Mais de mil quilômetros separam a pequena Goianésia (GO) do número 275 da Rua XV de Novembro, na região central de São Paulo. O longo trajeto dá a medida do caminho percorrido pela Jalles Machado, produtora de açúcar e etanol fundada em 1980, na cidade goiana de 71 mil habitantes, até chegar a B3.

“Nós superamos muitas dificuldades e crises”, disse Otávio Lage de Siqueira Filho, CEO da companhia, em cerimônia realizada na noite da última segunda-feira na sede da bolsa de valores de São Paulo. “E estou muito feliz de estarmos buscando dar passos largos.”

Minutos depois, quando a campainha soou na B3, a abertura de capital da empresa não foi, porém, o único passo a ser celebrado. Além de encerrar um hiato de quase 8 anos desde o IPO da Biosev, o último do setor sucroalcooleiro, a oferta reforçou a perspectiva de que o agronegócio se consolide como um campo fértil também entre os investidores.

“Sabemos da potência dessa indústria e o que ela tem a oferecer”, afirmou Gilson Filkenstein, CEO da B3. “Por isso, queremos cada vez mais trazer esse mundo para a bolsa e aproximá-lo do setor financeiro”, acrescentou.

A julgar por movimentos recentes, essa distância tem tudo para ser encurtada. Desde outubro passado, outras seis empresas do setor protocolaram seus pedidos para ofertas públicas de ações. A relação inclui Agrogalaxy, Oleoplan, CTC, Boa Safra, Vittia Fertilizantes e GranBio.

Dessa lista, a Granbio, decidiu em novembro, pouco tempo depois de protocolar o seu processo, seguir o caminho de uma oferta restrita, via Instrução CVM 476. Na prática, com essa modalidade, a companhia poderá buscar até 75 investidores em sua captação.

A nova safra contrasta com o número ainda incipiente de empresas do setor listadas na B3, boa parte delas com pouca liquidez. Atualmente, gigantes de proteínas como JBS, BRF e Marfrig, e nomes como São Martinho estão entre as poucas representantes cujo valor de mercado supera R$ 10 bilhões.

Juntas, as 20 empresas consideradas em um levantamento realizado pela consultoria Economatica, a pedido do NeoFeed, somam R$ 146 bilhões em valor de mercado, o que representa cerca de 3,4% dentro da capitalização total de R$ 4,24 trilhões do Ibovespa.

Os números tímidos chamam ainda mais a atenção quando se leva em conta o peso do agronegócio no PIB do País, de 21,4%, em 2019. Em 2020, de janeiro a outubro, o PIB do setor cresceu 16,8%, para R$ 274 bilhões, segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq/USP.

Se os indicadores no mercado de capitais estão longe de refletir a relevância do agronegócio para o País, as fontes ouvidas pelo NeoFeed enxergam uma janela extremamente favorável para uma mudança nesse cenário.

“Há uma demanda global crescente por alimentos e por uma agenda de biocombustíveis”, diz Pedro Freitas, head de consumo, varejo e agronegócios do banco de investimentos da XP. “E o Brasil está muito bem posicionado e tem mais oportunidades, capacidade e eficiência de custos que outros países para atender essas necessidades.”

Consultor sênior da Peers Consulting, especializada em IPOs e em fusões e aquisições, Pedro Terra elenca outros componentes. “Há uma redução drástica na taxa básica de juros e um contexto mais favorável de estabilidade do dólar”, diz. “O que abre oportunidades e, ao mesmo tempo, dá mais previsibilidade no planejamento do setor.”

Em 2020, de janeiro a outubro, o PIB do agronegócio cresceu 16,8%, para R$ 274 bilhões

Outra tendência cada vez mais relevante na decisão dos investidores e diretamente relacionada ao setor foi destacada por José Olympio Pereira, presidente do Credit Suisse no Brasil, em entrevista concedida ao NeoFeed, em janeiro, na qual ele destaca o nível de profissionalismo e altos padrões de sustentabilidade dos players do campo.

“O agronegócio entendeu que, se a gente quiser continuar a ser fornecedor de alimentos para o mundo, temos de ter responsabilidade não para os nossos produtos serem bem aceitos como também para não mudar o ciclo de chuvas da Amazônia e nosso Cerrado virar um deserto”, afirmou.

Porteira aberta

Dado esse cenário, o IPO da Jalles Machado é um termômetro do apetite dos investidores por esses ativos. Apesar de ter sido precificado a R$ 8,30, abaixo da faixa indicativa de R$ 10,35 a R$ 12,95, a demanda superou em 2,5 vezes a oferta de ações.

No processo, que teve a XP como coordenadora líder, a empresa captou R$ 741,5 milhões, sendo R$ 594 milhões na oferta primária, com 75% do público institucional formado por investidores brasileiros. No primeiro dia de negociação, suas ações fecharam o pregão com alta de 8,92%, cotadas a R$ 9,04.

Os recursos serão destinados ao aumento da produção de cana-de-açúcar e à aquisição de uma unidade industrial. Com uma capacidade atual de processar até 5,3 milhões de toneladas de cana por safra em suas duas usinas, a companhia fechou a safra de 2019/20, encerrada em março de 2020, com uma receita líquida de R$ 891,3 milhões e lucro líquido de R$ 76,5 milhões.

Investir em uma nova unidade é também um dos planos descritos no prospecto preliminar protocolado no início do mês pela CTC, outra empresa do setor sucroenergético. A companhia de Piracicaba (SP) pretende destinar 38% dos recursos para a construção de uma planta de demonstração para projetos de sementes sintéticas. Outros 19% terão como foco a identificação de novos negócios.

O crescimento inorgânico também concentrará parte do montante a ser captado pela Agrogalaxy, que atua na distribuição de insumos. Em seu prospecto, a empresa destaca, nessa frente, a compra de 55% da Boa Vista, que opera na venda de insumos agrícolas no Mato Grosso do Sul.

O apetite por aquisições está na origem da companhia, criada pelo fundo de private equity Aqua Capital, que passou a comprar diversas marcas do setor a partir de 2016. E que as reuniu sob o guarda-chuva da holding batizada de Agrogalaxy, em outubro do ano passado.

Tomás Romero, sócio da Aqua Capital, e Welles Pascoal, CEO da Agrogalaxy

O IPO da Jalles Machado é visto como um possível catalisador para a jornada dessas e de outras representantes do setor até a B3. E, além de um espelho para essas companhias, a produtora é também considerada como um motor para “educar” os investidores quanto às nuances do agronegócio.

“Eles estão ajudando a abrir a porteira para que o setor entre em um círculo virtuoso”, diz Freitas, da XP. “E com mais companhias, a demanda por cobertura de analistas e gestores, que ainda é incipiente, vai se ampliar e ajudar a trazer mais conhecimento sobre os riscos e a precificação correta do setor.”

Para ele, a chegada da Jalles Machado ao mercado de capitais também pode contribuir para mudar a maneira como o setor, caracterizado por um grande número de empresas familiares, ainda é visto por muitos investidores, especialmente no que diz respeito à gestão e governança corporativa.

“Eles têm o balanço auditado por uma das big four desde 1987 e sempre se comportaram como uma empresa de capital aberto”, diz. “E são um bom exemplo de que, como em qualquer outro segmento, é uma questão de saber diferenciar o joio do trigo. O agro também tem boas histórias pra contar.”

Sócio da FG/a, consultoria que assessorou a Jalles Machado no IPO, Juliano Merlotto destaca que o agronegócio pagou o preço pela imagem deixada nos primeiros anos da década passada, quando houve o ensaio de um segundo boom do setor, após uma primeira onda em meados dos anos 2000.

“Tivemos um movimento forte de entrada de novos players, de M&As e de crescimento que, no fim das contas, fez muito mal ao setor”, afirma Merlotto. “Muitas empresas ruins vieram a mercado e o segmento ficou queimado no setor financeiro.”

Ele observa, porém, que, de lá para cá, muitas empresas entenderam que era preciso investir em governança para garantirem a perenidade dos seus negócios. Nesse percurso, parte dessas companhias passou a acessar operações de dívidas, como os certificados de recebíveis do agronegócio (CRA).

Números mais recentes da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) atestam que esse é, de fato, um recurso cada vez mais utilizado por essas companhias. Em 2020, os CRAs movimentaram R$ 15 bilhões no País, alta de 20,1% sobre 2019 e o maior volume da série histórica divulgada pela entidade.

Em 2020, os CRAs movimentaram R$ 15 bilhões no País, alta de 20,1% sobre 2019, segundo a Anbima

“Hoje, a distância entre os bons e maus ativos vem se ampliando e o mercado tem cada vez mais claro quem são os vencedores e perdedores”, diz Merlotto. “O que vamos assistir agora são os próprios bancos irem atrás das empresas que entendem como mais preparadas para cutucá-las. E, com o passo da Jalles, muitas delas vão começar a parar para escutar.”

Freitas, da XP, empresa que está envolvida em boa parte dos IPOs previstos do setor, acrescenta: “Nos roadshows, o interesse tem crescido por esses ativos”, diz. “Nossa expectativa é de uma janela extremamente promissora para esse ano.”