O jovem José Reveles trabalhava como salineiro na cidade de Figueira da Foz, em Portugal, quando, no início do século 20, fez as malas e partiu para o Brasil. Veio com a esperança de fazer a vida na Costa do Sol, no litoral fluminense. A atividade salineira, ouvira dizer, crescia na região. Ao chegar na Praia Seca, em Araruama, ele comprou um pedaço de terra, formou família e prosperou.

Quase 110 anos depois, hoje, quem cuida de uma parte das salinas dos Reveles é a trineta de José, Camila, oceanógrafa e mestre em biotecnologia marinha. Diferente de seu antepassado, porém, ela não produz sal.

Em 2020, com a ajuda dos pais e do namorado, recuperou o terreno em ruínas e começou a cultivar salicórnia, o popular “aspargos do mar”. No ano seguinte, Camila fundou a Salty.

“Quando conheci a planta, fiquei encantada”, conta ela, em conversa com o NeoFeed. Em tempos de emergência climática, usar a água do mar para cultivar alimentos é uma alternativa promissora para driblar a escassez de terras agrícolas e de água doce, completa.

Em 2021, a startup conquistou o Shell Iniciativa Jovem, prêmio internacional concedido a negócios inovadores e sustentáveis. Familiar e artesanal, a produção da Salty ainda é pequena – por isso, Camila prefere não falar em números. Mas, a oceanógrafa, de 33 anos, tem clientes de peso, a maioria restaurantes e hotéis.

Em São Paulo, por exemplo, as salicórnias de Araruama são servidas no Mani, da chef Helena Rizzo. No Rio de Janeiro, no Chez Claude, do francês Claude Troisgros. Por enquanto, o único revendedor da Salty é o supermercado de luxo Casa Santa Luzia, na capital paulista.

Agora, a oceanógrafa está começando a cultivar “azeitona do mar”. Tanto essa quanto a salicórnia são plantas halófitas, espécies essencialmente terrestres, mas bem adaptadas aos meios salinos. Com elas, Camila engrossa um movimento cada vez mais comum no ecossistema de inovação agroalimentar global, o da agricultura biosalina.

Camila Reveles, fundadora da Salty
Camila Reveles, fundadora da Salty

Alívio para o campo e a água doce

A agricultura tradicional encontra-se em um entroncamento perigoso, em um momento crucial. É um dos setores mais vulneráveis aos impactos da crise climática e, ao mesmo tempo, um dos principais poluidores do meio ambiente.

Cerca de 80% das terras agrícolas estão ocupadas; um terço delas completamente arrasadas pelo mau uso. E, de cada cem litros de água doce consumida no mundo, 70 vão para a produção de alimentos.

Tem mais. O aquecimento global leva à desertificação do solo. O aumento do nível do mar inunda os lençóis freáticos com água salgada, o que inviabiliza a imensa maioria das culturas e reduz o já minguado reservatório de água doce.

Só na Europa, os prejuízos econômicos com a chamada “intrusão de salinidade” variam de cerca de US$ 630 milhões a quase US$ 670 milhões, por ano.

Por isso, o cultivo de alimentos com água do mar é tido como uma das estratégias mais promissoras para aliviar a pressão sobre o campo e sobre os estoques de água potável.

Crédito de carbono, tomate, batata e repolho

A princípio pode parecer estranho. Mas inundar áreas agrícolas degradadas com água salgada tem dado certo. É o que faz, por exemplo, o escocês Yanik Nyberg.

Ao longo dos últimos quatro anos, com sua Seawater Solutions, ele vem desenvolvendo projetos na Escócia, Gana, Malaui, Namíbia e Vietnã. Nas salinas artificiais da startup de Glasgow são produzidas salicórnias, como Camila faz na Praia Seca.

Batizado Regenerative Seawater Agriculture (RSA), o sistema criado por Nyberg acaba por criar ou recuperar a biodiversidade dos locais onde são implantados. Sem contar que as halófitas, como as algas, capturam o CO² da atmosfera.

No cálculos do fundador da Seawater, as fazendas salinas podem render aos agricultores um dinheiro extra com a venda de créditos de carbono – US$ 3 mil anuais, por cada hectare cultivado.

Yanik Nyberg Seawater Solutions
Yanik Nyberg, fundador da Seawater Solutions

Para além das plantações de halófitas, alguns dos novos empreendedores testam cultivar espécies tradicionais com a diluição de água do mar. A Red Sea Farms, da Arábia Saudita, usa 30% menos água doce do que as lavouras tradicionais, para produzir tomates.

Fundada em 2018, a agtech já levantou US$ 37 milhões, em investimentos de venture capital. Nas fazendas da holandesa Salt Farm Foundation, a água salobra irriga as plantações de batata e repolho.

Graças aos avanços das tecnologias de edição gênica, pesquisadores investigam como usar o DNA das halófitas para tornar as culturas convencionais mais tolerantes ao estresse salino. A resistência dessas plantas é resultado de centenas de milhares de anos de evolução.

Sabor e nutrição

Para se adaptar a solos salinos, como as regiões costeiras, desertos e mangues, as halófitas criaram mecanismos físicos e químicos para absorver o sal da terra e usá-lo em seu benefício, para crescer e se desenvolver.

Por isso, essas plantas têm se revelado ótimas ferramentas para dessalinizar e desintoxicar solos degradados. Terreno por onde as halófitas passam pode voltar a dar grãos, legumes, verduras, frutas...

Um dos processos de defesa das halófitas é a produção de fibras, minerais, vitaminas e gorduras poliinsaturadas. Ou seja, são muito nutritivas. A salicórnia, por exemplo, é considerada um “superalimento”.

De textura crocante e naturalmente salgada, a planta pode ser consumida crua, salteada, refogada ou cozida. Aos poucos, o aspargos do mar e seus pares vêm conquistando o paladar de mais e mais gente, ao redor do mundo. Na rede de supermercados Tesco, do Reino Unido, durante o verão de 2022, a procura por salicórnia cresceu 80%, em relação a 1996.