Este é o primeiro artigo aqui na coluna Mente Programada. Fiquei muito feliz com o convite para escrever sobre IA (inteligência artificial), tema com o qual venho trabalhando e estudando há muito tempo, desde os anos 80. Confesso que sou um entusiasta da IA. E não é de hoje.

Lembro que na adolescência devorava livros de Isaac Asimov, como a famosa trilogia “Fundação” e, principalmente, “Eu, robô”. “Eu, robô” foi uma série de contos que são um marco na história da ficção científica, pela introdução das célebres Leis da Robótica, e por um olhar completamente novo a respeito das máquinas. Os robôs de Asimov conquistaram a cabeça e a alma de gerações de escritores, cineastas e cientistas, sendo até hoje fonte de inspiração de tudo o que lemos e assistimos sobre eles.

Depois veio o inesquecível filme de Stanley Kubrick, “2001, uma odisseia no espaço” e com ele o HAL 9000 (Heuristically programmed ALgorithmic computer), que é um computador com avançada inteligência artificial, instalado a bordo da nave espacial Discovery e responsável por todo seu funcionamento. Os diálogos dele com os atores me deixaram realmente impressionado com que o futuro poderia nos trazer.

Quando li um paper sobre Eliza, software criado por pesquisadores do MIT, vi que a IA era possível sim, pois já nos anos 1960 um sistema conseguia interagir de forma razoável com humanos. Comecei a ler todos os livros sobre o assunto e em meados dos anos 1980, consegui aprovação para colocar em prática uma experiência, dentro da empresa na qual trabalhava.

Na época o cenário da IA estava dividido em duas linhas de pensamento, um grupo que adotava o conceito de “rule-based”, também chamado de “expert systems” ou sistemas especialistas, e o grupo que se orientava pelo conceito de redes neurais (neural networks).

As redes neurais pareciam muito promissoras, mas faltavam dados e a capacidade computacional disponível era imensamente inferior à que temos hoje. Pragmaticamente optei pelos sistemas especialistas, pois a lógica de desenvolvimento me parecia mais factível: entrevistar profissionais especialistas em determinada área e codificar seus processos de decisão, em uma árvore de decisão, com If-Then-Else.

Um sistema especialista tem dois componentes básicos: um motor de inferência e uma base de conhecimentos. A base de conhecimento tem os fatos e regras e o motor de inferência aplica as regras aos fatos conhecidos e deduz novos fatos. Primeira dificuldade foi aprender a linguagem Lisp, mas vencida a barreira, a prática de buscar o conhecimento dos especialistas foi um entrave: por serem especialistas eram muito requisitados e não tinham tempo disponível, muito menos para um projeto experimental.

Além disso, era muito difícil tentar traduzir suas decisões, muitas vezes intuitivas, em regras claras para serem colocadas na árvore de decisão. E à medida que ia acumulando conhecimento do especialista, o processo tornava-se mais e mais complexo. Em resumo, o sistema nunca funcionou adequadamente e foi descontinuado. Mas valeu a experiência.

Na última década, a IA renasceu e a ênfase foi direcionada para as redes neurais. Já temos os dois fatores essenciais: capacidade computacional disponível e abundância de dados. Em capacidade computacional, um simples smartphone tem mais poder computacional que um supercomputador Cray-2 de US$ 10 milhões de 1985. E na retaguarda deste smartphone temos nuvens computacionais com capacidades quase infinitas. Em termos de dados, geramos hoje cerca de 2,5 quintilhões de bytes por dia e este número dobra rapidamente.

Um simples smartphone tem mais poder computacional que um supercomputador Cray-2 de US$ 10 milhões de 1985

O ponto de inflexão das redes neurais deu-se em meados dos anos 2000 com as pesquisas de Geoffrey Hinton, que descobriu maneiras eficientes de treinar várias camadas de redes neurais. Isto permitiu o rápido avanço de algoritmos de reconhecimento de imagem e fala. Surgiu o termo “deep learning” que hoje é o motor básico dos principais avanços na área de IA.

Os conceitos de “deep learning” foram a base de construção do AlphaGo, que venceu o campeão mundial de Go, um complexo jogo de estratégia oriental, e posteriormente do AlphaZero, que aprendeu sozinho, em 4 horas, a jogar xadrez e vencer o software campeão mundial , o Stockfish.

O que vemos hoje? A rápida evolução da IA traz impactos tão significativos que ainda não percebemos sua amplitude. Não temos ideia de como será o mercado de trabalho em 2050, mas sabemos que a IA e a robótica vão mudar quase todas as modalidades de trabalho atuais, transformando as carreiras e profissões como as conhecemos hoje.

Recentemente li dois livros muito instigantes, que abordam com mais profundidade o tema, e que recomendo enfaticamente sua leitura. O primeiro é “21 Lições Para o Século 21”, de Yuval Noah Harari, e o segundo, “AI Super-Powers: China, Silicon Valley and the New World Order”, de Kai-Fu Lee. Eles complementam outras leituras, das quais recomendo “The Future of the Professions”, de Richard e Daniel Susskind.

O grande salto da IA são os algoritmos de “deep learning”, que vai nos levar à cognição do mundo físico, dando “inteligência” a sensores e dispositivos, e consequentemente criando coisas autônomas. Este processo cria o chamado OMO (online-merge-offline) que é um passo à frente do O2O (online-to-offline) de hoje, integrando por completo os mundos online e offline.

Coisas autônomas, como carros autônomos, convergindo com as ondas de eletrificação e economia do compartilhar, mudarão por completo toda a cadeia do que conhecemos hoje por indústria automotiva. Para termos uma ideia desta revolução, leiam “33 Industries Other Than Auto That Driverless Cars Could Turn Upside Down”, onde além dos setores que pensamos imediatamente, como as próprias montadoras, escolas de direção, seguradoras e estacionamentos, veremos que a onda de choque vai afetar industrias como fast food e planejamento urbano.

A IA abre grandes oportunidades. Um estudo da PwC (Sizing the prize- PwC’s Global Artificial Intelligence Study: Exploiting the AI Revolution) estima que a contribuição potencial da IA para a economia global será de US$15,7 trilhões em 2030, ganhos capturados principalmente pela China e EUA.

Os países em desenvolvimento, como o Brasil, terão os ganhos bem menores, pelo seu ritmo mais lento de adoção de IA. Mas a IA também abre as portas para uma crise em potencial: aumento da desigualdade econômica entre os países e a perda de empregos. A produtividade gerada pela IA será muitas vezes causada pela eliminação ou redução de atividades hoje efetuadas pelos humanos.

Um caminhão autônomo não precisará de um motorista. Um algoritmo que analise com muito mais precisão um exame radiológico dispensará a necessidade de um radiologista. Quando máquinas inteligentes substituírem atividades econômicas exercidas por países que se desenvolvem às custas de trabalho de baixo valor, como Sri Lanka, isso matará as chances destes países evoluírem.

Na verdade, estaremos criando um cenário que diferencia os que tem IA e os que não tem IA. O gap aumenta exponencialmente, pois a evolução da IA depende de dados e do aprendizado dos algoritmos. Quanto mais um país tiver dados (mais digital ele for), mais os algoritmos aprenderão e isso gera um círculo virtuoso que aumenta indefinidamente.

Quanto mais um país tiver dados, mais os algoritmos aprenderão e isso gera um círculo virtuoso que aumenta indefinidamente.

O tema é intensamente debatido e não se tem respostas definitivas. Existe a corrente otimista que acredita que, como a sociedade humana já passou por revoluções antes, como a industrial, e no longo prazo gerou-se mais trabalho que antes, o fenômeno se repetirá naturalmente. Na revolução industrial, empregos foram destruídos no curto prazo, mas no tempo, outros em maior número surgiram. Os cocheiros perderam seus empregos, mas hoje existem milhões de motoristas. E existe uma corrente mais pessimista, que aponta que já existe evidência de uma crise social, que será inevitável, a menos que a sociedade atue com seriedade e urgência para mitigar seus efeitos.

Mas chegar a uma opinião é difícil e complexo. Alguns estudos são mais alarmistas que outros. O “The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation” da Oxford University, de 2013, apontou que 47% dos trabalhos nos EUA poderiam ser automatizados em uma ou duas décadas.

Por outro lado, a OECD (Organization for Economic Cooperation and Development) produziu um estudo alternativo que apontava que apenas 9% dos trabalhos estavam sob risco de desaparecerem pela automatização. O relatório “The Risk of Automation for Jobs in OECD Countries” usou um método diferente. O estudo da Oxford baseou-se na opinião de pesquisadores em IA e o da OECD dividiu os trabalhos em micro-atividades e qual percentual total destas micro-atividades seriam automatizadas.

Posteriormente, a PwC gerou um estudo, “Will robots really steal our jobs? An international analysis of the potential long term impact of automation” que elevava novamente o número. Segundo a PwC, o número de trabalhos em risco de automação nos EUA seria de 38% até 2030. A PwC enfatiza que este número é potencial, podendo ser alterado pela dinâmica social, regulatória e legal, variáveis, que influenciam o ritmo de adoção da IA e seu impacto em eventual substituição de humanos.

A McKinsey publicou seu estudo “Jobs lost, jobs gained: What the future of work will mean for jobs, skills, and wages”, que resultou em uma posição mais otimista, em que 30% das atividades humanas poderiam ser automatizadas, mas apenas 14% dos trabalhadores necessitaram ser realocados.

Outro estudo, este da Bain & Company, “Labor 2030: The Collision of Demographics, Automation and Inequality” optou por uma abordagem diferenciada. Partiu do pressuposto que a IA também poderia afetar o emprego pela destruição de determinado setor de indústria.

O estudo focou na convergência de três fatores importantes que atuam na economia global, a demografia, a automação e a desigualdade. A conclusão é que em torno de 2025-2030, nos EUA, as empresas precisarão de menos 20-25% de empregados, o que significa um deslocamento de uma força de trabalho de 30 a 40 milhões. Uma projeção mundial nos leva a um número muito grande.

O livro “The Second Machine Age”, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee aponta que tecnologias como a IA “interrupt and accelerate the normal march of economic progress”. Eles citam como comparação as tecnologias da máquina a vapor e da eletricidade. Estas tecnologias moldaram a nossa atual sociedade. Elas destruíram empregos, mas permitiram a criação de inúmeros outras profissões, que empregaram bilhões de pessoas.

Mas talvez a IA seja diferente. As outras tecnologias eram basicamente hardware. Caldeiras e motores elétricos precisavam ser projetados, prototipados, fabricados, distribuídos e entregues aos seus usuários. Isto, naturalmente, gera um atrito que faz com que sua disseminação seja razoavelmente lenta. Possibilita que uma economia consiga reagir à perda de empregos, criando outros.

Por outro lado, IA são basicamente dados digitais e algoritmos de software. Podem ser continuamente replicados sem custos adicionais. Sua otimização se dá pelo próprio uso dos algoritmos, que aprendem a cada interação.

O livro de Kai-Fu Lee mostra um quadro interessante, onde analisa o risco de substituição tanto para trabalhos cognitivos quanto para físicos.

As funções no quadrante chamado de “danger zone” estão correndo sério risco de vermos as máquinas executando estas tarefas. Na prática não serão as máquinas substituindo humanos, mas humanos que estão fazendo o trabalho das máquinas. “Safe zone” são as atividades que provavelmente não serão ameaçadas, mas não significa que a IA não estará atuando lá. Mas será um trabalho cooperativo, humanos e máquinas. Os demais quadrantes serão afetados à medida que a IA evolui e setores de indústria sejam transformados. Muitos trabalhos poderão ser efetuados por máquinas, mas o aspecto social fará com que os humanos predominem.

Qual será o papel da IA na sociedade? Os robôs substituirão pessoas? As pessoas que executam tarefas repetitivas verão estas tarefas serem substituídas por robôs. Mas, o mais provável é que a IA venha a aumentar o desempenho humano, automatizando certas partes de uma tarefa, permitindo que os indivíduos se concentrem em aspectos mais "humanos" que exigem habilidades empáticas, sociais e inteligência emocional.

O mais provável é que a IA venha a aumentar o desempenho humano, automatizando certas partes de uma tarefa

No futuro próximo, trabalhadores e máquinas trabalharão em conjunto, cada um complementando os esforços do outro. As organizações de RH terão que desenvolver novas estratégias e ferramentas para recrutar, gerenciar e formar uma força de trabalho híbrida humano-máquina. É uma mudança significativa nas formas de como RH seleciona, contrata e avalia profissionais. Demanda uma redefinição das funções atuais e a acomodação de novas funções, que nem existem hoje no vocabulário de RH.

Dado a forma como os modelos de trabalho tradicionais, definições de carreira e o setor RH estão arraigados, a reengenharia do trabalho em torno da IA será um grande desafio. Vai demandar novas formas de pensar sobre empregos, cultura empresarial, tecnologia e, mais importante, pessoas.

Mas, é absolutamente essencial termos o senso de urgência com relação a estas questões. O Brasil não está em outro planeta. Se não tivermos estudos e ações concretas, poderemos sofrer, no futuro breve, uma crise de grandes dimensões. Nós que devemos controlar a IA e criar os mecanismos que nos permitam usufruir de seus benefícios, mitigando seus riscos.

Devemos ter em mente que os computadores não substituirão os humanos. Substituirão funções. Serão complementos para os humanos e não seus substitutos. Os negócios mais valiosos do mundo das próximas décadas serão desenvolvidos por empresas que usarão a IA para fortalecer as pessoas e não torna-las obsoletas. Serão vencedoras as empresas que souberem fazer com maestria com que os sistemas de IA ajudem os humanos a fazerem o que antes era considerado inimaginável. A IA não envolve uma equação de soma zero, humanos versus IA, mas sim de complementaridade, humanos mais IA gerando mais inteligência.

*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.