A queda de braço entre a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e algumas distribuidoras de combustíveis por conta do RenovaBio - o programa que estabelece a Política Nacional de Biocombustíveis – ganhou um novo capítulo na segunda-feira, 21 de julho, prometendo chacoalhar um mercado extremamente competitivo, com 160 distribuidoras e 43 mil postos de combustíveis, que movimenta mais de R$ 500 bilhões por ano.
A tensão aumentou com a divulgação, pela ANP, de uma lista de 34 distribuidoras de combustíveis consideradas inadimplentes no cumprimento das metas estabelecidas pelo RenovaBio, sendo que a maior parte delas é citada mais de uma vez por não ter cumprido a meta em múltiplos anos. Além disso, outras 22 distribuidoras obtiveram liminar na Justiça e, com isso, parecem na lista final da ANP com uma tarja preta escondendo seu nome.
Implementado em 2019 e considerado o maior programa de descarbonização do planeta no setor de transportes, o RenovaBio fixa metas anuais de redução de emissões de distribuidoras e assegura expansão da oferta de biocombustíveis, como etanol, biometano, bioquerosene e biodiesel.
A penalização prevista para as empresas listadas é pesada. Entre as companhias com as maiores multas já aplicadas estão a Petroball Distribuidora de Petróleo (R$ 33,37 milhões), Watt Distribuidora Brasileira de Combustíveis e Derivados de Petróleo (R$ 28,61 milhões) e Royal Fic Distribuidora de Derivados de Petróleo (R$ 20,19 milhões).
Além da multa, as distribuidoras listadas ficam proibidas de comercializar combustíveis com outros agentes, bem como realizar importação direta, até conseguir regularizar a situação. As companhias que comercializarem combustíveis com as empresas listadas também estarão sujeitas a multas, que podem variar de R$ 100 mil até R$ 500 milhões.
Segundo a ANP, isso inclui produtoras de combustíveis e/ou biocombustíveis; cooperativas de produtoras; empresas comercializadoras de etanol; fornecedoras de biocombustíveis; importadoras; centrais petroquímicas; formuladoras de combustíveis fósseis; empresas de comércio exterior e outras distribuidoras.
O valor exato da multa será calculado com base na soma das multas aplicadas à distribuidora inadimplente.
Há duas formas de as distribuidoras cumprirem as metas anuais estabelecidas pela ANP. Uma delas é por meio dos Créditos de Descarbonização (CBIOs), papel negociado na bolsa de valores e usado pelas distribuidoras para cumprir suas metas. Cada CBIO representa 1 tonelada de CO₂ evitada.
O cumprimento da meta também pode se dar pela “aposentadoria” dos CBIOs pelas distribuidoras – espécie de registro na B3 dos CBIOs, como forma de comprovar o atendimento às metas compulsórias exigidas pela legislação.
Adesão e contestação
Na prática, os CBIOs não aposentados indicam o nível de descumprimento do programa. O fato de 77% da meta ter sido atendida em 2024, segundo levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), indica grande adesão do mercado ao programa.
O IBP revelou no mês passado que 68 empresas estão com processos administrativos instaurados pela ANP por descumprimento da regra de compra de CBIOs. As multas aplicadas pela ANP somam R$ 505 milhões, mas apenas R$ 17 milhões foram quitados ou parcelados. Outros R$ 85 milhões estão sob as liminares em vigor.
Com base no valor médio de cada CBIO em 2024, cerca de R$ 100, o prejuízo para o mercado no ano passado foi de aproximadamente R$ 1 bilhão.
Em reunião da ANP ocorrida no final de junho, o diretor Daniel Maia Vieira afirmou que as distribuidoras inadimplentes têm uma participação de 13% no mercado de etanol hidratado, de 6% em gasolina C (misturada ao etanol anidro) e de 7% em óleo diesel. “É uma participação muito importante no mercado nacional de combustíveis”, advertiu.
Ana Mandelli, diretora de dowsntream do IBP, lamentou as recentes decisões da Justiça Federal que permitiram a algumas empresas não terem seu nome divulgado na lista de distribuidoras de combustíveis inadimplentes.
“A empresa que não cumpre as metas do RenovaBio tem vantagem competitiva indevida em relação àquelas que atuam corretamente e cumprem suas obrigações com o programa”, disse Mandelli ao NeoFeed, criticando distribuidoras que utilizam a inadimplência como estratégia de negócio.
“A divulgação da lista representa um avanço histórico do RenovaBio, mostra a confiabilidade do programa e obriga as empresas a se justificarem por não terem atingido a meta”, acrescentou.
Segundo ela, o mercado vem atuando há quatro anos com o RenovaBio, o que reforça a luta do setor por segurança jurídica. “Não surpreende que algumas das empresas listadas também estão envolvidas em outras irregularidades, como venda de combustível adulterado”, disse Mandelli.
A divulgação da lista, porém, acabou reforçando os argumentos jurídicos de empresas afetadas. Tanto a publicação da lista como o bloqueio da comercialização de combustíveis com as companhias inadimplentes estão previstos na Lei 15.082/2024, regulamentada pelo governo federal há três meses, em abril.
Por isso, as companhias afirmam que não é possível exigir a comprovação da aposentadoria dos créditos para o cumprimento das metas antes da promulgação da lei.
Em nota, a Associação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis (ANDC), que representa as distribuidoras independentes, afirma “a inserção das distribuidoras em listas públicas de inadimplência antes do trânsito em julgado de eventuais controvérsias administrativas ou judiciais afronta princípios constitucionais como o devido processo legal e a presunção de inocência”.
Renato Fernandes de Castro, sócio da área de Energia e Infraestrutura do escritório Almeida Prado & Hoffmann Advogados, afirma que a divulgação da lista está amparada na nova legislação publicada.
“No entanto, pode ser verificada eventual caracterização de abuso por parte da ANP caso a publicação da mencionada lista de inadimplentes se realize sem a devida instauração de procedimento administrativo, com a apuração dos fatos, direito ao devido processo legal e ao exercício ao contraditório e ampla defesa”, afirmou.
Conforme revelou o IBP, porém, as empresas punidas foram ouvidas pela ANP. Mandelli observa que o argumento jurídico das empresas listadas de que a ANP não poderia exigir o cumprimento de meta anterior à promulgação da lei é questionável.
“Pela lei dos CBIOs, se a meta de uma empresa no ano passado era dez e ela cumpriu só cinco, ela precisa levar para o ano seguinte esse débito e saldá-lo”, disse a diretora do IBP. “A meta é cumulativa e a ANP certamente se cercou de cuidados jurídicos para divulgar a lista.”