Em 2020, um microrganismo de 0,0001 milímetro de diâmetro virou o mundo do trabalho de cabeça para baixo. De uma hora para outra, o isolamento social imposto pelo novo coronavírus obrigou as empresas a adotarem novas formas de trabalho.

A esse movimento, o americano Gary Bolles, presidente adjunto do Future of Work for Singularity University, deu o nome de o grande 'reset”. Em um ambiente de mudanças exponenciais e constantes, o trabalho deve estar centrado no ser humano, diz ele em entrevista exclusiva ao NeoFeed.

Do ponto de vista do indivíduo, é preciso desenvolver novas “categorias” de habilidades como identificar os processos para adquirir os conhecimentos, capacidade de analisar e persuadir em diferentes situações, e aprender a administrar o “eu”, como na persistência e no controle da raiva.

Autor do livro The Next Rules of Work: The Mindset, Skillset and Toolset to Lead Your Organization Through Uncertainty (“As novas regras do trabalho: mentalidade, habilidades e ferramentas para liderar organizações na incerteza”, em tradução livre), lançado em 2021, Bolles é um dos convidados para o HSM+, evento idealizado pela plataforma de educação corporativa do Brasil, a ser realizado nos dias 22 e 23 de novembro.

Leia os principais trechos da entrevista:

Muito antes da pandemia do novo coronavírus o futuro do trabalho era amplamente discutido. Passada a fase mais crítica da crise sanitária, o que mudou na concepção de futuro do trabalho?
Antes da pandemia, falava-se muito que os robôs e software iriam tirar nossos empregos. Em meu livro, eu traço uma breve história do futuro do trabalho. E a verdade é que as regras do trabalho sempre mudaram. Mas o ritmo e a escala das mudanças aceleraram. O futuro do trabalho é aqui e agora e exige uma nova mentalidade, novas habilidades e novas ferramentas.

Quais habilidades?
Divido as habilidades em três categorias. A primeira é a das “habilidades do saber”, os conhecimentos que adquirimos no processo de aprendizagem de um novo assunto e/ou profissão – da cirurgia cerebral ao conserto do motor de um carro. A segunda, das “habilidades flex”, que podemos usar em diversas situações, como a capacidade de analisar e persuadir. Por fim, as “habilidades self” englobam questões como persistência e controle da raiva, aquelas que usamos para administrar nós mesmos.

Entre essas habilidades, alguma se destaca?
Quatro competências das “habilidades flex” são muito importantes: saber resolver problemas, ser adaptável e criativo e ter empatia. [A esse conjunto de competências, Bolles dá o nome de PACE, sigla para Problem-solving, Adaptative, Criative e Empathy]. Tecnicamente, trabalho se caracteriza pela capacidade humana em resolver problemas – e não importa se a tarefa é limpar o chão ou desenvolver complexas estratégias de mercado. É para isso que somos pagos e pagamos outras pessoas para trabalhar. Em segundo lugar, nossa capacidade de adaptação e nossa criatividade é o que nos difere das máquinas. E a empatia, um superpoder humano, nos permite compreender as necessidades dos clientes, as necessidades de nossos colegas e as necessidades do planeta.

"Quatro competências das 'habilidades flex' são muito importantes: saber resolver problemas, ser adaptável e criativo e ter empatia"

Quais são os legados da pandemia para o mundo do trabalho?
Estamos vivendo em um admirável mundo novo da flexibilidade no trabalho. Embora algumas organizações possam voltar às antigas regras de trabalho - com expediente das 9 da manhã às 5 da tarde, cinco dias por semana -, muitas empresas estão descobrindo que um percentual grande de trabalhadores, especialmente os mais jovens, deseja a flexibilidade. Cerca de metade de todas as funções, em muitos países, porém, ainda exige que as pessoas estejam no mesmo lugar, a maior parte do tempo. Esses trabalhadores têm menos oportunidade de escolha. Em geral, aqueles que trabalham sob demanda, são mais livres.

Mas o futuro do trabalho é muito mais do que transformação digital e expedientes flexíveis. Exige também uma mudança de mentalidade, não?
Sim. As mudanças até agora foram um reflexo da necessidade de sobrevivência em um cenário de mudanças exponenciais. Em meu livro, falo muito sobre a “próxima” mentalidade. E o que é isso? É uma maneira de pensar que nos mantêm preparados para o futuro; para que não sejamos pegos de surpresa. Tudo começa com a “mentalidade de crescimento”, como descrito por Carol Dweck, em seulivro “Mindset”. E continua com a compreensão da necessidade de eficácia (e não apenas de produtividade), da necessidade de alinhamento entre as pessoas da companhia e a da necessidade de envolvimento  –mantendo sempre o foco em diversidade e inclusão. (N: Segundo a psicóloga americana Carol Dweck, “mentalidade de crescimento” é acreditar que sua inteligência e seus talentos podem ser aperfeiçoados e que os desafios e erros são inerentes ao processo evolutivo do ser humano).

O senhor frequentemente cita o trabalho centrado no ser humano como uma das mudanças mais importantes. Por quê?
As antigas regras de trabalho muitas vezes recompensavam gerentes e supervisores por estruturar os cargos em tarefas repetitivas e previsíveis. Pense em funções como lavar pratos em um restaurante ou dar as mesmas respostas repetidamente em um call center. É para isso que os robôs e software são projetados – para realizar sempre as mesmas tarefas. Em geral, os seres humanos crescem de forma mais eficaz quando expostos a desafios variados, em ritmos diferentes.

E quando o trabalho é centrado no ser humano?
As pessoas são desafiadas a usar a criatividade e a empatia para desenvolver as habilidades necessárias para resolver determinado problema, sobretudo quando trabalham em colaboração com outras pessoas. As tarefas chatas e repetitivas serão inevitavelmente realizadas pela máquina. É importante automatizar, mas para aprimorar, não para substituir, bem como ajudar os trabalhadores a desenvolver as habilidades necessárias para um futuro de mudanças permanentes – e não intermitentes. É a coisa certa para garantir que todos tenham acesso a um trabalho significativo e bem remunerado.

"É importante automatizar, mas para aprimorar, não para substituir"

Quais são as habilidades necessárias para os líderes do futuro?
Não gosto de usar a palavra “líder”, pois seu significado foi esvaziado, ao longo do tempo. Prefiro o verbo “liderar”. Qualquer um pode (e deve) liderar. Se houver um problema importante à sua frente e ninguém mais o estiver resolvendo, você provavelmente deveria tentar resolvê-lo. E isso vale tanto para um chão sujo quanto para uma injustiça social. No que diz respeito às habilidades necessárias para aqueles que lideram, um conjunto de habilidades PACE é útil.

Em um de seus artigos, citando novamente Carol Dweck, o senhor escreve que as antigas regras do trabalho estão alinhadas com uma “mentalidade fixa”. O que isso quer dizer? E o há de errado com esse tipo de mentalidade?
Se você gostou de que fez no trabalho ontem e vai adorar fazer a mesma coisa amanhã, você provavelmente tem uma “mentalidade fixa”. Se você gostava do trabalho repetitivo, em seu cubículo no escritório, e, de repente, um vírus apareceu e mudou tudo, você deve ter tido muita dificuldade para se adaptar à nova realidade. Ou seja, você se sente seguro com a ideia de um futuro previsível. Não há inerentemente nada de errado em se ter uma mentalidade fixa. Mas pode ser um grande desafio mantê-la em um cenário de transformação constante e acelerada.

"Não há inerentemente nada de errado em se ter uma mentalidade fixa. Mas pode ser um grande desafio mantê-la em um cenário de transformação constante e acelerada"

O que o senhor tem a dizer às pessoas que, apesar de todas as evidências, seguem acreditando que, mais cedo ou mais tarde, voltaremos às velhas formas de trabalho?
Eu chamo isso de “bungee-cording”, de volta às antigas regras de trabalho. Algumas pessoas tendem a manter seus hábitos. Isso é verdade sobretudo entre os ganharam prestígio e poder, seguindo essas regras. Se você se tornou um executivo bem pago, tem muitos incentivos para querer voltar às velhas regras. Mas, acredito que precisamos da “próxima” mentalidade, para sermos realmente eficazes tanto no nosso próprio trabalho quanto na orientação do trabalho dos outros.