O cultivo do açafrão é de uma delicadeza quase poética. Conhecida como “ouro vermelho”, a especiaria vem dos estigmas carmesins da Crocus sativus, uma flor de pétalas roxas.
No miolo da planta, um a um, aqueles três fiozinhos são colhidos à mão. E sempre de manhã, bem cedo, quando a Crocus sativus floresce e o sol não é tão forte.
Para produzir um quilo de açafrão são necessárias cerca 170 mil flores. Um hectare de plantação (o equivalente a 10 mil metros quadrados) rende, no máximo, 50 gramas da iguaria.
Não à toa, o tempero é o mais caro do mundo. No mercado internacional, um grama varia entre US$ 10 e US$ 20. Por aqui, no Brasil, 0,3 grama custa quase R$ 30.
Mas, faz sentido recorrer às já esgotadas terras agrícolas, gastar água e energia para semear, cuidar e colher plantas das quais se extraem compostos em quantidades ínfimas?
Por muito tempo, o campo era a única opção. Nos últimos anos, porém, cresce o número de empresas de tecnologia alimentar focadas na cultura de células vegetais. Os inovadores estão levando as “lavouras” para dentro de biorreatores.
Em ambiente hipercontrolado, eles conseguem otimizar o crescimento celular e produzir bioativos de alto valor, sem as dores de cabeça da agricultura tradicional.
Sem as dores de cabeça da agricultura tradicional
Sem depender da condição climática, das estações, sem a ameaça das intempéries, pragas e doenças, sem ter de se recorrer a fertilizantes e defensivos, uma startup de Boston, Massachusetts, usa a cultura de tecido vegetal para produzir a especiaria.
Fundada em 2021, a Ayana Bio nasceu de um spin-off da empresa de biologia sintética Ginkgo Bioworks, captando US$ 30 milhões. A rodada de série A foi liderada pela Viking Investors e Cascade Investment.
Agora, a Ayana acaba de assinar uma parceria com a Wooree Green Science, subsidiária do conglomerado sul-coreano Wooree Bio, fabricante de matérias-primas para os setores alimentício e farmacêutico. O valor do negócio não foi revelado, apenas informaram se tratar de um “acordo de sete dígitos”.
Mais conhecido como tempero de luxo, o açafrão foi usado pelas sociedades antigas como remédio para os mais diversos males. Dada a complexidade e alto custo de produção da iguaria, a medicina ocidental contemporânea ainda conseguiu cravar seu benefícios para a saúde.
Mas há fortes indícios de que o açafrão tenha propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes; ajude a controlar o diabetes e diminua o apetite, levando à perda de peso – uma espécie de "Ozempic natural".
Com 1.001 utilidades, os bioativos obtidos a partir da Crocus sativus servem a um sem-número de indústrias. Alimentos e bebidas funcionais, suplementos, nutracêuticos, remédios e até cosméticos.
Se depender da plantação em campo, o futuro do açafrão é, no mínimo, incerto. A crise climática ameaça tornar a especiaria ainda mais rara –se não a extinguir.
O açafrão não é o único ingrediente de biomassa cara e limitada a se beneficiar do cultivo de células vegetais. A baunilha é um caso semelhante. Nativa do México, a especiaria é obtida das orquídeas do gênero Vanilla, em especial da Vanilla planifolia.
Como o processo para a produção do ingrediente é complexo e dispendioso, inventaram a baunilha sintética, feita, em geral, com o álcool das árvores madeireiras. Mas seus sabores e aromas nem de longe proporcionam as mesmas experiências oferecidas pela baunilha de verdade.
Equilíbrio complexo e delicado
Algumas empresas usam a fermentação de precisão para produzir vanilina, a grande responsável pelo aroma da iguaria. Mas os micróbios também fracassam na missão de imitar os grãos colhidos nas plantações de orquídea.
Isso porque as leveduras e bactérias só podem ser programadas para fabricar um único composto. E a baunilha não se faz apenas com vanilina, mas com uma rede de 250 substâncias, atuando em sintonia.
A startup americana Chi Botanic é uma das mais avançadas no cultivo dos grãos de baunilha em biorreatores. Fundada em 2017, em Alameda, Califórnia, com US$ 2,2 milhões levantados desde então, a startup trabalha também com o yuzu.
Cítrico de origem chinesa, mas popularizado pelos japoneses, a fruta foi recém-descoberta pela gastronomia ocidental.
Um problema, porém: a planta é ineficiente, de baixa produtividade, o que faz seu óleo valer tanto quanto caviar. Com propriedades antioxidantes, rico em fibras e vitamina C, o yuzu atrai também por seus poderes funcionais.
O cacau não é raro como o açafrão, a baunilha e o yuzu, mas é bom candidato à cultura de tecido vegetal. Isso porque apenas 1% de sua biomassa é utilizada. Um quilo de chocolate exige a plantação de uma centena de cacaueiros. Haja terra, água, mão de obra, tempo e energia. Lançada em 2022, a empresa israelense Celleste Bio produz o fruto em laboratório.
Avanços recentes
As primeiras experiências em torno das culturas de tecido vegetal datam do início do século 20, com o botânico austríaco Gottlieb Haberlandt (1854-1945). Mas apenas agora, com os avanços da biotecnologia, os progressos nos conhecimentos da nutrição e o aperfeiçoamento das ferramentas emergentes, a ciência do cultivo de células vegetais ganha impulso no ecossistema de inovação agrifoodtech.
Com a promessa de democratizar ingredientes raros e vencer os entraves da agricultura tradicional, tecnologia deve movimentar US$ 663 milhões, em 2027. Em 2021, foram menos do que US$ 400 milhões, informa a consultoria Allied Market Research. É a ascensão dos ingredientes reinventados.