Sou entusiasta da inteligência artificial (IA). E não é de hoje. Lembro que na adolescência devorava livros de Isaac Asimov, como a famosa trilogia “Fundação” e, principalmente, “Eu, robô”, que foi uma série de contos que são um marco na história da ficção científica, pela introdução das célebres Leis da Robótica e por um olhar completamente novo a respeito das máquinas.

Os robôs de Asimov conquistaram a cabeça e a alma de gerações de escritores, cineastas e cientistas, sendo até hoje fonte de inspiração de tudo o que lemos e assistimos sobre eles. Depois veio o inesquecível filme de Stanley Kubrick, “2001, uma odisseia no espaço” e com ele o HAL 9000 (Heuristically programmed ALgorithmic computer), um computador com avançada inteligência artificial.

Instalado a bordo da nave espacial Discovery e responsável por todo seu funcionamento, os diálogos de HAL 9000 com os atores me deixaram realmente impressionado com que o futuro poderia nos trazer.

Na última década, a IA renasceu e a ênfase foi direcionada para as redes neurais. Já temos os dois fatores essenciais: capacidade computacional disponível e abundância de dados. Em capacidade computacional, um simples smartphone tem mais poder computacional que um supercomputador Cray-2 de US$ 10 milhões de 1985. E na retaguarda desse smartphone temos nuvens computacionais com capacidades quase infinitas.

Por outro lado, estamos apenas no início da curva de aprendizado. E temos que separar o hype da realidade. Apesar da imensa e ainda inexplorada potencialidade da IA, temos ainda um longo e tortuoso caminho a percorrer na sua evolução e aplicabilidade.

Um hype exagerado, quando se coloca o termo IA apenas para tornar a startup mais valorizada ou para a empresa divulgar para o mercado que está modernizada e digital. E isso não contribui para essa evolução. Para beneficiar a evolução da IA, devemos aterrissar e esse é o propósito deste artigo.

Alguns anos atrás, havia um grande otimismo com a aplicação da IA. E esse otimismo escondia a realidade que colocar projetos em IA é muito mais difícil e trabalhoso que se pensava no início. Em 2016, a PwC (Sizing the prize :PwC’s Global Artificial Intelligence Study: Exploiting the AI Revolution) fez projeções que o impacto econômico da IA no mundo chegaria a US$ 15,7 trilhões em 2030. Em 2020, chegaria a US$ 1,2 trilhão.

Não havia sinais de pandemia no horizonte de 2016, claro, mas o impacto estimado chegou apenas a US$ 17 bilhões e os ajustes agora apontam que, para 2025, chegará a US$ 37 bilhões. Será muito pouco provável que, em 2030, cheguemos perto do número mágico de mais de US$ 15 trilhões.

O uso da IA na área de saúde é um exemplo emblemático. Estou intensamente envolvido com ações de IA nesse setor e vejo de perto as grandes dificuldades para o seu uso mais intenso. Vimos muitas expectativas grandiosas falharem. O caso do Watson é um exemplo. O texto “How IBM Watson Overpromised and Underdelivered on AI Health Care” é uma lição que se aprendeu a não se tentar um ”moonshot” de início. Não se pode ignorar a curva de aprendizado em IA.

Um recente artigo publicado na Quartz (AI has a long way to go before doctors can trust it with your life) mostra que o caminho é muito pedregoso. Ou seja, não é só aqui no Brasil que patinamos. Por exemplo, na área de radiologia. Geoffrey Hinton, um dos padrinhos do Deep Learning, declarou em 2016 que “devemos parar de formar radiologistas, pois é completamente óbvio que dentro de cinco anos, o DL será melhor do que os radiologistas”.

Embora existam hoje mais de 80 algoritmos aprovados pelo FDA americano e outros tantos aprovados na Europa (Approval of artificial intelligence and machine learning-based medical devices in the USA and Europe (2015–20): a comparative analysis), a IA não substituiu esses especialistas. Nos EUA o número de radiologistas cresceu cerca de 7% entre 2015 e 2019. O que aconteceu?

A IA foi superestimada. Imaginou-se que seria relativamente fácil fazer com que os algoritmos analisassem imagens com precisão. Na verdade, eles fazem isso, mas sua assertividade depende das imagens de treinamento e quando saem de um ambiente de testes, com imagens de alta qualidade, e caem no mundo real, com imagens menos nítidas e protocolos diferentes dos quais aprendeu, sua taxa de acerto cai significativamente.

Um recente estudo publicado na Radiology Business mostra que menos de 1/3 dos radiologistas americanos usam IA na sua atividade profissional (Only 30% of radiologists currently using artificial intelligence as part of their practice). Na verdade, apenas 40 dos 80 algoritmos aprovados pelo FDA e mais 27 criados internamente em hospitais e clínicas estavam sendo usados.

E desses, 34% eram usados para interpretação de imagens. Em resumo, apenas 11% dos radiologistas usavam IA para auxiliar a intepretação de imagens na sua prática médica. Dos que não usavam, 72% não tinham intenção de usar a curto ou médio prazo.

A principal razão é seu baixo desempenho. Menos de 6% disseram que a IA sempre funciona bem e 94% reportaram que o desempenho na assertividade é inconsistente e duvidoso. Andrew Ng foi sincero ao dizer: “Somos realmente bons em se sair bem em um conjunto de teste, mas, infelizmente, implantar um sistema exige mais do que se sair bem em um conjunto de teste.”

Vale a pena ler a entrevista dele (e ver a sua entrevista no vídeo de cerca de 1 hora) no artigo “Andrew Ng X-Rays the AI Hype”. Lembram-se da velha frase do futebol: “treino é treino, jogo é jogo?”. Pois é, aplica-se perfeitamente bem à IA.  No mundo real, em todos os setores, há um claro gap entre os resultados obtidos nos testes e projetos proof-of-concept.

Quem também reconheceu isso foi Sundar Pichai, CEO do Google, quando em entrevista disse que “ainda eram os dias iniciais da IA” e que seu rela potencial só seria conhecido de 10 anos a 20 anos. Sua estimativa não é pessimista, como pode parecer à primeira vista, mas claramente uma percepção bem mais clara da realidade. Os projetos de IA são bem mais difíceis e onerosos de fazer que pareciam inicialmente.

Mas, o que está por trás desse baixo desempenho? Antes de mais nada é importante lembrar que IA não é inteligente, apenas apresenta um comportamento que aparenta ser inteligente. A IA não compreende o que vê em uma imagem de radiologia. Aliás, não compreende nenhuma imagem.

Quando nós humanos vemos um carro ou uma foto de um carro, nós conseguimos identificar sua essência estrutural: o que faz um carro ser um carro, como rodas e carroceria. Assim, mesmo que os designs sejam diferentes, as cores mais diversas e os tamanhos variem, nós reconhecemos os carros.

Os algoritmos de IA são modelos que criam representações matemáticas de pixels. São treinados “vendo” milhares e milhares de imagens de carros que estejam rotulados como “carros”. Quando recebe uma nova foto de carro, ele tenta fazer o casamento matemático com os modelos de pixels que já “aprendeu”. Quando dá match ele aponta que é um carro. Se não der match, ele aponta o que mais se aproxima estatisticamente, que pode ser algo como uma tampa de lixeira.

Esse é outro aspecto da IA: ela não tem bom senso e, portanto, o que causar match ele indica como resposta, por mais esdrúxulo que seja. Não esqueçam que o algoritmo não tem a mínima ideia do que seja um carro. Ele apenas responde baseado no que foi rotulado. Se, por acaso, todas as imagens de carro fossem rotuladas como gatos, ele apontaria, no caso de match, que as imagens seriam gatos.

Mesmo sistemas sofisticados como o GPT-3 interpretam e criam textos observando relações estatísticas entre palavras e frases, mas não entende seu significado. Isso gera muitas vezes respostas sem sentido, como: "Um lápis é mais pesado que uma torradeira".  Por isso, alguns especialistas chamam os modelos de linguagem de" papagaios estocásticos " ou "uma boca sem cérebro". Afinal, eles ecoam o que eles ouvem, remixados ao acaso.

Por isso, a imensa maioria dos bots que vemos hoje não conseguem manter um diálogo minimante humano e coloquial. Respondem razoavelmente apenas quando a conversa está dentro da caixinha.

Significa que a IA é uma furada? Absolutamente, não. Continuo entusiasta, mas precisamos ser realistas e buscar sua evolução sem modismos ou hype. Enfrentar os desafios da sua evolução (estamos engatinhando), formar talentos de forma adequada e não de forma amadorística, com cursos de “aprenda tudo sobre IA em uma semana”, e, principalmente, ser coerente nas propostas de projetos onde IA será aplicável.

A IA não é solução para todos nossos problemas. Recomendo o artigo da Scientific American, “AI Isn’t a Solution to All Our Problems”, para uma visão bem equilibrada de onde e como usar IA de forma adequada.

Mantenho a visão que a IA é uma tecnologia transformadora, como a eletricidade e a própria internet. Em cima dela serão criados novos produtos, serviços e modelos de negócio. E não existe nenhuma inconsistência entre uma visão otimista de longo prazo e as eventuais frustrações que temos no curto prazo. Ambos podem coexistir simultaneamente.

Por que esse paradoxo? Bem, temos muitas vezes as falsas expectativas, uma visão simplista que as coisas são muito mais fáceis que na realidade. Na prática, muitas vezes tecnologias que mudam comportamentos da sociedade demoram algum tempo para se consolidar.

Um exemplo é o comércio eletrônico. No final dos anos 1990, o entusiasmo era imenso, com o surgimento das empresas pontocom. Mas sua adoção significativa pela sociedade levou quase duas décadas para se consolidar. E, no meio disso, ainda teve o estouro da bolha das pontocom, quando o mercado identificou que a promessa estava distante.

A IA e seus efeitos em todos os setores da sociedade também deverá seguir trajetória similar. Não veremos, de forma ampla, seus impactos em poucos anos, mas em mais uma ou duas décadas, sentiremos de forma significativa as transformações que ela causará.

Assim, fica difícil afirmar quando a IA vai realmente se disseminar. Creio que a melhor resposta vem do mercado de ações, onde a frase “se você der um número, não dê uma data” faz todo o sentido.

Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.