A tensão global causada pelo tarifaço, com a escalada crescente da guerra comercial e troca de acusações entre líderes mundiais, não tem sido a única guerra travada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ele também elegeu alvos locais, com quem já vinha se estranhando antes de reassumir a Casa Branca: as universidades americanas.

Se o imbróglio global é de natureza econômica (a necessidade da “reindustrialização” dos Estados Unidos), no caso das instituições de ensino a questão é ideológica. Mas, em ambos, a estratégia usada para atingir seus objetivos é a mesma: mexer no bolso de quem está do outro lado da mesa.

O que Trump quer, na realidade, é extinguir programas de diversidade e de inclusão. Para o presidente americano, sala de aula não é lugar para discussões sobre justiça social e racial.

Ainda durante as primárias, ele encampou a ideia defendida pelo vice JD Vance, que já falava do tema antes de se tornar senador por Ohio. Em 2021, Vance chegou a declarar: "as universidades são inimigas”.

Uma das universidades mais respeitadas do mundo, Harvard já sente o impacto da postura do governo americano. Com receita operacional de US$ 6,5 bilhões no ano fiscal de 2024 (encerrado em junho) e um fundo patrimonial (a partir de doações) de cerca de US$ 53 bilhões, a instituição agora tem de lidar com um bloqueio de US$ 9 bilhões, que vai atingir pesquisas já em andamento e em futuros acordos.

Para minimizar esse impacto, a universidade planeja solicitar um financiamento de cerca de US$ 750 milhões a investidores de Wall Street.

“Como parte do planejamento de contingência contínuo para uma série de circunstâncias financeiras, Harvard está avaliando os recursos necessários para promover suas prioridades acadêmicas e de pesquisa”, disse um porta-voz de Harvard à agência Reuters.

Além de empréstimos de curto prazo para preservar parte do caixa, muitas universidades têm pensado em vender títulos tributáveis, como também deve ser o caso de Harvard.

“Embora o impacto financeiro sobre a universidade de quaisquer desenvolvimentos no nível federal não possa ser quantificado neste momento, eles podem, direta ou indiretamente, ter um efeito material adverso no perfil financeiro atual e futuro e no desempenho operacional da universidade”, lê-se em documento de Harvard, do início de abril.

Antes de anunciar o congelamento dos financiamentos, a gestão de Trump determinou que Harvard eliminasse a prática de política de cota para contratação com base em raça ou país de origem, além de informar que adotaria supervisão sobre o que considera “programas tendenciosos que alimentam o antissemitismo”.

O baque tem sido tão grande e causado enorme preocupação nos Estados Unidos. Até o ex-presidente Barack Obama chegou a pedir que as instituições resistam ao que chamou de “ataques” do governo federal.

“Há uma ideia de que existe uma narrativa criada dentro das universidades americanas para implementar a cultura woke, com espaço para grupo minorizados. E isso mostra o quanto existe racismo estrutural e homofobia nos Estados Unidos, potencializado pelo crescimento do conservadorismo”, diz o professor Leonardo Paz, analista de Inteligência Qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em entrevista ao NeoFeed.

Ele completa: “A própria chegada de Elon Musk ao governo [dono da Tesla e diretor do Departamento de Eficiência Governamental, que sempre lidou mal com a questão relacionada ao fato de ter uma filha trans, mostra essa postura do governo. E ele ajudou a encampar essa agenda para a administração de Trump”.

Em 2021, o vice Vance, que já foi senador por Ohio, declarou: "As universidades são inimigas"

No caso da Universidade de Columbia, o governo americano planeja impor uma espécie de supervisão federal, com a anuência de um juiz federal para que a instituição cumpra as determinações da Casa Branca.

Em março, Trump brecou o envio de US$ 400 milhões em financiamentos para a universidade sediada em Nova York,  após realização de um protesto no campus contra as medidas da Casa Branca. Nesse caso, a direção de Columbia cedeu e anunciou mudanças na instituição, com regras mais rígidas sobre qualquer tipo de manifestação.

“Com medo de sofrer punição e perda de recursos, muitas universidades vão acabar reduzindo os espaços para essas discussões. Mas ainda é cedo para dizer o impacto de tudo isso e o quanto os diretores vão aderir à pauta de Trump”, afirma Paz. “A grande questão é se vão aguentar esperar o fim do atual governo e se elas terão dinheiro suficiente para se sustentar sem recursos públicos.”

O que tem preocupado pesquisadores e especialistas é que, além da própria redução de recursos, que podem afetar seriamente o próprio funcionamento das principais universidades, ainda há risco de um êxodo de cientistas, ainda que haja uma mudança após a gestão de Trump.

Recente pesquisa feita pela revista britânica Nature com 1,6 mil acadêmicos nos Estados Unidos mostra que 75% afirmaram considerar a hipótese de deixar o país por causa da instabilidade provocada pela política de medo da gestão Trump.

Entre os estudantes de mestrado, área que tem sido uma das mais atingidas pelos cortes de recursos federais, o número é ainda maior: 79% pensam em deixar os estudos nos Estados Unidos.

Na prática, isso pode afetar inclusive o potencial americano, em várias linhas de pesquisas, no confronto direto com a China na busca por mais tecnologia e hegemonia no mercado global.

Somente nos últimos dias, o bloqueio de verbas públicas para financiamentos de pesquisas em Columbia, Princeton, Johns Hopkins e Universidade da Pensilvânia alcança US$ 1,8 bilhão.

E, se Trump recuou, por um tempo, da prática mais agressiva na cobrança das tarifas, no caso das universidades não há qualquer sinal de que o presidente pretende negociar.

Ele já deixou claro que não abre mão de ver sua política ideológica mais presente nas salas de aula dos universitários.

Como diz o professor da FGV: “Qualquer interferência do governo deste porte reflete na autonomia universitária, que nos Estados Unidos é ainda mais forte do que no Brasil. E sempre há risco de uma ideia dessa se espalhar no mundo. A questão é sé haverá um líder conservador para fazer algo tão agressivo como isso”.