O governo federal corre contra o tempo para concluir a modelagem da concessão de hidrovias - último modal de transporte de grande porte no setor de infraestrutura a não dispor de um marco regulatório.

O Plano Geral de Outorgas, em elaboração pelo Ministério de Portos e Aeroportos e pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), agência reguladora do setor, prevê no total a concessão de seis hidrovias a partir de 2025, que deverão gerar R$ 4 bilhões em investimentos diretos.

As concessões terão contratos de 12 anos e obrigação do concessionário de fazer dragagens periódicas para manter a navegabilidade do rio durante períodos de seca, entre outras obrigações. Em troca, o concessionário poderá cobrar pedágio, mas apenas das embarcações com grande carga.

O projeto de concessão do rio Madeira já passou por audiências públicas e deve ser o primeiro a ter certame, no primeiro trimestre de 2025. O do rio Paraguai está previsto para o terceiro trimestre do ano que vem.  As demais concessões hidroviárias, Lagoa Mirim (na fronteira com o Uruguai), Tapajós, Tocantins e Barra Norte (na foz do rio Amazonas) não têm prazo, mas o governo espera concluir em 2026.

Além de ampliar a infraestrutura logística nacional, o maior impacto do novo modal será o de reduzir custos de exportações de grãos pelos portos do Arco Norte – com conexão em quatro das seis hidrovias - e facilitar a construção da Ferrogrão, ferrovia de 933 km que corta a Amazônia.

Já a Hidrovia do Paraguai ajudará a escoar a produção de minérios e a da Lagoa Mirim, ampliar o tráfego de cargas com o Uruguai.

O Brasil dispõe de 42 mil quilômetros de vias navegáveis, sendo cerca de 19 mil quilômetros com viabilidade econômica – ou seja, por onde navios e barcaças transportam grãos, granéis líquidos e combustíveis; veículos; fertilizantes; contêineres e cargas gerais. O objetivo é triplicar a capacidade de rios com viabilidade econômica.

O potencial representado pelas hidrovias é inegável. Além de ser um modal menos poluente que o rodoviário e o ferroviário, ganha de goleada em relação ao custo de frete por tonelada transportada. Uma barcaça com 1.500 toneladas de carga, por exemplo, transporta o equivalente a 15 vagões de trens ou tira da estrada 58 carretas de caminhão de 26 toneladas cada.

As hidrovias começaram a ganhar peso no cenário econômico no início da década passada, quando os produtores de soja e milho do oeste do Mato Grosso trocaram a tradicional rota de exportação de cargas, via rodoviária, até os portos de Santos e Paranaguá, pelo embarque nos portos do Arco Norte.

O novo trajeto passou a ser utilizado principalmente após a conclusão do asfaltamento da BR-163 até Porto Velho (RO). A carga passou a ser colocada em barcaças, subindo via hidroviária até os portos do Amazonas, Pará e Amapá, na Região Norte, além de portos no Maranhão e Bahia.

Um terço das exportações brasileiras de soja e 42,5% dos embarques totais de milho fizeram essa rota no ano passado.

Dragagem e candidatos

Se a consolidação dessa nova rota de exportação do agronegócio impulsionou a aposta nas hidrovias, a grande questão é por que o governo federal demorou tanto para dar início ao processo de concessão.

Em entrevista ao NeoFeed, o secretário de Hidrovias do Ministério dos Portos e Aeroportos, Dino Antunes, explicou que as hidrovias têm características complexas em relação a rodovias e ferrovias, o que exige cautela na elaboração do marco regulatório.

“Para fazer concessão, era preciso conhecer o histórico dos rios e mapear os riscos climáticos potenciais de uma hidrovia, como o baixo nível de calado na seca”, diz Antunes. “Isso só foi possível após o Dnit [órgão do Ministério dos Transportes encarregado de obras] concluir um longo trabalho de levantamento iniciado em 2015.”

De uma forma geral, a concessão vai exigir serviço de dragagem – o concessionário precisará manter o calado do rio num determinado nível mínimo, mesmo em período de seca -, além de fornecer balizamento e sinalização adequados.

As embarcações poderão trafegar à noite e durante a seca. O ganho de eficiência previsto leva o governo a estimar uma redução de 24% no custo das empresas de navegação. O critério de licitação será a oferta de menor tarifa. Transporte de passageiros e barcos ribeirinhos não serão tarifados.

Mesmo sem o marco regulatório concluído, sobra otimismo quanto ao potencial das hidrovias, cujas concessões devem atrair operadores logísticos, empresas de dragagem e grandes exportadores de grãos.

O NeoFeed apurou com agentes do mercado que entre os potenciais interessados em participar das licitações e formar consórcios estão empresas como Bertolini, Cargill, DTA Engenharia, Grupo Maggi, Hidrovias do Brasil e Louis Dreyfus Company.

O cronograma de concessões foi estabelecido priorizando vários fatores, como atratividade econômica e rápida viabilidade. “A decisão de começar os certames pela Hidrovia do Madeira foi óbvia, pois esse rio tem carga consolidada, licença ambiental e verba da Eletrobras”, diz Antunes.

Ele se refere aos fundos criados na lei de privatização da Eletrobras, voltados para a navegabilidade dos rios Madeira e Tocantins, com depósitos por um período de 10 anos no valor total de R$ 885 milhões.

A concessão do Madeira, cujo edital deve ficar pronto este ano, inclui investimento direto estimado para os 12 anos de concessão de R$ 109 milhões e R$ 477 milhões em despesas operacionais, além do aporte de R$ 590 milhões da venda da Eletrobras em dez anos.

A concessão inclui manutenção e operação de seis Instalações Portuárias Públicas de Pequeno Porte (IP4s) no futuro trecho sob concessão, entre Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM).

Com quatro das seis concessões hidroviárias, a Região Norte aposta no modal para tirar do papel outro projeto que vai reduzir ainda mais o custo do frete – a construção da Ferrogrão, ferrovia de 933 km que ligará o trecho entre o município de Sinop, no Mato Grosso, e o porto de Miritituba, no Pará.

A obra, estimada em R$ 25,3 bilhões, aguarda licenciamento ambiental. Na terça-feira, 8 de outubro, o Ministério dos Transportes anunciou estar estudando uma "oferta casada" para viabilizar a Ferrogrão, incluindo a BR-163, cujo trajeto corre paralelo ao projetado pela ferrovia.

A ideia é tentar concluir a Ferrogrão até 2032 - ano que termina a concessão da BR-163, hoje administrado pela concessionária Via Brasil - e realizar um leilão em que o vencedor assumiria a concessão da rodovia e também da ferrovia.

Fábio Vasconcellos, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Naval do Estado do Pará (Sinconapa), diz que as hidrovias e as possíveis conexões com os modais rodoviário e ferroviário vão trazer um boom de investimentos para o seu setor, que transporta 9 milhões de pessoas por ano pelos rios da Região Norte.

O Sinconapa prevê, até 2033, a construção de 80 empurradores de grande porte, 40 de pequeno e de mais 2 mil barcaças - triplicando a frota atual -, totalizando R$ 15 bilhões de investimentos, além da criação de 3 mil empregos diretos.

“O maior ganho virá com a consolidação de um eixo de exportação que inclui os portos de Itacoatiara (AM), Santarém (PA), Vila do Conde (ao lado de Belém) e Macapá (AP), integrado às hidrovias e que faz parte da Bacia Amazônica, passando a competir com o maior eixo exportador de grãos dos Estados Unidos, a Bacia Mississippi-Missouri”, diz Vasconcellos.

Segundo ele, as duas bacias guardam distância semelhantes para os principais portos que recebem grãos - Rotterdam, a 10 mil km, e Xangai, 22 mil km. Em comparação, o porto de Santos está a 16,4 mil km do porto holandês e a 27 mil km do chinês.

“A redução do custo de frete com as novas hidrovias e com a Ferrogrão vai ajudar o agronegócio brasileiro a melhorar sua competitividade, hoje restrita da porteira para dentro”, diz Vasconcellos.

Custos e riscos

Natália Marcassa, CEO da MovelInfra, associação que reúne os seis principais grupos de infraestrutura do País, chama a atenção para dois pontos que estão exigindo cautela do governo para estabelecer o marco regulatório: custo para o concessionário e riscos climáticos.

“Transporte exige previsibilidade, algo que nossos rios não têm, mesmo porque não fazemos manutenção”, diz, referindo-se aos períodos de seca, que vão exigir obras de dragagem. “Não temos demanda que suporte esse investimento privado da concessão, será necessária uma contraprestação pública.”

Marcassa observa que, em audiência pública sobre a Hidrovia do Madeira, foi estipulado um calado mínimo de 3,5 m. “O trecho navegável, que é de 1.100 km, vai exigir manutenção de calado em 75 pontos”, diz, indicando a complexidade envolvida no processo.

O secretário de Hidrovias afirma que a verba da Eletrobrás vai assegurar uma tarifa menor de carga nas duas futuras hidrovias. Para as demais, o governo deve buscar outros mecanismos para fazer aportes.

Antunes admite a necessidade de um aperfeiçoamento do arcabouço legal dos licenciamentos ambientais para o setor. Segundo ele, o principal custo envolvido nas concessões de hidrovias será o de dragagem de manutenção, a operação de retirar a areia sedimentada do fundo do rio periodicamente, em especial no período de seca, para assegurar navegabilidade durante todo o ano.

O outro tipo de dragagem, de aprofundamento – que consiste no aumento de profundidade do rio para permitir, por exemplo, embarcação maior – não é prevista pela concessão, por ser muito mais onerosa e exigir estudos de impacto ambiental.

“Hoje a lei já não fala da necessidade de obter licença ambiental para uma hidrovia, e sim da necessidade de licenciar intervenções no rio”, diz. No caso de um evento climático extremo – como ocorreu com a concessão do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, durante as cheias gaúchas –, Antunes afirma que o governo prevê reequilíbrio de contrato.

Os cuidados na elaboração do marco incluem uma questão pendente – o derrocamento do Pedral do Lourenço, no rio Tocantins. O projeto da Hidrovia do Tocantins prevê a dragagem e a explosão de rochas que compõem o leito do rio em trechos que se estendem por 43 km. Com isso, irá ampliar a extensão navegável do rio de 240 km para 500 km, indo de Marabá até o porto de Barcarena (PA).

O primeiro projeto de derrocamento do Lourenço tem 13 anos, e nesse período já foi obtida licença ambiental do Ibama e licitação para escolher uma empresa para fazer a obra, orçada em cerca de R$ 1 bilhão.

O secretário de Hidrovias descarta jogar a conta da obra para o concessionário. Por isso, é provável que parte da verba de R$ 295 milhões da Eletrobras para o rio seja usada no derrocamento.

"Precisamos criar um modelo de negócio em que a empresa faça o investimento com segurança”, diz Antunes. “Lógico que o concessionário terá de assumir algum risco, mas não aqueles que não consiga dar conta.”