhorst.
Atualmente, com a meta de inflação em 2%, o Fed vem enfrentando dificuldades em esfriar o mercado de trabalho. O setor de serviços tem sido o maior “vilão”, se beneficiando de uma demanda reprimida das pessoas que têm dinheiro no bolso e querem gastar.
Mesmo assim, aos poucos, a autoridade monetária está conseguindo frear a economia. E nesta “missão”, conta com um aliado improvável, e de certa forma não muito bem-vindo: a recente crise bancária.
Embora a situação esteja longe de ser algo similar ao que aconteceu em 2008, quando a quebra do Lehman Brothers levou a uma crise financeira global, ela está levando a uma redução do crédito, o que contribui para desacelerar a economia e baixar a inflação.
Esta situação deve fazer a economia dos Estados Unidos contrair a partir do quarto trimestre deste ano, em uma recessão que Hollenhorst chama de “queimada controlada” pelo Fed.
“Historicamente, recessões que não são como a que aconteceu durante a crise financeira, tem-se de dois a três trimestres de contração”, afirma. “É isto que estimamos, contração no quarto trimestre deste ano e no primeiro trimestre de 2024, e aí a economia começa a se recuperar.”
Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:
Qual a situação da economia americana, agora que o sistema bancário está sob escrutínio?
Quando o estresse bancário emergiu em março, estávamos confiantes em relação à resposta regulatória, porque a corrida bancária é o risco mais clássico enfrentado pelos bancos e existe regulação para isso. E o Fed respondeu com instrumentos de liquidez, para evitar uma rápida desalavancagem do sistema bancário. Uma preocupação era que a queda dos depósitos forçaria venda de ativos para elevar liquidez, depreciando o preço desses ativos e contaminando o sistema como um todo, ao gerar incertezas sobre a situação dos outros bancos. O Fed tomou medidas bastante poderosas em relação à liquidez. Os dados mostram que a situação se estabilizou, em termos de recursos tomados pelos bancos com o Fed e os depósitos bancários. Recentemente, os investidores passaram a olhar o modelo de negócios dos bancos, para ver se são sustentáveis num ambiente de juros altos. Esta é uma questão mais complexa, porque, ao contrário do caso dos depósitos, em que existem ferramentas para lidar com a situação, uma perda de confiança no sistema bancário pode desestabilizar o sistema e a macroeconomia. Não parece ser o caso, mas é um risco que monitoramos.
Como esta questão afeta a atividade econômica dos Estados Unidos?
Existe um aperto das condições de crédito, que deve ter algum efeito sobre a atividade. Ninguém sabe o tamanho do impacto. E esse é um desafio para o Fed, que está tentando desacelerar a economia. Eles estão elevando os juros e parecia que isso não estava tendo muito efeito em desacelerar a economia. Agora, com esse aperto de crédito pelos bancos, pode desacelerar um pouco mais. Parece que o país está evitando um aperto muito forte de crédito que afetaria a economia de uma maneira mais preocupante. A desaceleração que devemos ter [por conta do crédito] deve ser menos intensa e gradual, podendo até ser difícil de detectar nos dados.
Existe algum risco de um agravamento da situação bancária, levando a um forte aperto na concessão de crédito?
Não estamos vendo uma redução dramática do crédito dos bancos no momento. Existem preocupações e riscos, e não quero subestimá-los. Mas, até o momento, esse contágio não se materializou, os problemas ficaram localizados em alguns bancos. Por conta desse risco, o que devemos ver é algumas atividades menos favorecidas por crédito. Vemos que pequenos negócios sentem agora menos disponibilidade de crédito. É uma redução gradual de crédito, mas ainda difícil de quantificar. Nossas estimativas apontam que isso deve pesar aproximadamente 0,10 ponto percentual no crescimento do PIB. É um fator relevante, tem ajudado no processo de desaceleração da economia, mas não será isso que vai jogar os Estados Unidos numa recessão por si só.
"Estimamos que os consumidores pouparam mais de US$ 2 trilhões e gastaram cerca de US$ 1 trilhão até o momento"
Qual a perspectiva para a economia americana neste cenário? Ela ainda entrará em recessão?
Nós esperamos que a economia dos Estados Unidos entre em recessão. Nossas estimativas, e vale ressaltar que ainda não estamos totalmente certos quanto a isso, é que comece no quarto trimestre deste ano. Antes, nós esperávamos que fosse no terceiro trimestre, mas os dados estão vindo relativamente fortes. Para trazer a inflação para baixo, será preciso desacelerar mais a economia, desaquecendo o mercado de trabalho, levando a taxa de desemprego para cima. Mas quando se olha os dados, não há nada que aponte para uma recessão no curto prazo. O mercado de trabalho tem sido o setor da economia americana mais resiliente. Estavam sendo criados cerca de 300 mil postos por mês, isso desacelerou um pouco, para 250 mil, e parece que o ritmo está indo para cerca de 200 mil. Isso é boa notícia para o Fed, porque eles querem ver uma desaceleração na criação de postos de trabalho. O problema é que 200 mil é um ritmo que vai fazer com que a taxa de desemprego continue caindo. Para manter a taxa estável, até subir, seria preciso a criação de 100 mil empregos por mês. Mas a demanda por trabalhadores ainda está superando a oferta.
Algum setor tem se mostrado mais aquecido?
Os empregos tem se mostrado mais resilientes no setor de serviços, em restaurantes, turismo. Essas áreas tiveram pouco consumo no auge da pandemia. São nestes setores que vemos demanda reprimida, com os recursos poupados pelos consumidores durante a pandemia sendo gastos. Antes as pessoas estavam gastando mais em bens, mas isso está mudando para serviços. É aí em que está o desequilíbrio entre oferta e demanda. Estamos vendo a inflação de bens desacelerar, os preços dos alimentos não estão subindo tanto quanto antes, o preço da gasolina está menor do que há um ano. A inflação está em serviços como restaurantes, viagens, saúde e educação, que são muito intensos em termos de mão de obra. São nesses segmentos em que se vê pressão salarial, com uma disponibilidade de mão de obra escassa e pressão de preços. É um tipo difícil de inflação para o Fed controlar, ao contrário do que ocorreu com bens, com a volta à normalidade das cadeias de fornecimento.
Não existe perspectiva de redução deste consumo de serviços, considerando a inflação e os juros em alta?
Durante a pandemia, as pessoas não estavam indo a restaurantes ou viajando, e teve ainda uma resposta fiscal muito forte, mais do que compensando a perda de renda. A renda subiu e o consumo caiu, e a taxa de poupança, que normalmente roda entre 5% e 8% da renda disponível, ficou em 30% ou acima. É muito recurso poupado. E com a abertura da economia, a taxa de poupança começou a voltar aos patamares normais, até abaixo. Em termos agregados, estimamos que os consumidores pouparam mais de US$ 2 trilhões e gastaram cerca de US$ 1 trilhão até o momento. Não necessariamente os outros US$ 1 trilhão serão gastos, porque essa poupança extra está ficando mais desigual ao longo do país, com pessoas de alta renda ainda tendo esses recursos e os mais pobres tendo que gastar por conta dos maiores preços dos combustíveis, dos alimentos. Isso não deve ser um suporte à economia indo adiante, e é uma das razões que achamos que a economia pode desacelerar e ir em recessão. Mas os dados que olhamos ainda são fortes em termos de gastos.
Como fica o Fed diante da situação econômica?
O trabalho do Fed é difícil. Até as questões no setor bancário, não haviam muitos sinais, tirando o setor de construção, de que houve uma desaceleração por conta da atuação do Fed. A inflação ainda está elevada e os salários ainda estão muito elevados para que a inflação fique em 2%. O Fed estava sinalizando em suas comunicações que antecipavam a necessidade de elevar ainda mais os juros. Na semana passada, ele mudou esta declaração, dizendo que não antecipa novas altas, mas deixou a porta aberta para avaliar os dados e decidir se vai elevar os juros ainda mais. Os mercados estão precificando que o Fed não vai elevar, que vai cortar. Nós achamos que ele deve continuar elevando os juros, dependendo dos dados que vierem. Mas se a inflação permanecer alta, eles podem ficar numa situação complexa, por questões de estabilidade financeira. Os juros altos são parte do motivo da instabilidade no setor bancário.
Existe a possibilidade de o governo atuar do lado fiscal para evitar a recessão?
Com esta questão do teto de gastos, estamos vendo uma forte divisão política no país, com os dois partidos tendo maiorias pequenas nas duas casas do Congresso. É muito difícil ver uma forte resposta fiscal, a não ser que a situação realmente se deteriore. Não devemos ver o Legislativo se unindo para passar uma política fiscal. Vimos uma união durante a pandemia, em 2020, mas fora um cenário do tipo, de pandemia, dificilmente republicanos e democratas vão se unir para evitar uma recessão. Mas existe outra questão, que parte do que estamos lidando é consequência de dois pacotes fiscais muito generosos, que estimularam muito o sistema. Teria que vir um pacote fiscal com muitas nuances, diminuindo a demanda, mas não a ponto de levar a uma recessão. É até possível pensar em políticas fiscais que ajudem a endereçar a inflação e limitar a inflação, como redução de gastos e transferir recursos para quem perdeu empregos, especialmente aqueles com remuneração mais baixa, mas a realidade política é que dificilmente essas medidas passariam no Congresso.
"A inflação está em serviços como restaurantes, viagens, saúde e educação, que são muito intensos em termos de mão de obra"
Qual será a duração desta recessão nos Estados Unidos? Ela consegue voltar a crescer em 2024?
Vemos a recessão como a combinação entre a política monetária do Fed e a redução dos efeitos dos estímulos fiscais da época da pandemia. Se for esse o caso, será tipo uma queimada controlada. Mas assim como uma queimada controlada, ela pode sair de controle e provocar um verdadeiro incêndio. Historicamente, recessões que não são como a que aconteceu durante a crise financeira, tem-se de dois a três trimestres de contração. É isto que estimamos, contração no quarto trimestre deste ano e no primeiro trimestre de 2024, e aí a economia começa a se recuperar. A esperança implícita destas previsões é que estes dois trimestres de contração façam com que a taxa de desemprego suba o suficiente para desaquecer o mercado de trabalho e traga a inflação para baixo. É muito doloroso ter que fazer isso, mas abriria caminho para o Fed reduzir os juros, ajudando a economia a retomar.
Quando você vê a inflação voltando para a casa dos 2%?
Acredito que não vamos voltar para uma economia parecida com o visto antes da pandemia, especialmente pelo lado da inflação. Se a taxa de desemprego subir, provavelmente veremos índices de inflação perto de 2%. Isso pode ocorrer ao longo do próximo ano. Não é que nunca veremos inflação de 2%, mas não acho voltaremos ao que era antes da pandemia.
Por quê?
Tem duas questões estruturais. A primeira é que estávamos num processo de várias décadas de globalização, mas agora não temos mais isso. Ao longo do processo de globalização, foi-se integrando diversas economias com baixos custos de produção, com os países encontrando encontrando locais onde se pode encontrar bens com baixos custos, onde se pode terceirizar mão de obra. Se este processo se esvaiu, não existe mais pressão negativa sobre os preços. Outra grande questão para os próximos cinco ou dez anos é a transição energética, um processo que deve ter efeitos inflacionários e voláteis, com exemplos recentes na Europa. Um dos principais insumos de produção está sendo alterado. Temos atualmente uma matriz energética bem entendida e com bastante capacidade e estamos mudando para novas tecnologias cuja capacidade está sendo construída. Começamos a ver essa volatilidade nos preços de energia e devemos ver isso nos próximos cinco anos. Viemos de uma década e meia em que os juros estavam próximos de zero, em que a inflação não era uma questão. Isso deve mudar neste mundo pós-pandemia.
Isso quer dizer que o Fed está perseguindo um alvo em movimento? O que ele vai ter que fazer? Mudar a meta de inflação?
Isso [mudar a meta] deve ser cada vez mais considerado nos próximos anos. Acho que muitos banqueiros centrais diriam que, sabendo o que vimos nos últimos 20 anos, uma meta de inflação de 2% é muito baixa. Como falei, existem razões para pensar que vamos viver num mundo fundamentalmente mais inflacionário, então talvez seja difícil obter uma inflação de 2%. Tem quem defenda que uma meta de 3% seja melhor. O problema é que não pode anunciar com credibilidade mudar a meta para 3% quando você já está descumprindo a meta de 2%. Então, é preciso voltar a inflação para 2%, ou pelo menos perto disso, para o Fed mostrar que tem credibilidade, de que ele vai cumprir com aquilo que se propôs. E, a partir daí, ter um debate sobre uma mudança na meta de inflação. Estou menos confiante de que a meta vai mudar, mas acredito que a forma como ela é vista deve mudar.
Por quê?
O que quero dizer é que não medimos inflação de uma forma tão precisa. Então, a ideia de que temos uma meta de 2% para a inflação é um pouco extremo e limita a flexibilidade dos bancos centrais. Você pode ficar com uma meta de 2%, mas dizer formalmente que aceita inflação entre 1,5% e 3%, o que permitiria aos bancos centrais ter mais flexibilidade. Não sei se a meta vai mudar, mas com certeza é algo que será considerado nos próximos anos.