SAN SEBASTIÁN (Espanha) - Os foodies de San Sebastián adoram se gabar dos atributos gastronômicos da cidade basca, no norte da Espanha. Em um raio de 25 quilômetros, ao redor da prefeitura, seus restaurantes somam 18 estrelas Michelin, representando um dos lugares do mundo com a maior concentração de distinções do guia por metro quadrado.
Quioto, no Japão, é a cidade líder nesta categoria, com um total de 128 estrelas. A capital de Luxemburgo fica na terceira posição, com 14 estrelas. Mas, das três, San Sebastián ainda pode se orgulhar de contar com uma das melhores escolas de culinária da Europa, o Basque Culinary Center, uma instituição comprometida com pesquisa e inovação, sobretudo para que os ingredientes locais sejam aproveitados de modo inusitado.
A tradição gastronômica de San Sebastián explica o fato de o festival internacional de cinema da cidade, conhecido como SSIFF, dedicar uma mostra paralela exclusivamente à arte de comer, batizada de Culinary Cinema. Essa vitrine integra a tradicional maratona cinematográfica que este ano completa a sua 71ª edição, com encerramento na noite sábado, 30 de setembro.
O segmento Culinary Cinema foi criado justamente para explorar a comida de vários ângulos nas telas, com filmes que flertam com a cozinha ou estão ligados de alguma outra forma à alimentação.
A programação geralmente inclui a faceta mais glamourosa da gastronomia, com documentários de chefs que viraram celebridades e suas criações de dar água na boca. E além de instigar o paladar, há espaço também para produções que abordam a formação culinária, a indústria alimentícia ou a agricultura no geral.
Suas sessões são seguidas de jantares assinados por chefs espanhóis renomados e realizados no prédio do Basque Culinary Center. Para isso, o centro de culinária e a curadoria do festival de cinema trabalham juntos em cada nova edição. Primeiro, eles analisam a produção de audiovisual mundial mais recente em busca de filmes ou das séries (TV e streaming) relacionados aos prazeres da mesa.
Mas não há necessidade de que os títulos escolhidos sejam tão explícitos na associação entre cinema e gastronomia, como os clássicos “A Festa de Babette’’ (1987), “Como Água para Chocolate’’ (1992) ou “Comer Beber Viver” (1994), entre outros. Basta que a produção tenha pelo menos um aspecto ligado à comida.
Após a seleção dos filmes, são escolhidos os melhores chefs para assinar o jantar correspondente ao que foi explorado na tela, buscando um diálogo. E a entrada para o filme seguido de jantar sai por € 80, com ingressos sempre esgotados.
“Como tanto a gastronomia quanto o cinema representam a indústria criativa, para nós é normal unir esses dois mundos com jantares temáticos durante o festival de filmes da nossa cidade”, diz ao NeoFeed, Joxe Mari Aizega, head do Basque Culinary Center.
“É preciso existir uma harmonia entre a produção vista no cinema e o jantar, com o conceito e o conteúdo dos filmes representados nos pratos de alguma forma”, afirma Aizega. “E, quando os filmes permitem, os chefs e os produtos espanhóis estão sempre presentes”, acrescenta, lembrando que um dos focos do Basque Culinary Center é a comida regional.
Um dos filmes selecionados este ano foi “Nan fang nan fang/ Back to the South”, do chinês Xiao Haiping, em que jovem troca Pequim pela zona rural. Lá, ela abre uma pousada e cuida pessoalmente da cozinha, usando as verduras e os legumes plantados na sua horta.
“A natureza foi aqui a nossa principal inspiração”, diz a chef espanhola Martina Puigvert, que dividiu com o conterrâneo Carlos Casilla, a concepção do jantar em homenagem ao filme chinês. O menu da noite contou com tarteleta de cenoura, buquê de folhas, um royal (espécie de batida) de cebola, creme de abobrinha e flor de mel com queijo cremoso, entre outras iguarias.
Martina é chef do restaurante Les Cols, com duas estrelas Michelin, localizado em Girona, na região da Catalunha. Ex-aluna do Basque Culinary Center, ela foi escolhida para comandar o evento de “Back to the South” justamente por seu restaurante apostar na pureza e sazonalidade dos produtos.
“No Les Cols, eu só cozinho o que temos na nossa horta. Tento não usar muitos ingredientes e sim buscar a essência dos alimentos”, contou a chef, que também ganhou uma estrela verde do Michelin, concedida a estabelecimentos comprometidos com a sustentabilidade. “Temos o máximo respeito pela natureza ao nosso redor.”
Outros destaques do Culinary Cinema deste ano foram a minissérie argentina de cinco episódios “Nada”, da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat, e o filme francês “La Passion de Dodin Bouffant”, dirigido pelo vietnamita Tran Anh Hung.
A primeira produção segue os passos de um crítico gastronômico porteño que adora detonar os restaurantes que visita. Já a segunda é um deleite visual, que instiga a gula da plateia, ao registrar a preparação sofisticada de refeições servidas em castelo francês, em 1885, pela cozinheira Eugénie (Juliette Binoche) ao gourmet e amante Dodin (Benoît Magimel).
“A intenção aqui foi justamente encontrar um equilíbrio entre a história de amor e a trama paralela, com foco na gastronomia, outra de minhas paixões”, conta o diretor Tran Anh Hung, que esteve em San Sebastián para promover o filme.
“La Passion de Dodin Bouffant” é o seu segundo longa feito para abrir o apetite o espectador, como ocorreu em “O Cheiro do Papaia Verde” (1993). Esta foi a sua carta de amor à culinária vietnamita e aos costumes à mesa de seu povo, com destaque para as cenas que funcionam como receita da famosa salada do mamão verde, desde a escolha da fruta no pé até o modo de servir.
“É lindo juntar essas duas formas de arte, cinema e gastronomia, que são capazes de transmitir tantas emoções”, comenta a chef Martina. “Sentimentos esses que, muitas vezes, não podem ser expressados apenas por palavras.”