O governo federal não tem controle dos gastos públicos, não vai atingir a meta fiscal de zerar o déficit em 2024 e ainda fatura com os juros altos, à medida que arrecada na ponta, com imposto de renda sobre as remunerações financeiras advindas dos juros.

É o que afirma Paulo Rabello de Castro. Doutor em economia pela prestigiada Universidade de Chicago, Rabello foi professor de pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, presidente do IBGE e do BNDES no governo Michel Temer e autor de vários livros. Hoje, atua como consultor.

“Chegamos à curiosa e paradoxal conclusão de que não só ‘gasto é vida’ como também ‘juro é vida’”, diz Rabello, nesta entrevista ao NeoFeed, referindo-se à política fiscal atual governo.

O economista sustenta que, desde o Plano Real, a economia brasileira adotou uma “doutrina de juros altos” como método de controle da inflação que estimulou os gastos primários dos governos que se seguiram e foi prejudicial à atividade produtiva, em especial a indústria.

Rabello chegou a essa conclusão por meio de um levantamento da evolução da economia brasileira a partir de 1995, após o Plano Real. Enquanto os juros cresceram 4.136,4% no período, os gastos primários avançaram 2.177% e o PIB (Produto Interno Bruto) bem menos, 1.528,9%. A inflação acumulada foi de 466%.

“O Plano Real tem como limitação endógena ser um plano só de estabilização”, afirma ele. “O importante é a danada da taxa de inflação, o que é bom, só que falta a outra perna, que é um plano de estabilização com crescimento econômico.”

Essa preocupação com a inflação, diz Rabello, acabou gerando distorções, como uma política monetária rígida. Num país como o Brasil, com forte resquícios de correção monetária automática, a meta de inflação deveria ser de 5%, com o compromisso de fazer menos. “Estamos propondo 3% para nunca cumprir esse índice”, lamenta.

O arcabouço fiscal, que limita o crescimento da despesa à variação da receita, e não ao crescimento do PIB, reforça esse erro, pois estimula o aumento da carga tributária. “Considero o arcabouço nojento, porque é uma conspiração permanente contra o aumento do PIB e da produtividade.”

Rabello também critica a reforma tributária e comenta a nomeação de Gabriel Galípolo no Banco Central e sua passagem pelo BNDES, que segundo ele virou o maior financiador do agronegócio brasileiro.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O governo cortou despesas, fez contingenciamentos e analisou os gastos item por item. É suficiente para atingir a meta fiscal em 2024?
O Fernando Haddad, como ministro, é um excelente comunicador. E um excelente dentista, porque consegue extrair dentes sem anestesia e as pessoas ainda saem sorrindo. As contas primárias vão muito bem, obrigado. Claro, é uma ironia, porque o nível de gasto está no limite do exagero. Olhando o comportamento dos últimos 12 meses, em termos de despesas sobre receita, temos cerca de R$ 250 bilhões de resultado primário negativo, é muita boa vontade e expectativa otimista que esses números possam convergir ao longo desses últimos meses do ano para uma faixa inferior a R$ 100 bilhões - a não ser por manobras, como de fato costumam acontecer no fim de ano. Há, sim, uma lassidão fiscal enorme que, inclusive, explica em grande parte essa exuberância do consumo nos últimos meses.

"Há uma lassidão fiscal que explica essa exuberância do consumo"

Em que sentido?
Porque nunca se acrescenta, na análise aprofundada, a chamada despesa financeira. São cerca de R$ 800 bilhões de encargos financeiros pagos aos detentores de títulos do governo. Uma parte é detida por fundos e posições no exterior, outra parte gera liquidez no ambiente interno. E chegamos à curiosa e paradoxal conclusão de que não só “gasto é vida” como também “juro é vida”. O governo também é sócio dessa gastança de juros, na medida em que ele mesmo arrecada na ponta, no pagamento do imposto de renda sobre as remunerações financeiras.

O arcabouço fiscal não está conseguindo controlar a expansão do déficit público?
Não está porque, da mesma forma que o antigo teto de gastos, tem erros conceituais. O teto de gastos só admitia evolução nominal da despesa por conta de um acompanhamento inflacionário, mas deveria estar atrelada ao acompanhamento da evolução real da economia. O arcabouço limita o crescimento da despesa à variação da receita. Mas a receita não é neutra no Brasil - esse é um outro dado importante.

Como isso impacta no funcionamento do arcabouço?
O País sofre de um problema de receita no sentido macroeconômico, não no sentido tributário. A receita tributária consegue dar respostas positivas às piores situações. Mas, sob o ponto de vista macroeconômico, o governo consegue, cada vez mais, arrancar dos setores produtivos, das empresas e das famílias um bom dinheiro para gastar em rubricas de duvidosa produtividade. Ou seja, está trocando mais produtividade por menos produtividade. A regra do arcabouço, portanto, também não é boa.

Qual seria uma regra boa?
Aquela que sugeri referente ao teto de gastos: tem de atrelar ao indicador de PIB real. Ou seja, o pagador de impostos é que tem que estar bem. Eu não posso extrair de ninguém o que não tem para dar. Qualquer outra relação é iníqua. Portanto considero o arcabouço nojento, porque é uma conspiração permanente contra o aumento do PIB e da produtividade.

Você diz que o País adotou, desde o Plano Real, uma  “doutrina de juros altos” para controle da inflação que foi prejudicial à atividade produtiva. Isso foi um erro conceitual do plano ou dos governos que o sucederam nos últimos 30 anos?
O Plano Real teve de fato uma limitação fundamental. O tema do desenvolvimento econômico, da retomada do crescimento, nunca foi o capítulo fundamental, no máximo um apêndice. Ou seja, o Plano Real tem como limitação endógena ser um plano só de estabilização - e como plano de estabilização continua estabilizando até hoje.

O que faltou?
Se você observar, não tem plano de crescimento, mas plano de estabilização - que é a meta de inflação, o comportamento do Banco Central, etc. Nenhum outro tema foi priorizado. O importante é a danada da taxa de inflação, o que é bom, só que falta a outra perna, que é um plano de estabilização com crescimento econômico.

"Além da estabilização, faltou ao Plano Real privilegiar crescimento da economia"

Como seria um plano que concilia estabilização com crescimento?
Precisamos de medidas de destravamento da economia. Vou dar um exemplo: o grau de complexidade que é a precificação de energia no Brasil. Veja a quantidade de porcaria que o consumidor de energia cativo tem de pagar – pagamos mal e muito na conta de luz – e, por trás de cada uma dessas travas, tem um grupo de interesse. Não estou querendo camuflar o extremo grau de dificuldade política. Mas se destravar o setor de energia, que é apenas um exemplo, voltando a praticar uma média ponderada de todos os preços praticados sob várias formas de energia, o Brasil já anda para frente.

É possível afirmar que essa elevação dos juros acaba induzindo o crescimento do gasto primário do governo, que após os juros foi o que mais cresceu desde o Plano Real?
Com certeza. É o tal do crowding out [quando o governo eleva os gastos públicos, mas taxas de juros sobem e diminuem investimentos privados]. Não gosto de usar esses termos em inglês, mas numa tradução possível significa expropriação. Ou seja, retira, extrai, se apropria de uma determinada quantidade de recursos que, no caso, é crescente. O governo tira “dinheiro bom” jogando, na média, em atividades que são de duvidosa rentabilidade e, portanto, congelando a produtividade, geral e econômica. O impacto sobre a taxa de crescimento do PIB é imediato.

E por isso prejudica a indústria?
Sim, a indústria precisa ter um tratamento mais equânime. Basta citar a discussão da reoneração da folha de pagamento de 17 setores: a deliberação do Senado não tem pé nem cabeça, porque estão querendo discutir apenas o lado de repor verbas para o governo federal, deixando de lado a chave da questão - a percepção de que as alíquotas previdenciárias no Brasil são altas demais, são custo para a indústria.

Ou desonera todos os setores ou nenhum?
Não posso agora deixar de desonerar, ainda que sejam 17 segmentos, para reonerá-los sem debater, na mesma vírgula, como vou desonerar todos. Aí teríamos um destravamento previdenciário que vai exigir algo num nível superior, uma nova reforma da Previdência.

Mas o governo Bolsonaro, via ministro Paulo Guedes não fez a reforma da Previdência?
Guedes fez para onerar, tanto que ele dizia que ia conseguir R$ 1 trilhão em dez anos. Trata-se de uma visão fiscalista, o que não é muito bonito para alguém que fez o doutorado na Universidade de Chicago. Pela regra de incentivos, como professor de economia, ele deveria saber que, se onera alguma coisa, o custo sobe e a quantidade demandada baixa. Ou seja, vai ter menos gente contribuindo para a Previdência. Além do mais, deixou uma janela aberta, que é a lei do MEI (microempreendedor individual) – relacionada a uma regra previdenciária, entre outras vantagens, desequilibrada em relação ao custo previdenciário ordinário.

O IPCA fechou o mês de julho com índice anualizado de 4,5%, teto da meta de inflação. O que preocupa mais: a inflação ou a taxa de juros?
A taxa de juros, sem dúvida - eu não pago a inflação. A inflação se paga quando começa a ficar mal comportada, com alguma tolerância e flexibilidade no Brasil, que tem forte resquícios de correção monetária automática anual, que está na cabeça das pessoas. Assim, chegamos em 3% de inflação, que seria o centro da meta, só com as bobagens feitas na gestão dos chamados preços administrados pelo próprio poder público, que estão puxando a inflação. Há um contrassenso, uma falta de lógica.

"Posso usar o termo 'juro neutro' de forma sarcástica para dizer que, onde quer que o juro neutro esteja, o juro do BC consistentemente estará acima dele"

Qual meta de inflação seria razoável dentro da nossa realidade?
A ideia é pautar 5%, para fazer menos. Estamos propondo 3% para nunca cumprir esse índice. Ou seja, damos para o Banco Central a desculpa para estar sempre praticando uma taxa de juros acima do que se consideraria como juro neutro, conceito, aliás, que também não gosto. Juro neutro é a mesma coisa que você dizer que passou secretamente a noite com uma lindíssima estrela de cinema – não vai conseguir provar isso nunca. Posso usar o termo “juro neutro” de forma sarcástica para dizer que, onde quer que o juro neutro esteja, o juro do BC consistentemente estará acima dele. O juro básico do Brasil é o mais alto do planeta.

O governo está perdendo cada vez mais o controle do Orçamento para o Legislativo. Qual o impacto nas contas públicas?
Esse açambarcamento, por assim dizer, do controle da despesa não é só pelo Legislativo, mas pelos grupos de interesses. É precisa lembrar que ainda estamos sob a Constituição Federal de 1988, que tornou rígida e engessou a toda a estrutura de gasto no Brasil e indexou rubricas importantes, como as de salários e da Previdência Social. Merece uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) reparadora.

Estamos com a reforma tributária encaminhada. Qual é sua expectativa?
O problema é que a reforma mantém outro conceito engessador da Constituição de 1988 – a regra de que mais 50% do total arrecadado com as receitas federais de impostos têm de ser compartilhado com os estados e municípios. Com isso, a produtividade da arrecadação adicional é sempre dividida com sócios passivos. Sob a reforma, o governo é sócio de um imposto federativo, que é o IVA (Imposto de Valor Agregado), que por sua vez foi dividido na IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) na CBS (Contribuição Sobre Bens e Serviços).

A ideia não é caminhar juntas?
Por mais que digam que agora vão caminhar como irmãos siameses, é uma baita confusão: são legislações, embora parelhas, que representam categorias tributárias distintas - uma é imposto e a outra, contribuição. Não precisava ser assim. Poderíamos ter uma verdadeira simplificação tendo só o IVA, desde que se conseguisse descruzar a receita dessa CBS com a receita que é partilhada hoje no imposto de renda.

É possível prever mudança radical na política monetária com o BC sob comando de Gabriel Galípolo?
Mudança radical, só se o Galípolo quiser ser preso... A gente se fixa na pessoa do presidente do BC. Mas o poder real do cargo é limitado. Ou seja, influi bastante, mas mandar e desmandar, só se quiser ser preso, porque tudo é decidido de forma colegiada.

A autonomia do BC é uma conquista?
A principal autonomia do Banco Central não é nem da lei, é o respeito que os brasileiros têm pelo trabalho do BC, composto, diga-se de passagem, por diretores sérios. Assim, a verdadeira autonomia é a vontade dos brasileiros de não deixar escapar o controle inflacionário, independentemente da regra - e a regra realmente é o BC. O problema é que se estabeleceu o sistema de metas de inflação a partir de 1999, com uma rigidez de compromisso que não conversa com o compromisso fiscal.

Onde essa discussão deveria acontecer?
O Conselho Monetário Nacional (CMN) deveria ser o lugar dessa discussão entre a política fiscal e a política monetária. Mas é um ente simplesmente de formalidade. Com isso, o Banco Central tem a responsabilidade final de fazer o ajuste de uma política fiscal desorientada.

Houve mudanças profunda de gestão entre os governos Bolsonaro e do governo Lula no BNDES. O banco deveria investir mais na indústria e na transição energética?
Essa priorização existe desde que por lá passei: economia verde, as cidades inteligentes e, por fim, a transição energética. Mas onde o banco faz mais barulho hoje é no investimento ao agronegócio. Nada contra, tudo a favor, mas o banco está se tornando, sem que as pessoas percebam, no maior financiador do agronegócio brasileiro. A vocação anterior era mais voltada à indústria manufatureira, à infraestrutura e à exportação de serviços – tão mal falada, mas que foi uma abertura de mercado extraordinária. Cabe ao governo dar ênfase a alguns segmentos e quem quiser pedir, se tiver condição técnica e cadastro adequado, obtém financiamento. O que não temos tido é a capilaridade para levar esse crédito de forma mais direta nos estados, um programa que infelizmente eu não consegui implantar a tempo.