O rei Charles III e a rainha Camilla anunciaram que o prato oficial da coroação será uma quiche. A ideia - criada por um chef do Palácio de Buckingham - é que as pessoas cozinhem em casa, como parte do “Grande Almoço da Coroação”, um banquete nacional e até internacional.
A receita da quiche tem como base uma massa tradicional adicionada com banha. O recheio é de creme com ovo, espinafre, favas e queijo cheddar, tudo temperado com estragão. Assim como o frango da coroação da Rainha Elizabeth, em 1953, a escolha da quiche no caso de Charles revela muito sobre como é inevitável o multiculturalismo na cozinha.
A mensagem de qualquer coroação britânica é, sem dúvida, a celebração do caráter britânico. A questão, então, é o que um um prato típico francês está fazendo no centro de uma mesa britânica?
Talvez, como o pudim de Natal de George V em 1927 – que a propósito foi criado por um chef francês – , a quiche de Charles sirva para nos dizer algo sobre quem somos. Mas as mensagens podem se perder com o tempo.
O pudim de Natal pretendia mostrar a grandeza de pertencer ao império britânico, mas agora é mais provável que façam as pessoas recordarem de sua violência. Momentos importantes, como a coroação de um novo monarca, são marcados por refeições que comemoram a ocasião especial.
Mas o rei Charles III terá uma cerimônia mais curta e simples do que a de sua mãe, em 1953. Ele não é o primeiro rei a tentar impor moderação nas cerimônias reais.
Influência da culinária francesa
Os monarcas da Inglaterra foram homenageados com banquetes de coroação entre os anos de 1189 até 1830, quando William IV achou que era uma extravagância desnecessária. O antecessor de William, George IV, era bastante conhecido por seu amor à rica gastronomia francesa. Portanto, não é surpresa que ele tenha feito um banquete para encerrar todos os banquetes.
https://www.youtube.com/watch?v=GmR9BaXWviY
Em 19 de julho de 1821, 1.634 comensais se reuniram em torno de 47 mesas colocadas no Westminster Hall para um banquete no meio da tarde. Um livro escrito à mão revela todas as centenas de pratos servidos, no valor de £ 250 mil (equivalente a £ 27 milhões, na cotação de hoje).
Na mesa principal sentavam-se o novo monarca e seis homens da família real. A entrada incluía 20 pratos, como les filets de poulards sautés aux champignons (frango salteado com cogumelos), les cotelles d'agneau, panées, grillées, sauce poivrade (costeletas de cordeiro empanadas e grelhadas em molho de pimenta) e le paté chaud de caille à l'espagnole (uma torta de codorna, servida quente).
Depois foi servida a refeição principal – com 22 iguarias – e a sobremesa, com 31 pratos. A refeição incluiu linguado cozido em champanhe, sopa de tartaruga, um vaso de açúcar recheado com merengues e outros doces, cobertos por sorvetes, bolachas e frutas frescas, como melões, grapefruits, ameixas e nectarinas.
Qualquer animosidade cultural que persista entre britânicos e franceses é mais paradoxal na cozinha do que em qualquer outro lugar. A alta gastronomia na Grã-Bretanha é há muito tempo influenciada pelas novas tendências do outro lado do canal.
Quando George IV contratou Antonin Carême, o chef mais famoso de sua época, para cozinhar em suas casas em Londres e Brighton, em 1816, o cozinheiro observou que grande parte da dieta da Grã-Bretanha era, na verdade, francesa.
Ao optar por um prato da França, Charles segue os passos de seus antepassados. O pudim de Natal inglês de George V foi criado por um chef francês. O cardápio de Elizabeth II para seu almoço de coroação - muito parecido com o do banquete de coroação de George IV - foi escrito quase inteiramente em francês, embora contasse uma história britânica.
Uma história britânica
O almoço de Elizabeth em 1953 - como o banquete de George IV - começou com um caldo de tartaruga que Carême declarou ser a sopa nacional da Grã-Bretanha. Ele estava certo. A sopa ocupou um lugar de destaque nas mesas de banquete ao longo dos séculos XVIII e XIX.
Mas a iguaria só existia devido à exploração das colônias ultramarinas pela Grã-Bretanha. O prato revelava a violenta história colonial da nação, mesmo que essa não fosse a mensagem que os idealizadores do cardápio de Elizabeth pretendessem transmitir.
Após a sopa foi servido um prato de linguado chamado “delices de soles Prince Charles”, em homenagem ao herdeiro, ressaltando deste modo a continuidade e estabilidade da monarquia. Seguiu-se o cordeiro cozido à la Windsor, acompanhado de vagens, aspargos e, mais tarde, morangos, todos plantados nos arredores.
A comida cultivada localmente também foi uma grande paixão de um monarca anterior: George III. Embora mais frequentemente retratado na cultura popular como o “rei louco George” (ele sofria de doença mental), ele também ficou conhecido como “Fazendeiro George”. O monarca escreveu artigos sobre agricultura usando o pseudônimo de Ralph Robinson.
Ao contrário da predileção de seu filho George IV pela sofisticada gastronomia francesa, George III preferia sabores tipicamente britânicos: tortas de frutas e pratos simples de ovo e espinafre. Mas, mesmo neste caso, a história da comida britânica tinha inflexões europeias.
Os livros nos quais se mantinha um registro diário dos jantares do rei intercalavam palavras francesas e inglesas para descrever pratos de carne assada, guisados e pudins.
Como o rei britânico tinha um título de nobreza em Hannover e sua esposa, rainha Charlotte, era uma princesa alemã, também há indícios de comida da Alemanha nos livros reais (o spin off da série Bridgerton, "Rainha Charlotte", que estreou na Netflix, traz a história romanceada desse casal real com protagonismo das refeições**). Quando se trata de escolhas alimentares, sabores e técnicas culinárias, a Grã-Bretanha era, e continua sendo, parte da Europa.
Charles III compartilha a paixão de George pela agricultura. Ele é bastante conhecido por seu ambientalismo e compromisso com plantações orgânicas. Junto com a receita de quiche, as pessoas que desejam preparar o seu próprio almoço de coroação podem baixar na internet receitas de costela de cordeiro assada da coroação com marinada de estilo asiático, do chef sino-americano Ken Hom, além de berinjela da coroação da chef britânica Nadia Hussain.
Devido ao amor da Grã-Bretanha por curry, este foi o sabor principal no prato de frango da coroação inventado por Rosemary Hume e Constance Spry no Le Cordon Bleu London para a Rainha Elizabeth, em 1953. Esses sabores encontram reflexos na receita de Hussain, que, segundo ela, é baseada na culinária de sua própria mãe e nos pratos que ela faz para os filhos.
As escolhas de Charles podem ter a intenção de reconhecer o multiculturalismo da Grã-Bretanha de hoje, mas também são um lembrete do difícil legado do império. As histórias que contamos sobre nós mesmos por meio de nossa comida revelam as coisas que queremos dizer e as que não podemos deixar de revelar.
*Rachel Rich é professora de História Europeia Moderna, Leeds Beckett University
** Nota do editor
Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation