O professor italiano Umberto Eco (1932-2016) uniu sabedoria profunda e talento em comunicação. Isso sem tornar superficiais seus argumentos nem se converter a uma daquelas celebridades acadêmicas que se destacam em palestras motivacionais para empresas, viram coachs e ganham inserção na mídia e nas redes sociais.

Eco, é preciso dizer a verdade, nunca abdicou do palco das conferências. Mas foi o “anticoach” quântico por excelência. Ou, talvez, precursor do coach medieval?

O fato é que sua carreira se desdobrou em três frentes de trabalho: a universidade, como catedrático da Universidade de Bolonha, onde se especializou em semiótica e estética medieval; a análise da cultura pop e erudita e suas manifestações no marketing; e a ficção, onde fez sucesso com sete romances.

O mais conhecido foi o que deu início a sua carreira de contador de histórias: “O Nome da Rosa”, de 1980. Neste livro, juntou tudo o que conhecia sobre marketing cultural e estudos medievalistas. E aquilo que poderia gerar um smorgasbord de referências e citações se transformou em uma história fascinante. O título angariou a vendagem mundial de 30 milhões de exemplares, com tradução para 43 idiomas.

O êxito fez com que, nos últimos anos de vida, Eco participasse cada vez mais das três áreas e escrevesse muito para os principais jornais e sites da Europa e dos Estados Unidos, além de fazer conferências em eventos culturais com presença numerosa de público.

A produção de sua fase final figura na coletânea “Construir o inimigo e outros escritos ocasionais”, publicada originalmente em 2011 que ganhou acréscimos de dez anos para cá e agora é lançada no Brasil (Record, R$ 49,90 no livro de papel e R$ 31,41 no digital). O autor organizou o volume de 245 páginas e incluiu 15 ensaios sobre internet, inovação, comunicação, política – e sua paixão maior, a bibliofilia.

Trata-se de textos ocasionais sobre assuntos que o autor não planejava abordar, mas foi levado a eles por convites para séries e discussões. Mas o que era ocasional foi elevado à condição de documento que testemunha uma época de transformações: a virada do século XXI, quando a disrupção tecnológica e social entrava em cena.

O texto que fornece o título ao livro analisa a política internacional e é inspirado em um trajeto de táxi em Nova York. Ao saber que seu passageiro era italiano, o motorista paquistanês lhe perguntou quem eram os inimigos de seu país. Eco respondeu que a Itália não matava adversários desde a Segunda Guerra Mundial, além de ter começado com um inimigo e terminado com outro, do Eixo aos Aliados.

Eco saltou do carro e, pensando melhor, acabou por se dar conta de que ter inimigos talvez fosse necessário para qualquer nação. Recentemente, observou, a Itália vem lutando contra facções políticas internas, cada vez mais antagônicas, entre extrema esquerda e o fascismo. Mas são fratricídios inócuos que degradam a conjuntura eleitoral italiana, que se prolonga até hoje.

“Convenci-me que uma das desgraças do nosso país nos últimos 60 anos é justamente o fato de não ter inimigos”, escreveu Eco. Ter um inimigo, segundo ele, é fundamental para definir a identidade de um povo, e para encontrar o obstáculo que mostra, por contraste, o valor de uma nação ao encontrar um obstáculo para medir sistemas de valores supostamente incompatíveis.

Daí surgirem os inimigos da Europa que ele passa em revista, como os estrangeiros, vilipendiados pelos preconceituosos. Há muito tempo, os alvos preferenciais são judeus, sarracenos e ciganos “que matam criancinhas e bebem seu sangue”. Numa época anterior, os cristãos eram vistos como hereges pelos romanos, por não sacrificar aos deuses. Na Idade Média, os padres da igreja atacaram feiticeiras e o gênero feminino, por serem especialistas em sedução.

Se a xenofobia se instalou no mundo, a voga do relativismo em política só fez crescer. O tema inspirou a conferência “Absoluto e Relativo”, proferida no festival Milanesiana em 2007. Numa antevisão dos tempos atuais de fake news, Eco aponta que, no ensaio “sobre verdade e mentira no sentido extramoral” (1873), o filósofo Friedrich Nietzsche popularizou a ideia de que não existem fatos, mas sim interpretações: “Como a natureza jogou fora a chave, o intelecto trabalha com ficções conceituais que chama de verdade.”

No âmbito da economia criativa e eclesiástica, as relíquias católicas se fazem presentes em “Em busca do tesouro”. Um dente de Santa Margarida ou um fragmento da tíbia de São Vital podem gerar tanto dividendos como impulsionar a reputação dos proprietários dos objetos.

Nesse texto, Eco conta casos como o do abade Suger de Saint Denis. No século XII, esse colecionador compulsivo fez da acumulação de objetos litúrgicos cravejados de joias uma religião e uma teoria filosófico-mística.

Entre os itens de seu acervo sacro, figuram as coroas fúnebres ostentadas no enterro de Maria Antonieta e Luís XVI e as roupas de coroação de reis. Parte do prestígio da igreja católica derivou, de acordo com Eco, da circulação de relicários, mercadorias que simbolizam riqueza e prestígio, algo semelhante ao mercado das artes atual.

No vaivém de espaço e tempo, o volume se encerra com “Reflexões sobre o WikiLeaks”, um artigo de 2011 adaptado de intervenções e reflexões de Eco. Desde o início do caso, quatro anos antes, o professor percebeu que os vazamentos de informações confidenciais de todo tipo do governo americano, do financeiro ao político, iria inaugurar uma nova era: a do “triunfo da transparência total”. Um escândalo, desencadeado por Julian Assange, foi capaz de alterar a história.

Eco se pergunta como, no futuro que já se aproxima, um poder irá se sustentar, já que não dispõe mais da possibilidade de conservar os próprios segredos. E até como manter relações particulares e confidenciais. Sua previsão é de que, para proteger segredos, a tecnologia deverá avançar a passos de camarão - ou seja, para trás. Por isso, os governos e as instituições públicas e privadas serão obrigados a mudar as estratégias de circulação de dados confidenciais.

Eco se pergunta como, no futuro que já se aproxima, um poder irá se sustentar, já que não dispõe mais da possibilidade de conservar os próprios segredos

“Não é extraordinário que a política e a técnica das comunicações governamentais retornem ao tempo das diligências, aos encontros entre as brumas de um banho turco, às mensagens entregues na alcova por alguma condessa de Castiglione”, previa.

Eco enxergava o passado no futuro. Neste sentido, agiu como um profeta às avessas. De qualquer forma, a sua trajetória, condensada na coletânea, é de um intérprete dos fenômenos da comunicação que acumulou documentos e insights até hoje valiosos.

Prova do fato é que o governo italiano, no início de 2021, comprou a biblioteca de Eco, com 30 mil volumes. O acervo de documentos e manuscritos foi dividido entre dezenas de universidades da Itália. Certamente novas coletâneas de inéditos sairão a partir dele.

Os volumes raros foram doados à Biblioteca Nazionale Braidense de Milão. Quanto aos mais recentes, estão sendo organizados pelo arquivo da Universidade de Bolonha, que os recebeu por um regime de comodato de 90 anos.

Isso significa que a obra não será dispersa em coleções particulares. “Eco passa a ser considerado um patrimônio italiano”, afirma Paulo Nassar, professor titular da Escola de Comunicações da USP. “A pessoa não está mais entre nós, mas sua biblioteca agora se encontra disponível a todos, com uma escolha altamente qualificada de referências bibliográficas. Ela reflete uma formação cultural sólida e alta confiabilidade que não tem paralelo no mundo e nem pode ser repetida.”

A herança de Eco vai além de uma coleção invejável. Suas linhas derradeiras mostram um sábio envolvido com as questões de seu tempo. Para escritora Nélida Piñon, integrante da Academia Brasileira de Letras, Eco influenciará por longo tempo autores e leitores. “Sua obra é para a civilização, pois ele tornou a alta cultura acessível a toda a humanidade”, afirma Piñon.

Segundo ela, Eco foi um intelectual rebelde que faz parte de uma linhagem formada pelo comunicólogo Marshall McLuhan e o antropólogo Joseph Campbell. “Ela tocou nos grandes temas humanos, mas também teve um grande protagonismo na comunicação de massa. Basta ler os artigos de ocasião de Eco, acessíveis, mas densos.”