Um dos primeiros segmentos a sofrer com a Covid-19, as companhias aéreas estão também entre as empresas com menor margem de manobra para contornar os efeitos da pandemia. Esse desafio torna-se ainda mais complexo à medida que todos os cenários apontam para uma lenta retomada no pós-crise.

O sinal mais recente do momento crítico vivido pelas aéreas foi dado nesta terça-feira, com o anúncio do pedido de recuperação judicial da Latam. O processo foi registrado nos Estados Unidos, por meio do Capítulo 11 da Lei de Falências, e inclui as afiliadas no país, Chile, Peru, Colômbia e Equador. As operações do Brasil, Argentina e Paraguai não integram a iniciativa.

Na medida, que busca dar fôlego para o pagamento de funcionários, fornecedores e demais obrigações, a Latam conta com o apoio das famílias Cueto e Amaro, e da Qatar Airways, que estão entre os maiores acionistas da operação e se comprometeram a dar um suporte financeiro de até US$ 900 milhões.

“A Latam entrou na pandemia como um grupo de companhias aéreas saudáveis e lucrativas, mas circunstâncias excepcionais levaram a um colapso na demanda global e não apenas trouxeram a aviação uma paralisação virtual, mas também mudaram o setor no futuro próximo”, disse Roberto Alvo, CEO do grupo Latam, em comunicado, onde ressaltou a decisão como a melhor opção para o futuro do grupo.

Dona de uma receita de US$ 10,4 bilhões em 2019, ano em que transportou 74 milhões de passageiros, a Latam já vinha adotando medidas para lidar com os impactos do coronavírus. Depois de cortar pela metade os salários de seus 41 mil funcionários, em maio, a empresa anunciou a demissão de 1,4 mil funcionários em suas operações no Chile, Colômbia, Equador e Peru.

Antes da crise, a companhia, fruto da fusão entre a brasileira TAM e a chilena LAN, operava 1,4 mil voos diários, em 26 países. Em abril a Latam foi obrigada a reduzir sua frequência e sua malha em 95%. Nesse contexto, a aérea viu seu valor de mercado cair de US$ 5,17 bilhões, antes da crise, para os atuais US$ 1,57 bilhão.

Com o anúncio de hoje, as American Depositary Receipts (ADRs) da empresa negociadas na Bolsa de Nova York registraram uma queda de 39,9% antes da abertura do mercado e encerraram o dia com um recuo de 34,88%. Já na Bolsa de Santiago, no Chile, os papéis fecharam em baixa de 36%.

Em queda

A queda nos indicadores da Latam é apenas uma das pontas no horizonte turbulento das aéreas. Dados fornecidos pela consultoria Economatica ao NeoFeed, com base em ADRs negociadas nos Estados Unidos, mostram que, entre 21 de fevereiro e 22 de maio, 19 das principais empresas aéreas do mundo perderam, juntas, US$ 90 bilhões em valor de mercado.

Além da Latam, o levantamento inclui Gol e Azul, as outras companhias com forte atuação no mercado brasileiro. No pregão de hoje na B3, os papéis das duas empresas fecharam em quedas, respectivamente, de 2,46% e de 3,85%. Desde o início da crise, as ações da Gol recuaram mais de 62%. Já os papéis da Azul tiveram uma queda superior a 72%.

Os resultados do primeiro trimestre divulgados pelas duas empresas também trouxeram reflexos da crise. A Gol apurou um prejuízo líquido de R$ 2,29 bilhões, enquanto a Azul reportou uma perda de R$ 975,3 milhões.

Segundo a consultoria Economatica, entre 21 de fevereiro e 22 de maio, 19 das principais empresas aéreas do mundo perderam, juntas, US$ 90 bilhões em valor de mercado

Ainda sob esse contexto, Latam, Gol e Azul tiveram suas notas de crédito rebaixadas pela Fitch Ratings. Em nota divulgada no dia 19 de maio, a agência citou a incerteza em relação ao tamanho e à duração da queima de fluxo de caixa nos próximos doze meses, e a deterioração da flexibilidade financeira como justificativas para a nova classificação de risco das empresas.

Outros números reforçam a fragilidade do setor no País diante da Covid-19. Em abril, a demanda por voos domésticos teve uma queda de 93,09%. Já a oferta de assentos recuou 91,35% no período, refletindo os piores resultados mensais da série histórica medida pela Agência Nacional de Aviação Civil.

“Das três companhias, a Gol é a mais bem posicionada para enfrentar essa crise”, diz Respício do Espírito Santo Jr., professor de transporte aéreo da UFRJ, ressaltando o fato de a empresa ter uma frota única. “Isso traz mais flexibilidade para se adaptar aos impactos do curto prazo e no pós-crise. Mas não significa que ela também não corre riscos de sobrevivência.”

Nesse cenário, que conta ainda com agravantes, como o fato de boa parte dos custos do setor ser atrelada ao dólar, a busca por um pacote de auxílio a essas empresas por parte do governo federal parece cada vez mais urgente. A questão foi inclusive ressaltada pela Latam no comunicado sobre a recuperação judicial.

Na semana passada, a expectativa era de que Paulo Guedes, ministro da Economia, apresentasse um plano nessa direção, que incluiria recursos da ordem de R$ 6 bilhões e a participação de um consórcio de bancos, sob a coordenação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

O programa, no entanto, ainda não foi anunciado e a semana foi encerrada com a divulgação do vídeo da reunião ministerial conduzida pelo presidente Jair Bolsonaro, em 22 de abril, que, entre outros conteúdos, trouxe uma fala de Guedes ressaltando que não teria “molezinha para empresa aérea”.

Para Francisco Lyra, sócio da consultoria C-Fly Aviation, a demora do governo brasileiro contrasta com os programas de socorro que vem sendo anunciados em outros países. E pode colocar o País em uma situação ainda mais complicada no pós-crise.

“Há um grande risco de Azul, Gol e Latam serem aniquiladas e de que o mercado global fique na mão de poucos grupos, que têm recebido apoio de seus respectivos governos”, diz o analista. “Se esse cenário se concretizar, o Brasil ficará no fim da fila das prioridades.”

“Há um grande risco de Azul, Gol e Latam serem aniquiladas e de que o mercado global fique na mão de poucos grupos, que têm recebido apoio de seus respectivos governos”, Francisco Lyra, sócio da C-Fly Aviation

Ele entende que, como parte de um setor essencial e que movimentou US$ 18,8 bilhões em 2019, essas empresas precisariam ter acesso a empréstimos de longo prazo, com carência e juros baixos. E aponta como saída para a falta de uma garantia o saldo de R$ 29 bilhões do Fundo de Aviação.

“A recuperação judicial da Latam é só um sinal de que o buraco é mais embaixo”, observa. “Sem essas condições, ou essas empresas vão quebrar ou virá alguém de fora para comprar uma massa falida.”

Segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), os governos em todo o mundo já anunciaram um total de US$ 123 bilhões em recursos para financiar companhias do setor. Os países da América Latina concederam apenas US$ 300 milhões desse total - uma fração do que o mundo tem destinado.

Em conferência realizada hoje pela manhã, Alexandre de Juniac, diretor-geral e CEO da Iata destacou que mais da metade dessa cifra cria novos passivos. “Menos de 10% serão adicionados ao patrimônio da companhia aérea. Isso muda completamente o quadro financeiro da indústria”, afirmou. “Pagar a dívida dos governos e credores privados significará que a crise vai durar muito mais do que o tempo necessário para a demanda de passageiros se recuperar.”

A entidade projeta uma perda global de receita da ordem de US$ 314 bilhões para o setor em 2020. Na América Latina, a estimativa é de um prejuízo de US$ 18 bilhões.

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