O tratado comercial entre o Mercosul e a União Europeia, que começou a ser negociado em 1999, passou por idas e vindas de intermináveis, discussões entre representantes dos dois blocos e, nos últimos meses, ganhou impulso rumo a um acordo definitivo.
Mas, nesta segunda-feira, 4 de dezembro, voltou praticamente à estaca zero. Em apenas três dias, toda a costura diplomática articulada pelo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva desde a sua posse, em janeiro deste ano, para finalizar o acordo, acabou atropelada pelas críticas contundentes ao tratado por parte do presidente francês, Emmanuel Macron, no sábado, 2 de dezembro, nas quais ele se disse preocupado com a “falta de metas ambientais” do Brasil.
Na prática, Macron se valeu de um argumento ambiental para ceder à pressão dos agricultores franceses em barrar a entrada de produtos agrícolas sul-americanos no mercado europeu, onde teriam grande competitividade.
Desde 2019, a União Europeia vinha exigindo a inclusão de sanções em caso de descumprimento de metas ambientais de desmatamento, o que foi mal-recebido pelo bloco sul-americano. Mas o item era considerado negociável, passível de entendimento.
O que pesou para o desânimo dos diplomatas dos dois blocos foi o momento escolhido por Macron para inviabilizar o tratado – logo após uma reunião com Lula em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde os dois estiveram para a Conferência do Clima da ONU (COP28).
O presidente francês disse que o acordo é "antiquado" e "entra em contradição" com as políticas ambientais dos dois países e deixou claro ser contra a assinatura.
Lula reagiu com irritação no dia seguinte. “A única coisa que tem que ficar claro é que não digam mais que é por conta do Brasil e que não digam mais que é por conta da América do Sul”, disse ao deixar Dubai, no domingo, rumo a uma visita à Alemanha.
Antes da COP, uma eventual resistência ao tratado do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, havia levado Lula a tentar acelerar a assinatura do acordo. Na semana passada, porém, Milei se disse favorável ao tratado – mas seu recuo acabou ofuscado pela ofensiva de Macron.
O cancelamento, anunciado nesta segunda-feira, da viagem ao Brasil que o comissário do comércio da União Europeia, Valdis Dombrovskis, faria nesta semana para finalizar os termos do acordo comercial do bloco com o Mercosul jogou mais uma pá de cal na possível assinatura do tratado.
Dombrovskis foi convidado para a reunião da cúpula do Mercosul, que ocorre nos dias 6 e 7 de dezembro, no Rio de Janeiro, quando o acordo com a União Europeia seria assinado.
Em Berlim, após se reunir com o chanceler alemão Olaf Scholz, Lula mudou o discurso e avisou que não vai desistir da conclusão do acordo entre os dois blocos. "Só posso dizer para você que não vai ter assinatura (do acordo) na hora que terminar a reunião do Mercosul, que eu tiver o “não” da União Europeia”, disse.
O Brasil preside o Mercosul, também formado por Argentina, Paraguai e Uruguai, até este mês. O presidente paraguaio, Santiago Peña, que assumirá a liderança rotativa do bloco, já declarou que se Lula não concluir o acordo, não prosseguirá com as negociações nos próximos seis meses
"Compras governamentais"
Após o recuo de Macron, o presidente brasileiro tomou precauções para não ser responsabilizado pelo fiasco do acordo com a União Europeia – ou ao menos relativizar a importância do tratado.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico nesta segunda-feira, o assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, disse acreditar que o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia (UE) “oferece pouco” e “exige muito” do bloco sul-americano.
“Vale a pena ter um acordo de livre comércio, ainda que não seja o ideal, só por ter? E essa é a decisão difícil que se vai ter que tomar”, afirmou.
Um dos pontos que vinha incomodando o Brasil eram as chamadas “compras governamentais”: a possibilidade de que empresas de países dos dois blocos participem com as mesmas condições de licitações governamentais realizadas em todos os países do acordo.
No entanto, Lula sempre rejeitou essa alternativa, por entender que os europeus se beneficiariam do poder de influência do governo brasileiro, sufocando as pequenas e médias empresas nacionais do Brasil e do próprio Mercosul.
O economista Paulo Feldmann, professor da FIA Business School, observa que o argumento ambiental usado por Macron já havia bloqueado a efetivação do acordo entre os dois blocos, assinado em 2019, no início do governo Jair Bolsonaro - os europeus se recusaram a colocá-lo em prática, alegando entre outras razões o forte desmatamento que vinha acontecendo na Amazônia.
No texto, previa-se que os produtos europeus teriam tarifas de importação reduzidas no Mercosul (principalmente nos setores industrial e alimentício) e que as exportações sul-americanas teriam preferência na União Europeia.
Com a mudança de governo no Brasil, a União Europeia reabriu as negociações e passou a exigir compromissos ambientais para desbloquear o acordo de livre comércio entre os dois blocos.
“Entre estes novos compromissos está a exigência de que todo produto sul-americano exportado para a Europa seja inspecionado e tenha uma espécie de selo verde” diz Feldmann.
Segundo ele, isto não constava do acordo assinado em 2019 e claramente foi incluído pelo agronegócio europeu, principalmente francês.
“A questão é que, de forma geral, o agronegócio brasileiro é mais produtivo, e isto gerou um temor principalmente entre os agricultores franceses”, afirma Feldmann.
Por outro lado, o acordo traria ganhos para o Brasil e o bloco sul-americano, criando um mercado consumidor de quase 720 milhões de pessoas e cerca de 20% da economia global, numa das maiores áreas de livre comércio do planeta.
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que cerca de 95% de todos os bens industriais teriam o imposto de importação zerado em até 10 anos ao entrarem no mercado europeu, sendo que mais da metade destes produtos, quase três mil bens industriais, teriam esse benefício imediato já na entrada em vigor do acordo.
Resta saber como ficarão as relações comerciais do País com o bloco europeu, que foi o segundo parceiro comercial do Brasil em 2022, com uma troca bilateral de mais de US$ 95 bilhões.
Além das conversas com a UE, o Mercosul também negocia acordos com a EFTA (países europeus que não integram a União Europeia), Canadá, Indonésia e Vietnã, por exemplo.
Para Lula, porém, o fiasco da assinatura do tratado comercial dos dois blocos vai privá-lo de ao menos uma das três grandes vitórias que o seu governo havia planejado para o primeiro ano de gestão: a reforma tributária, o arcabouço fiscal e a ratificação do acordo Mercosul-União Europeia.