O que a Coca-Cola tem a ver com a industrialização brasileira da década de 1970, e como o chocolate pode ser um bom exemplo para explicar a relevância da manufatura nas economias?

Em "Edible Economics: A Hungry Economist Explains the World (‘Economia Comestível: um economista faminto explica o mundo’, editora Penguin ainda sem tradução em português), o sul-coreano e professor da Soas University of London, Ha-Joon Chang, usa a história dos alimentos para introduzir o leitor a conceitos da economia e trazer reflexões sobre dilemas contemporâneos.

Especialista em economias em desenvolvimento e autor de bestsellers como "Chutando a Escada" (editora Unesp 2004) e "Economia: modo de usar (Penguin 2015)", Chang falou com exclusividade ao NeoFeed sobre as motivações de seu livro mais recente.

“A resposta curta é que eu gosto de comida e de economia, então escrever sobre essas duas coisas foi muito agradável”, brinca. “A resposta longa é que acredito que em uma economia capitalista, a democracia não tem sentido a menos que todos os cidadãos entendam pelo menos um pouco de economia.”

O professor diz que sonha em poder colaborar com a diminuição do “analfabetismo econômico” através da “alfabetização econômica em massa”. O desejo fica evidente nos capítulos do livro ー batizados com o nome de alimentos como coco, camarão, banana e pimenta ー, que são didáticos e passeiam por conceitos econômicos sem o peso do linguajar técnico.

A banana, escreve ele, é a fruta mais produtiva do mundo, só que essa produtividade, “usada de maneira errada”, tem causado efeitos negativos. “Foi inicialmente usada para manter os escravos nas Américas vivos com custos mínimos para os proprietários de plantações. Mais tarde, tornou-se a causa da exploração do trabalho, corrupção política e invasão militar internacional em muitas economias ao redor do mundo e no Mar do Caribe.”

Chang traça um supreendente paralelo de como o amor pelo macarrão tanto na Coreia do Sul quanto na Itália se entrelaça com o desenvolvimento da indústria automobilística nos dois países. Giorgetto Giugiaro, o mesmo designer que fracassou ao fazer o modelo ideal de massa para um cozimento perfeito, brilhou como criador de mais de 100 carros como o Volkswagen Golf e a Masserati Ghibli.

E também o Pony, um hatchback, lançado em 1975 pela Hyundai Motor Company, uma então desconhecida montadora que tornou-se um fenômeno do empreendedorismo de equipe.

A partir de uma receita de “tamboril, servido em caldo de amêijoas ao curry”, o autor trata do comércio de especiarias para chegar a Companhia Holandesa das Índias Orientais. E daí segue para as sociedades de responsabilidade limitada em geral, e por fim, como destaca o Guardian, "sugere como a reforma da governança corporativa pode tornar possível sustentar investimentos de longo prazo em tecnologia verde."

O professor da Soas University of London e autor, Ha-Joon Chang

Chang também compartilhou com o NeoFeed suas percepções sobre o impacto da pandemia na macroeconomia global, bem como a reorganização econômica pós-pandemia. Ele também fala sobre o resgate de uma política industrial em países em desenvolvimento, especialmente o Brasil, onde esteve pela últiva vez em 2018.

O que o motivou a escrever ‘Edible Economics’?
A resposta curta é que eu gosto de comida e de economia, então escrever sobre essas duas coisas ao mesmo tempo foi muito agradável para mim. A resposta longa e séria é que acredito que em uma economia capitalista, onde tudo tem que justificar sua existência em termos de dinheiro, a democracia não tem sentido a menos que todos os cidadãos entendam pelo menos um pouco de economia – caso contrário, votar nas eleições torna-se como votar em um show de talentos.

Por que a economia se tornou inacessível para as pessoas?
Apesar dessa necessidade do que chamo de “alfabetização econômica em massa”, a maioria das pessoas reluta em aprender economia, porque é técnica, seca e chata. No entanto, quase todo mundo está interessado em comida. Então, ao usar as histórias da comida – seja sobre os coreanos e o alho, os brasileiros e a caipirinha, ou os holandeses e a cenoura – para induzir pessoas que normalmente não se interessam por economia a falar sobre isso, meu novo livro está tentando fazer com que economia acessível ao maior número possível de pessoas – e assim reduzir o 'analfabetismo econômico'.

Como você utiliza a comida para explicar economia nos capítulos do livro?
Cada capítulo do livro têm o nome de um alimento. A história pode ser sobre a biologia do alimento (até o século 17 a cenoura não era laranja), sobre seu papel na história (a banana foi trazida para as Américas para alimentar os africanos escravizados), ou mesmo sobre minha relação com esse alimento. Levanto questões como por que a manufatura é importante para a prosperidade; como combater as mudanças climáticas e por que precisamos reformar o sistema financeiro.

Poderia dar alguns exemplos?
O capítulo Frango começa com uma história de refeições a bordo na Aeroflot durante seus dias soviéticos e termina com uma discussão sobre a economia da desigualdade; o capítulo da carne bovina começa com a história do futebol, que leva à história da carne bovina uruguaia (com uma nota de rodapé que menciona a picanha brasileira) e termina com uma discussão sobre o problema do sistema de comércio global. Admito que é um livro estranho, espero que o leitor goste.

"O capítulo da carne bovina começa com a história do futebol, que leva à história da carne bovina uruguaia (com uma nota de rodapé que menciona a picanha brasileira) e termina com uma discussão sobre o problema do sistema de comércio global"

Como a pandemia transformou a economia em algo ainda mais complexo?
A pandemia revelou problemas com as cadeias de valor globais (GVCs). Quando as interrupções no comércio global e no fornecimento de bens aconteceram, as pessoas perceberam como nas últimas décadas de globalização as CGVs se tornaram altamente concentradas na China. Países como Estados Unidos, Reino Unido e Brasil perceberam o quão esgotadas suas habilidades de produzir coisas se tornaram. Como resultado, houve tentativas de reorganizar as CGVs, especialmente por parte dos EUA, para reduzir sua dependência da China.

Como resolver?
Esta reorganização não vai produzir grandes mudanças tão cedo, porque não é fácil desfazer rapidamente GVCs construídas ao longo de décadas. Às vezes nem é possível trazer de volta para casa as instalações de produção de uma indústria, porque o ecossistema industrial que a cercava já não existe. Se acontecer, uma grande reestruturação das CGVs levará décadas.

Os grandes players do capitalismo global estão voltando a invocar o protecionismo?
É verdade que os EUA e a UE se tornaram mais explicitamente protecionistas do que antes. No entanto, isso não significa que eles estejam realmente se tornando muito mais protecionistas do que antes. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a UE têm dado subsídios maciços para Pesquisa e Desenvolvimento de suas empresas, tornando os produtos dessas empresas mais baratos em comparação com as importações. Na década de 1970, quando as empresas automobilísticas japonesas estavam assumindo seus mercados, elas introduziram cotas de importação para carros japoneses, mas as chamaram de “restrições voluntárias à exportação”, fingindo que as empresas japonesas limitavam voluntariamente suas exportações.

Como a política industrial é vista nesse novo cenário?
Os grandes atores da economia global estão usando a política industrial de forma mais explícita e agressiva do que antes. Eles estão usando a necessidade urgente de uma transição verde como uma desculpa para proteger diretamente as indústrias existentes (por exemplo, a imposição da UE de padrões ambientais mais elevados sobre as importações) e proteger indiretamente novas indústrias (subsídios dados às indústrias que produzem energia renovável ou novos materiais). Usando o confronto geopolítico com a China, que supostamente torna necessário limitar o acesso da China a microchips de nível militar, os EUA estão tentando atualizar sua indústria de semicondutores. O uso mais explícito da política industrial pelos grandes players é uma boa notícia para os países em desenvolvimento, pois tornou mais legítimo o uso da política industrial por eles.

Como você avalia a política industrial do Brasil e na América Latina?
Esperava-se que o Brasil e outros países latino-americanos tivessem políticas industriais desastrosas durante o chamado período de Industrialização por Substituição de Importações (ISI) nas décadas de 1960 e 1970. Mas a verdade é que o crescimento econômico da região nesse período foi muito mais rápido do que no período neoliberal desde a década de 1980. O crescimento da renda per capita na região foi de 3,1% ao ano durante o período do ISI, enquanto se manteve em 0,8% durante o período neoliberal. Isso não quer dizer que tudo estava bem durante o período ISI.

Qual a fragilidade?
A ênfase insuficiente dada às exportações, especialmente às exportações de manufaturas, pelos formuladores de políticas industriais durante o período fez com que o crescimento econômico e o desenvolvimento industrial fossem constantemente limitados pelo balanço de pagamentos, muitas vezes levando a crises macroeconômicas. No entanto, durante o período ISI, alguns países latino-americanos, especialmente o Brasil, atingiram um grau considerável de industrialização. O que era necessário nas décadas de 1980 e 1990 era uma recalibração da política industrial, fazendo com que as indústrias nascentes desenvolvessem capacidades de exportação o mais rápido possível, não sua abolição, como aconteceu em muitos países latino-americanos.

O governo Lula foi eleito prometendo reindustrializar o Brasil. Essa é a receita para países emergentes neste momento?
Manufatura sempre esteve no centro do desenvolvimento econômico. Algumas pessoas argumentaram que agora vivemos em uma sociedade pós-industrial onde a manufatura não é mais importante, mas isso não é verdade. A indústria manufatureira continua sendo o setor mais importante da economia, principalmente em termos de capacidade de geração de inovação e exportação. O Brasil precisa muito de uma reindustrialização se quiser colocar o país de volta no caminho certo. O número exato depende das fontes estatísticas, mas em meados da década de 1980 a manufatura representava 30-35% do PIB do Brasil. Não é nem 10% hoje. O Brasil, juntamente com o Reino Unido, experimentou a maior desindustrialização da história da humanidade.

Como reverter esse movimento?
O passo mais importante para a reindustrialização é mudar o regime macroeconômico-financeiro do passado, em que o país tinha uma das taxas de juros reais mais altas do mundo e uma moeda extremamente valorizada, prejudicial ao desenvolvimento da indústria manufatureira. O Brasil também precisa restaurar sua capacidade de política industrial. Ainda existem capacidades impressionantes de política industrial como o BNDES, mas essas capacidades foram corroídas ao longo dos anos e precisam ser revividas.

A polarização política pode atrapalhar o desenvolvimento econômico de países como o Brasil?
O desenvolvimento econômico requer políticas estáveis e coesão social se quiser ser sustentável no longo prazo. É por isso que, por exemplo, Otto von Bismarck, o chanceler conservador da Alemanha Unida, introduziu o primeiro estado de bem-estar do mundo quando colocou o país em um caminho para o desenvolvimento econômico. Muitos países, especialmente o Brasil, sofreram com a polarização política nos últimos anos. Isso não é bom para o desenvolvimento econômico e social do país. O novo governo Lula entende que o país precisa enfrentar a polarização política, como sugere a aliança com o vice-presidente Alckmin.

Qual é a receita para alcançar o equilíbrio entre economias fortes e proteção social?
O capitalismo tem melhor desempenho quando equilibra a necessidade de rápida mudança econômica e proteção social. A chamada “Era de Ouro do Capitalismo” durante as décadas de 1950 e 1970, durante a qual as economias capitalistas avançadas regularam fortemente suas economias e expandiram seus estados de bem-estar social, mas alcançaram a maior taxa de crescimento econômico de todos os tempos, é a melhor prova disso. O “milagre econômico” nos países do Leste Asiático, onde a rápida transformação econômica foi combinada com regulamentações protetoras para pequenas fazendas, empresas e lojas (embora não com o estado de bem-estar social) é outro exemplo.

Existe uma fórmula?
Diferentes países usaram diferentes combinações de diferentes medidas políticas para alcançar o equilíbrio. As políticas relevantes incluem estado de bem-estar; proteção aos pequenos produtores; regulamentação dos mercados financeiros; regulamentação da propriedade da terra e prestação estatal de serviços básicos.