Na Itália do século 18, o camponês Angelo Duca encarnava a figura do bandido-herói. Aos 26 anos, Angiolillo, como era conhecido, ao defender o sobrinho, em uma briga sobre pastoreio de gado, despertou a ira de Francesco Caracciolo, o duque de Martina. Jurado de morte pelo nobre, em 1760, o jovem se viu obrigado a fugir para as montanhas, viver na clandestinidade e, como “fora-da-lei”, passou a roubar dos ricos para dar aos pobres.
Enquanto assombrava os latifundiários da região de Basilicata, no sul do país, era venerado e protegido pela população local. Traído por um companheiro, foi capturado em 1784 e condenado pelo rei Ferdinando I, sem nenhum procedimento judicial. Morreu enforcado na praça de Salerno, sua cidade natal. Virou lenda.
Ao lançar, em 1959, o conceito de “banditismo social”, no livro Rebeldes primitivos, o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) recorreu a Angiolillo para defender a tese de que rebeliões como a perpetrada pelo italiano são a forma mais arcaica de protesto social organizado — cujos ecos reverberaram nos movimentos sociais dos séculos XIX e XX.
“Não se trata de movimentos menores, relegados a notas de rodapé da historiografia oficial, mas de manifestações decisivas e incontornáveis — afinal, são elas que efetivamente fizeram do século XX uma época tão revolucionária”, escreveu o historiador.
Clássico da historiografia moderna, a obra volta agora às livrarias brasileiras, depois de 12 anos esgotada. “Bandidos e salteadores preocupam a polícia, mas deveriam preocupar também o historiador social”, defendia Hobsbawm.
Como o camponês de Salerno, há o eslovaco Jerzy Janošik e o espanhol Diego Corrientes, entre tantas outras figuras “provenientes de períodos tão amplamente separados como a metade do século XVIII e a metade do século XX, e de lugares tão independentes uns dos outros como a Sicília e a Ucrânia dos Cárpatos”, lê-se em Rebeldes primitivos. Todos simbolicamente representados pelo lendário Robin Hood.
“Encantadores e assustadores, os bandidos [sociais] são fonte para um forte e contraditório imaginário sobre o poder, a violência e a justiça popular”, escreveu Hobsbawm.
Ao definir os rebeldes como “primitivos”, a intenção de Hobsbawm era mostrar que essas primeiras mobilizações sociais eram praticamente destituídas de qualquer viés político. Somente a partir dos últimos anos da Primeira Guerra Mundial, os movimentos passaram a se construir em torno de ideologias definidas — fosse o socialismo, o comunismo, o fascismo, o nazismo ou o anarquismo.
“Pré-políticos, esses movimentos sentiam dificuldade de articular suas ideias e ainda não haviam encontrado uma linguagem específica para expressar as próprias aspirações em relação ao mundo”, escreveu o historiador. Como ele analisa, a maioria desses fenômenos pertencia ao universo não letrado.

E, como avaliou, a “carreira” de um bandido social quase sempre começa com um incidente que em si não é grave. Lembre-se da briga de Angiolillo com o duque de Martina: enquanto pastavam, os animais do primo invadiram as terras do nobre.
Os rebeldes primitivos também não realizaram muito e, certamente, não levaram à construção de sociedades mais justas e igualitárias: “O banditismo social, mesmo sendo um protesto, é um protesto humilde e não revolucionário. Ele se insurge não contra o fato de os camponeses serem pobres e oprimidos, mas contra o fato de serem por vezes pobres e oprimidos em excesso”.
Os oprimidos defendidos por eles, no entanto, tendiam a sentir euforia vicária ao ver os poderosos sendo punidos. E, nesse ponto, Hobsbawm mostra como a religiosidade popular oferecia ao povo uma linguagem alternativa de expressão de suas esperanças e frustrações.
Não à toa, outra de suas inspirações para compor Rebeldes primitivos foi o clássico da literatura brasileira Os grandes sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), com “seu entendimento intuitivo — dos sertanejos brasileiros e de seu mundo”.
No fim do século XIX, Antônio Conselheiro liderava a comunidade de Canudos, para onde milhares de pessoas se uniram na crença de uma salvação milagrosa contra os flagelos da seca e da exclusão econômica e social.
No confronto com o Exército, entre 1896 e 1897, “a rebelde Sião de Canudos combateu literalmente até o último homem. Quando foi capturada, não havia um só defensor vivo”, discorreu Hobsbawm. Na guerra, morreram 25 mil.
E sempre foi assim: o povo considerando os bandidos sociais seus paladinos, homens honrados que o protegiam e que ele transformava em mito. “Em troca, o próprio bandido tenta viver à altura de seu papel mesmo quando não é um rebelde social consciente”, argumentou o autor. O cinema, a literatura e as artes plásticas estão repletos de histórias de “criminosos do bem”.
Na construção de lendas, aos bandidos sociais, muitas vezes, são atribuídos poderes sobrenaturais. Dizia-se que Angiolillo possuía um anel que lhe servia de escudo contra as balas dos poderosos.
Oleksa Dovbush, o lendário bandido-herói dos Cárpatos, no século XVIII, só poderia ser morto se fosse atingido por um projétil de prata — desde que ele tivesse sido guardado durante um ano, em um prato de trigo colhido na primavera, benzido por um padre no dia dos 12 grandes santos e sobre o qual 12 padres celebrassem 12 missas.
Curioso quando Hobsbawm afirmou, como razão, que o fim da maioria dos bandidos sociais sempre foi trágico e previsível: pela traição dos poucos em quem confiaram. Como Dovbush, Angiolillo e Salvatore Giuliano, o mais notório dos bandidos sociais recentes, que, aos 28 anos, em 1950, foi assassinado com dois tiros disparados por um de seus companheiros.
Essa prática é tão comum que existe até um provérbio na Córsega para descrevê-la: “Morto depois da morte, como um bandido pela polícia”.