No início de março, a azeitóloga portuguesa Ana Carrilho desembarcou em São Paulo com alguns vidros de azeite na mala. Trazia a variedade autóctone Cobrançosa, a ser lançada oficialmente no Brasil, pelo rótulo Esporão, entre o fim de maio e início de junho, a R$ 125 a garrafa de meio litro.

Aos 50 anos, ela já rodou o mundo estudando e pesquisando oliveiras, azeitonas e azeites. Chegou a passar temporadas na Grécia, Itália e Espanha. Em suas andanças, conheceu alguns dos novos produtores brasileiros, na Serra da Mantiqueira e no Rio Grande do Sul.

Desde 2013, Ana é diretora da área de negócio de azeite da Herdade do Esporão, no Alentejo. Do total produzido pela empresa (900 mil litros, na última safra), 57% vem para o Brasil. Portugal está em segundo lugar, com 30%, seguido por Estados Unidos e Canadá.

Em entrevista exclusiva para o NeoFeed, regada a bons azeites, em um restaurante português, no bairro de Pinheiros, na capital paulista, ela falou sobre a crise provocada pela quebra de safra na Europa, a recuperação de variedades ameaçadas de extinção, a produção brasileira e muito mais.

Veja a seguir os principais trechos da conversa:

O mundo do azeite vive um momento complicado com quebra de safra, escassez de produtos e preços nas alturas. Como você encara essa crise?
A safra de 2022/23 não foi boa e a de 23/24 acabou sendo ainda pior. Não choveu, o que afetou muito a qualidade da azeitona. Isso aconteceu nos países europeus, mas acabou por se transformar em um fenômeno global. Muitas vezes, um país produz com azeitonas que compra do outro e isso acaba sendo uma bolsa de valores.

O principal problema foi a crise climática?
Sim. Principalmente na Espanha, que trabalha basicamente com a variedade Picual. Quando há quebra de uma variedade e essa variedade representa 90% da produção, obviamente, isso afeta o mundo inteiro.

E a Espanha é o maior produtor do mundo.
Pois é. Vende para Portugal, Itália, Estados Unidos... Isso teve um grande impacto. Aí as oliveiras descansaram um ano e pensamos que depois de produzir pouco iriam produzir muito. Mas não aconteceu. Tivemos temperaturas acima dos 30 graus no período da floração. Um desastre. Isso se refletiu na qualidade e na quantidade dos azeites.

De quanto foi a quebra?
Na safra anterior, cerca de 30%. A Espanha ainda não fechou os números da última safra, mas pode rondar os 50%. O problema é que os custos para colher azeitona são muito grandes - independentemente da quantidade colhida. Na Espanha, a colheita do ano passado terminou em fevereiro, princípio de março e se apanhou tudo o que tinha no chão, onde foi possível encontrar.

E o bom azeite se faz com azeitonas verdes.
Hoje em dia é mais fácil produzir bons azeites com azeitonas verdes, mas a gente faz coisas incríveis com azeitonas maduras. O risco, porém, é maior.

"Os grandes investidores querem variedades muito produtivas, um sistema superintensivo", diz Ana Carrilho, executiva da Herdade do Esporão (Crédito: Herdade do Esporão)

Na Europa, a safra 23/24 foi ainda pior do que a de 22/23 (Crédito: Herdade do Esporão)

A Herdade do Esporão está localizada no Alentejo (Crédito: Herdade do Esporão)

É mais fácil e menos arriscado fazer azeite de azeitonas verdes (Crédito: Herdade do Esporão))

A empresa foi a primeira a usar garrafas escuras para proteger o azeite da luz (Crédito: Herdade do Esporão)

Portugal teve uma quebra menor, em comparação à espanhola?
Sim, de cerca de 30% na última safra. Portugal vive agora a nova olivicultura. Todos os grandes investidores querem plantar em Portugal em função da barragem de Alqueva, no Alentejo, que permite a rega da plantação na época do grande calor. O azeite aparece mais cedo e tem mais valor. Mas há o reverso de todo esse investimento que leva ao desaparecimento das variedades portuguesas. Algumas delas desapareceram completamente.

Isso também acontece na Espanha, não?
Sim. Os grandes investidores querem variedades muito produtivas, um sistema superintensivo. E poucas variedades foram testadas para esse processo. Quem inventou este sistema é também quem vende as plantas. Não por acaso, a Arbequina e outras variedades italianas estão ganhando o mundo numa economia de escala.

Como são os azeites premium em Portugal?
A categoria foi criada pela Esporão em 1997. É uma história curiosa. A Esporão criou os azeites para exportar para o Brasil. Foi também a primeira marca portuguesa a ter uma garrafa escura, para proteger o produto da luz. As pessoas achavam uma loucura. Na época, era um grande desafio, porque o Brasil importava azeites com 0,2% de acidez como se isso fosse um indicativo de qualidade. Não se falava em variedades e os azeites não tinham sabor de nada. Foi uma experiência visionária e deu certo. O Brasil é hoje o principal mercado dos azeites Esporão [seis rótulos estão disponíveis, com preços entre R$ 89, os blends; e R$125, os monovarietais de 500 mililitros].

O Brasil agora produz azeites excelentes, premiados em concursos internacionais. Mas, por causa do preço, são dirigidos ao mercado de luxo. Como você avalia a produção brasileira?
Há projetos muito interessantes no Brasil. Estamos falando, claro, de quantidades muito, muito pequenas e custos muito altos de produção. Os produtores brasileiros não ganham dinheiro com azeite. São negócios de paixão. Eles estão fazendo um esforço imenso para educar o Brasil nesse sentido. Brasileiros falando para brasileiros sobre azeite fresco, variedades, como deve ser consumido... As marcas premium brasileiras estão criando um palco para os outros azeites.

Mudou muita coisa. Em casa, por exemplo, as pessoas não colocam mais o azeite no galheteiro, colocam o rótulo na mesa para sabermos o que estamos usando.
Tem até uma questão de status. Pessoalmente, eu estou muito feliz com a produção brasileira. No ano passado, recebemos um grupo de produtores brasileiros e temos sempre alguém que vem passar uma temporada conosco. Há proximidade, troca de experiências. Quanto mais caminharmos juntos, melhor será para todos. O azeite cria pontes.

Quais?
[Rindo] Tenho amigos no mundo inteiro por causa do azeite. Aliás, casei porque encontrei meu marido, um chileno, quando estávamos estudando na Espanha, há mais de 20 anos. Temos dois filhos do azeite e isso é muito importante. Foi a paixão pela mesma coisa que nos uniu.