Um novo capítulo ameaça abrir outra frente de embate entre o governo dos Estados Unidos e parte da comunidade internacional. Trata-se de uma indefinição regulatória que se arrasta há anos e de forte interesse estratégico para vários países: a criação de um código de mineração submarina em águas internacionais.
Um encontro na Jamaica, organizado pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) - órgão da ONU com 168 países-membros, encarregado de cuidar do fundo do mar e que tem como secretária-geral uma oceanógrafa brasileira, Leticia Carvalho – estava tentando resolver essa questão.
Mas, após muita discussão, não se conseguiu chegar a um acordo para o estabelecimento de regras de exploração mineral em águas internacionais.
A surpresa é que, horas depois o fim do encontro, a The Metals Company (TMC), empresa canadense de mineração em alto-mar que vinha pressionando para a criação de um marco legal de exploração marinha, anunciou ter "iniciado um processo" com os reguladores dos EUA para solicitar licenças de exploração mineral em águas internacionais
A notícia causou surpresa porque os EUA sequer são signatários da ISA, que teria poder de veto sobre qualquer iniciativa de exploração marinha em águas internacionais. Mas a empresa canadense, com apoio do governo Trump, diz ter encontrado um meio para contornar o regulador internacional.
Segundo a TMC, o processo com a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOOA), órgão dos EUA que monitora oceanos e atmosferas, se enquadra na Lei de Recursos Minerais Duros do Fundo do Mar Profundo (DSHMRA), de 1980.
Essa lei foi estabelecida como uma estrutura legal provisória para a recuperação de recursos minerais do fundo do mar antes da criação de uma estrutura regulatória internacional sob a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS).
De acordo com o CEO da TMC, Gerard Barron, como o encontro da ISA não chegou a um acordo sobre a autorização de exploração mineral submarina, incluindo como distribuir pagamentos de royalties e como proteger o meio ambiente, a empresa decidiu buscar ajuda do governo Trump.
Segundo ele, a iniciativa tem apoio do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, do secretário de Comércio, Howard Lutnick e dos deputados republicanos Elise Stefanik e Rob Wittman. No fim de semana, o jornal The New York Times noticiou que rascunhos de uma ordem executiva autorizando o plano já estavam circulando, aguardando a assinatura do presidente Donald Trump.
Países regulam a mineração dentro de suas Zonas Econômicas Exclusivas, geralmente se estendendo por 200 milhas da costa. Alguns começaram a permitir a exploração de minerais do fundo do mar, incluindo Japão, Ilhas Cook, Papua Nova Guiné e Noruega.
Mas a maior parte do leito marinho fica em águas internacionais, além do controle de qualquer país. É onde a ISA tem jurisdição. No mar, estão algumas das maiores reservas mundiais de níquel, manganês e cobalto, essenciais para baterias de veículos elétricos (VEs).
O US Geological Survey estimou que uma única faixa do Pacífico Oriental, conhecida como Clarion Clipperton Zone (CCZ), contém mais níquel, cobalto e manganês do que todas as reservas terrestres combinadas. A CCZ se estende por uma área marítima com cerca de metade do tamanho dos EUA, entre o Havaí e o México.
Esses metais (mais o cobre) estão presos em depósitos em forma de batata chamados nódulos polimetálicos, que se formam ao longo de milhões de anos à medida que os minerais na água do mar se acumulam em torno de pedaços de matéria orgânica.
Contradições
A discussão sobre a exploração de minerais espalhados pelo fundo do oceano sempre foi polêmica por causa da falta estudos conclusivos em relação ao impacto ambiental na fauna marinha em águas internacionais.
Jaques Paes, professor do MBA de ESG e sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acompanhou o processo de discussão sobre a exploração mineral submarina e afirma que o tema está cercado de contradições.
“Autorizar uma exploração mineral em alto-mar vai mexer com a vida marinha de um ecossistema de 4 mil metros de profundidade que sequer foi mapeado”, afirma Paes. “A maior dicotomia é um órgão da ONU discutir um assunto tão delicado sem levar em conta os impactos, que vão contra os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) criados pela própria ONU, ou seja, enfraquece a entidade.”
Do ponto de vista técnico, segundo ele, também há problemas: “Uma exploração mineral em alto-mar vai exigir uma tecnologia totalmente diferente da usada para explorar petróleo, a extração será feita numa área aberta muito maior que os poços de perfuração, que não são em águas internacionais e têm profundidade menor.”
Esses problemas explicam a pressão contra a exploração, não só de entidades ambientais. Mais de 30 países da ISA (incluindo nações da Europa, como França, Itália e Alemanha) pediram uma pausa preventiva na atividade de mineração, pelo menos até que as regras estejam completas.
Algumas empresas — incluindo montadoras e empresas de tecnologia como BMW, Volkswagen, Volvo, Google e Samsung — prometeram não usar minerais do fundo do mar.
A ISA, porém, já concedeu 31 contratos permitindo que países membros (e empresas parceiras) explorem minerais do leito marinho, principalmente na Clarion Clipperton Zone. A China abocanhou cinco desses contratos de exploração — mais do que qualquer outro país.
Os metais encontrados nesses nódulos no fundo do mar podem ser usados para construir, além de baterias de veículos elétricos (EV), celulares, painéis solares e outros dispositivos eletrônicos. Eles são separados das terras raras, um grupo de 17 metais também usados em EVs.
Até 2040, o mundo precisará usar o dobro da quantidade desses metais que usa hoje para atingir as metas globais de transição energética, de acordo com a Agência Internacional de Energia. Além disso, o planeta precisará de pelo menos quatro vezes a quantidade atual para atingir emissões líquidas zero de gases de efeito estufa.
Muitos dos minerais usados na fabricação de um VE estão se tornando mais difíceis de encontrar em terra, aumentando os custos de mineração nos últimos anos. Um VE típico precisa de seis vezes mais minerais no total do que um veículo movido por um motor de combustão interna.
A fome por minerais dos fabricantes de eletrônicos logo ofuscará a oferta existente. “Quais são as alternativas se não formos ao oceano para esses metais?", pergunta Gerard Barron, CEO da The Metals Company. "A única alternativa é mais mineração terrestre e mais avanço em ecossistemas sensíveis, incluindo florestas tropicais", acrescenta, resumindo a grande questão em torno do tema.