O cearense Ricardo Leite deixou Fortaleza em 2004 para cursar engenharia da computação no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP). Na época, ele se acostumou a dividir o tempo entre os estudos na cidade do Vale do Paraíba e um estágio, na capital paulista.

Esse roteiro ganhou um novo itinerário em 2013, quando Leite embarcou rumo a um MBA na Universidade de Chicago. De volta ao Brasil, em 2015, ele assumiu como diretor-geral do escritório local da BlaBlaCar, aplicativo francês de caronas de longa distância, na época, prestes a ser lançado no País.

De lá para cá, a startup captou € 448,5 milhões junto a fundos como Accel Partners e Insight Partners, em seis rodadas de investimentos, alcançando uma avaliação de € 1,6 bilhão.

Nesse intervalo, o Brasil tornou-se o seu terceiro maior mercado global, atrás apenas da Rússia e da França. Em 2019, 8 milhões de viagens foram feitas pela plataforma no País.

Com a meta de dobrar esse volume neste ano, a empresa está incorporando mais destinos no mercado brasileiro, por meio da oferta de assentos vazios em ônibus rodoviários, iniciada há três semanas.

“Estamos crescendo 100% ano a ano, mas poderia ser mais. Hoje, estamos limitados pela oferta. Não pela demanda”, diz Leite, em entrevista ao NeoFeed. “Com a entrada em passagens rodoviárias, nós invertemos esse fluxo.”

A estratégia segue o percurso iniciado em 2018, na França, a partir da compra da OuiBus. A startup passou a oferecer serviços de ônibus, sob a bandeira BlaBlaBus e com uma frota terceirizada, já disponível em boa parte da Europa, onde as viagens por esse modal ainda não são tão comuns.

Já na Rússia, onde o setor é mais maduro, o formato é diferente. A via escolhida foi a parceria para a venda online de passagens de empresas que já oferecem esses serviços de transporte. Essa estratégia ganhou corpo com a compra da Busfor, companhia local que dominava o e-commerce no setor.

Dada a similaridade entre os dois mercados, esse segundo modelo é o que está sendo adotado no Brasil. A compra das passagens é feita pelo mesmo aplicativo voltado às caronas. A BlaBlaCar cobra uma comissão por cada bilhete vendido, além de uma taxa de serviço dos passageiros. A ideia é fazer da plataforma um marketplace, com diferentes roteiros e preços.

Embora não revele nomes e números, Leite afirma que a BlaBlaCar já fechou alguns contratos no País, sendo que uma das empresas já está em operação na plataforma. Conforme apurou o NeoFeed, trata-se da Eucatur, viação paranaense que atende 13 Estados e o Distrito Federal, com uma média mensal de 330 mil passageiros.

Procurada, a companhia não concedeu entrevista. O aplicativo do BlaBlaCar, no entanto, já conta com algumas ofertas da Eucatur, como linhas que ligam São Paulo a Curitiba (PR) e a Florianópolis.

Na estrada

A BlaBlaCar estima um mercado formado por 800 empresas com atuação intermunicipal e outras 200 que operam com linhas interestaduais, foco inicial da companhia. Nessa frente, a startup já abriu negociações com as 50 viações de maior porte. O plano é fechar 40 contratos até o fim do ano.

Ricardo Leite, diretor-geral da BlaBlaCar no Brasil (à esq.), e Julien Lafouge, diretor financeiro global

Diante do boom da queda nos preços nas passagens aéreas e da procura dos consumidores por esse modal, o transporte rodoviário interestadual teve, porém, uma queda acentuada nos últimos anos. Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o segmento fechou 2018 com 36,9 milhões de passageiros, ante 59,2 milhões, em 2010.

Um novo cenário, no entanto, traz perspectivas de recuperação. Com a redução das ofertas nas passagens aéreas e do poder de compra dos viajantes que vinham migrando para essa vertente, os ônibus voltaram a ser uma alternativa para muitos consumidores.

Outros fatores reforçam esse contexto. No ano passado, a ANTT publicou normas e resoluções que alteram a concorrência no setor, ao estabelecer a liberdade para a definição de preços, itinerários e frequências. “A abertura do mercado vai trazer mais competição em cada rota”, diz Leite. “Nesse contexto, os incentivos para a compra de passagens antecipada e online vão aumentar.”

Dados de uma pesquisa divulgada pelo ClickBus, plataforma de venda online de passagens rodoviárias, mostram que o canal digital representou 6% das vendas em 2017. No período, o segmento contabilizou 160 milhões de passagens comercializadas.

“Hoje, a fatia do online está próxima de 10%”, diz Letícia Pineschi, conselheira da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (ABRATI). Ela observa que essa cultura ainda está sendo absorvida pelas empresas do setor, com o auxílio dos marketplaces. “A internet melhora a experiência do consumidor e essas plataformas propiciam um alcance muito mais rápido e maior.”

Os canais online têm uma fatia próxima de 10% nas vendas totais de passagens rodoviárias no Brasil

Novata no segmento, a BlaBlaCar vai encontrar um bom número de nomes locais que já atuam com as vendas de passagens via internet. O principal deles é o próprio ClickBus, fundado em 2013 e que tem parceria com mais de 100 empresas de ônibus.

A lista inclui ainda nomes como QueroPassagem, Guichê Virtual e DeÔnibus. Além do Buser, aplicativo com um modelo diferente, que conecta passageiros a ônibus fretados, e que tem entre seus investidores fundos como Softbank e Valor Capital, além do Grupo Globo.

“A briga será por preço e vai vencer quem estiver mais capitalizado”, diz William Cordeiro, diretor do GVAngels. Ele compara o passo da BlaBlaCar a movimentos recentes de outras companhias, como a Uber, que integrou seu aplicativo ao transporte público, e a Rappi, que passou a oferecer serviços de táxi. “Cada vez mais, os marketplaces vão usar sua capilaridade para competir pela locomoção dos usuários.”

Com o caixa reforçado pelas rodadas captadas, Leite aponta outros diferenciais para se dar bem nessa disputa. Entre eles, a escala global, uma base de 5 milhões de usuários e a oferta de caronas, o que permite diluir custos de desenvolvimento e de marketing, além de oferecer uma alternativa a mais aos viajantes.

“Nosso plano não é vender passagens de ônibus nem oferecer caronas”, diz Leite.“Nós queremos ser uma plataforma multimodal e maximizar a receita por passageiro, independentemente do que ele escolher.” Nessa direção, ele descarta, ao menos para esse ano, o lançamento local de serviços disponíveis em outros países, como seguros para viagens e o BlaBlaLines, aplicativo de caronas de curta distância.

Atalho para as receitas

Além de marcar a entrada em um novo segmento, o investimento nas vendas de passagens rodoviárias abre caminho para que a operação brasileira da BlaBlaCar comece a gerar receitas. Hoje, a empresa não cobra taxas dos passageiros locais nas caronas, como já acontece em outros países.

“Não temos pressa. O serviço está crescendo, o mercado tem um potencial gigantesco e nossa penetração ainda é baixa comparada a outros países”, afirma Leite. Ele observa que a BlaBlaCar atingiu o break even no Brasil em 2018, a partir de uma estratégia que combina uma equipe enxuta e baixa queima de caixa. “Hoje, 90% dos novos usuários se cadastram a partir de recomendações.”

Com 8 milhões de viajantes em 2019, o Brasil é o terceiro mercado global da BlaBlaCar, atrás de Rússia e França

Leite ressalta que a previsão é começar a testar a cobrança local de taxas nas caronas entre o fim desse ano e o começo de 2021. Até lá, o plano é aprender com os ajustes que vêm sendo feitos no modelo no exterior. “Antes, vamos refinar o formato e crescer o bolo, para minimizar esse choque.”

Com motoristas e passageiros em cerca de 3 mil municípios do País, a prioridade é ampliar essa base em cidades de menor porte. Nesse radar estão regiões como o interior de São Paulo, do Rio Grande do Sul e do Paraná.

A principal estratégia para atrair novos usuários envolve outra vertente até então inédita para a empresa no Brasil: as campanhas com peças em mídias como TV e rádio, com foco regional. No ar desde dezembro, a primeira iniciativa tem como foco a região do Oeste do estado de São Paulo. Para o ano, a BlaBlaCar prevê investir, ao menos, 50% a mais em marketing no País.

“Temos incertezas como toda startup”, diz Leite. “Mas acredito que estamos gerenciando bem nossas vias atuais de crescimento e tomando decisões e riscos calculados que vão ampliar nossas chances de sermos lucrativos no futuro.”

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