Não se ganha a alcunha de "Mr. IPO" do dia para noite – e Jay Ritter sabe bem disso. Professor emérito da Universidade da Flórida, o americano de 65 anos dedicou sua carreira ao estudo do processo de oferta pública inicial ("IPO", na sigla em inglês) e hoje é, provavelmente, uma das maiores autoridades no assunto. Daí o "apelido" impresso em jornais, repetido em entrevistas televisivas e ecoados nos corredores das faculdades do país.

Um estudo realizado por Ritter deixou os investidores com uma pulga atrás da orelha e foi premonitório sobre o que aconteceria no mercado de capitais americano neste ano. Segundo a pesquisa, 84% das 38 empresas de tecnologia que realizaram seus IPOs em 2018 eram deficitárias no momento de suas aberturas de capital.

A última vez que o percentual atingiu patamares semelhantes foi em 1999, quando 86% das 370 companhias que abriram capital tinham números negativos. Para quem não se lembra, logo depois que a bolha “pontocom” estourou. Há semelhanças entre os dois períodos? “Acredito que sequer estamos perto do cenário de 20 anos atrás”, afirma Ritter. “Naquela época, eu não tinha nenhuma dúvida de que uma bolha existia, porque as avaliações não condiziam com a realidade.”

Neste ano, Ritter divulgou um novo estudo que é uma espécie de bomba atômica para a indústria de IPOs, nos quais os bancos de investimentos ganham muito dinheiro estruturando as ofertas para as empresas e apresentando as startups aos investidores.

Defensor da listagem direta, que reduz em muito dos custos para abrir o capital, ele fez as contas e chegou a números estonteantes a favor dessa estratégia. De 1980 até hoje, as empresas que abriram o capital deixaram na mesa US$ 170 bilhões.

Para chegar a esses números, o Mr. IPO subtraiu o preço de fechamento das ações no primeiro dia de negociação do valor estabelecido pelos bancos nas ofertas dos últimos 40 anos. Depois, multiplicou pelo número de ações. Só no ano passado, as empresas deixaram de ganhar US$ 7 bilhões, diz o estudo. Spotify, no ano passado, e Slack, em 2019, chegaram à bolsa por meio do direct listing,

Mais disputado do que nunca, por conta das últimas manchetes envolvendo IPOs adiados, como o da WeWork, e outros frustrantes, como o da Uber e Peloton, Riiter esperou o fechamento do mercado para atender ao NeoFeed, em uma entrevista exclusiva que você acompanha a seguir:

Vimos nos últimos meses diversas empresas, nos Estados Unidos e além, adiando o plano de abrir capital. A gigante do entretenimento Endeavor e a fabricante italiana de iates Ferretti são dois bons exemplos. Por que casos como esses parecem estar se proliferando nos mercados internacionais
Escolher o momento certo para estrear na bolsa de valores é crucial e está mais do que claro que os investidores não estão mais tão empolgados com empresas que têm alto potencial de crescimento, mas não dão lucro. Com essa desaceleração, obviamente, vêm avaliações menos generosas. Os preços caíram significativamente depois que o retorno negativo de companhias como Uber, Lyft, Peloton e outras "gigantes" vieram a público.

Mas você não acredita que os investidores estavam avaliando essas empresas de forma exagerada? O WeWork recebeu muito dinheiro, foi avaliado em US$ 47 bilhões, não conseguiu abrir o capital e hoje vale US$ 8 bilhões.
O WeWork é um caso à parte, porque é extremo. A injeção desse montante bilionário de dinheiro foi na aposta de um crescimento à altura. O problema é que, para que esse investimento tivesse retorno, o crescimento teria que acontecer sem erro. Agora, qualquer empresa ou sócio de venture capital sabe que nenhuma companhia segue à risca o business plan. Tropeços também fazem parte do negócio e têm de entrar na conta da avaliação. 

"O WeWork é um caso à parte, porque é extremo"

E como você avalia o processo de abertura de capital com listagem direta?Acho que é uma resposta direta ao alto preço do roadshow e das burocracias do IPO tradicional. Esse processo é muito mais caro do que o necessário. Pelas minhas contas, três ou quatro empresas optaram por esse caminho da listagem direta nos últimos dois anos. Há rumores de que o Airbnb também opte por essa via no ano que vem, e eu acho muito plausível. A listagem direta beneficia os donos das ações do Airbnb, porque eles podem vender seus papéis por um preço muito mais adequado e justo. 

Acha que a abertura de capital é para toda grande empresa?
Alguns negócios não justificam um IPO, sobretudo neste momento em que vivemos, quando há mais oferta de capital privado, venture capital e outros investimentos, que permitem às empresas continuarem privadas por mais tempo. 

Você se dedica ao estudo e análise de IPOs há anos, consegue identificar um ponto de virada?
Quando a bolha pontocom explodiu, em 2000. Entre os anos 1980 e 2000, uma média anual de 310 companhias abriam capital nos EUA. A partir dessa ruptura, a média caiu para 110 empresas por ano. Em meados dos anos 1990, no boom dos IPOs nos EUA, começou uma "moda" de incentivar as startups bem-sucedidas a não abrirem o capital e a não venderem o negócio para uma empresa maior na mesma área. Tenho a impressão que esse padrão continua. 

E como isso afeta a bolsa?
Bem, as empresas que finalmente decidem abrir capital o fazem quando estão maiores e mais "velhas". Em 1999 e 2000, as companhias faziam seus IPOs quando completavam quatro ou cinco anos, na média. Em 2018, a média era de 12 anos. Da mesma forma, o volume médio de recursos que captavam, naquele tempo, era de US$ 12 milhões contra os atuais US$ 173,6 milhões.

Acredita que estamos à beira de uma nova bolha?
Embora ainda seja cedo para saber o futuro dessas empresas, acredito que sequer estamos perto do cenário de 20 anos atrás. Naquela época, eu não tinha nenhuma dúvida de que uma bolha existia, porque as avaliações não condiziam com a realidade. Claro que fico preocupado com as notícias desses aportes bilionários em negócios cujo retorno são baixos, mas ainda não acredito que seja uma bolha. O fato de o mercado estar recalibrando as avaliações evita que uma bolha seja criada.

"O fato de o mercado estar recalibrando as avaliações evita que uma bolha seja criada "

Como você classificaria um IPO bem-sucedido?
Um IPO bem-sucedido é aquele em que os papéis são negociados, nos primeiros dias, por um preço muito próximo ao do dia da abertura de capital. É quando os investidores desejam vender ações por um valor que o mercado também esteja disposto a pagar. Peloton, Uber e SmileDirectClub são exemplos de IPOs desastrosos, porque o valor dos ativos caiu muito logo nos primeiros dias. Da mesma forma, a Beyond Meat, que viu o valor de seus papéis saltarem na sequência da estreia não é, ao meu ver, um IPO bem-sucedido. Dito isso, acho que, no final das contas, é mais importante ter uma empresa bem-sucedida e não apenas a abertura de capital – e isso é bem mais difícil. 

Existe uma bolsa de valores que você ache mais apropriada?
Todos os mercados têm prós e contras. Nos últimos anos, temos visto mais IPOs na China do que em qualquer outro país. Mas muitas empresas chinesas querem abrir capital em Hong Kong ou mesmo aqui nos EUA, porque as regulamentações chinesas são um desafio. Até pouco tempo atrás havia, na China, um teto de US$ 23 por ação. Mesmo que os investidores estivessem dispostos a pagar uma cifra maior, o governo não permita a comercialização. Por isso, o Alibaba, quando abriu capital, o fez nos EUA – e vendeu seus papéis por um valor maior que os US$ 23, levantando mais dinheiro do que teria feito na China. Acredito que a bolsa de valores chinesa seria ainda mais ativa se não fossem as inúmeras regras. 

Na sua opinião, qual o maior equívoco sobre IPOs?
Não entender que o mercado de IPOs é apenas uma parte de um sistema funcional. Ter um bom sistema bancário, que trabalhe com empréstimos para companhias e pessoas, dando a elas a chance de comprar algo e pagar de volta, é desejável. Parece bobagem, mas o sistema bancário da Rússia é péssimo. Lá há muita corrupção e vale a regra do "quem você conhece". O resultado disso é uma bolsa de valores mirrada. Não foram poucas as vezes em que investidores colocaram dinheiro que foi desviado ou mal gasto. A fonte seca. Dito isso, eu sei que nenhum país é perfeito, mas a Rússia é um caso à parte. 

Que nota daria para a bolsa de valores brasileira, entre 0 e 10?
Acho que algo em torno de 5. O problema da maioria dos países, inclusive dos EUA e Brasil, é ter companhias que são lucrativas, mas não honram corretamente os dividendos dos investidores. 

Você acha que, para a bolsa de valores, a reeleição do atual presidente americano, Donald Trump, seria positiva?
Depende de quem será seu adversário na campanha presidencial. Alguns candidatos americanos falam de aumentar regulamentações e impostos, e da "quebra" de grandes empresas, como Apple e Microsoft – propostas que não agradam o mercado. A administração Trump fez coisas boas, como a reforma tributária em 2017, para pessoas físicas e jurídicas. Por outro lado, o governo Trump não agregou no comércio internacional e na questão do preocupante déficit americano. 

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