Depois de ser recusada na seleção para os desfiles de 2013 e 2014, em outubro de 2015, aos 20 anos, a modelo Gigi Hadid realizou o sonho de muitas meninas: ser uma Angel e cruzar a passarela do show anual da Victoria's Secret, àquela época uma instituição da cultura pop americana.
Ela fora finalmente escolhida por Edward Razek, diretor de marketing do grupo, responsável pela organização da 20ª edição do desfile da marca de lingerie. Ele gostava de chamar o desfile de "Super Bowl da Moda", mas uma comparação talvez mais precisa fosse uma mistura dos filmes Ziegfeld Follies e Moulin Rouge — com um toque dos Grammys.
Como muitas garotas nascidas na década de 1980, Gigi cresceu vendo o extravagante desfile pela TV. Através da Victoria's Secret, ela descobriu supermodelos como Gisele Bündchen e Tyra Banks. Onde mais as mulheres pareciam tão poderosas e desejáveis?
O sonho de modelagem de Gigi era mais do que uma fantasia juvenil, como contam as jornalistas americanas Lauren Sherman e Chantal Fernandez em Selling Sexy — Victoria’s Secret and the Unraveling of an American Icon (Venda Sexy — Victoria’s Secret e a revelação de um ícone americano, em tradução livre).
Eleito um dos melhores livros do ano pela Amazon, ainda inédito no Brasil, a obra mostra como a marca americana atropelou as grifes tradicionais europeias de roupas íntimas.
Quando Gigi conquistou as bênçãos de Razek, contam as autoras, a Victoria's Secret já havia se tornado os “Estúdios MGM do varejo americano”: uma empresa multibilionária, sob o comando de Leslie "Les" Herbert Wexner, hoje com 87 anos.
E como ele construiu seu império? Com uma estratégia de marketing revolucionária. A Victoria's Secret lançou comerciais sofisticados, ambientados em castelos europeus, e levou o desfile anual de lingeries para a televisão.
Enquanto isso, mais de mil lojas foram abertas. Todas muito bem montadas — as mais chamativas ostentavam escadas de vidro e paredes revestidas de couro.
Mesmo com todo o luxo, vendia calcinhas por U$ 25 e sutiãs push-up por U$ 45, para mulheres de 25 a 35 anos encantadas por suas Angels, personificações da beleza idealizada euro-americana.
“Cada garota com um toque sedutor. Casta, mas sedutora. Nunca amarga, sempre acessível. Fantasias puras e potentes”, observam Lauren e Chantal. No auge, naquele 2015, com faturamento de US$ 8 bilhões, a Victoria's Secret não tinha concorrentes sérios.
As Angels encantavam homens e mulheres. Eles as desejavam. Elas as invejavam. “Seria difícil encontrar alguém, especialmente nos Estados Unidos, que não interagisse com a marca, seus desfiles de moda ou suas lojas onipresentes, até mesmo mulheres que se afastaram das Angels desde o início”, afirmam as autoras.
As Angels
Mas a marca teve um efeito desproporcional nas meninas americanas nascidas na virada dos anos 1980 para os 1990. Segundo o livro, disseram a elas que a sexualidade feminina envolvia um pouco mais do que simplesmente ser vista como sexy. Era uma performance. “E como era ser sexy? A Victoria's Secret estava feliz em mostrar a fórmula, com seus sutiãs, calcinhas e camisolas em desfiles.
Com o dobro dos lucros operacionais de seus concorrentes, a marca tornara-se, em 30 anos, um testemunho do gênio do varejo de Wexner, que, até 2020, foi o CEO mais longevo de uma empresa da Fortune 500. No entanto, com a popularização das redes sociais, os tempos começaram a mudar e a proximidade perigosa do empresário com o financista e criminoso sexual Jeffrey Epstein colocou tudo em xeque.
A história de como a Victoria's Secret saiu de uma pequena rede de butiques de lingerie criada pelo casal Roy e Gaye Raymond, em 1977, para um fenômeno de varejo, enquanto definia um padrão de beleza, antes que seu controle rígido sobre a indústria finalmente escorregasse, está bem descrita em Selling Sexy.
Não que a empresa tenha deixado de ser, em 2025, uma das marcas mais influentes e polarizadoras. Desde a fundação, a Victoria's Secret desenvolveu um culto de seguidores por seus catálogos glamourosos. Naquela época, os compradores tinham poucas alternativas às enfadonhas lojas de departamentos, onde se encontrava a maior parte das roupas íntimas dos Estados Unidos.
Suas porta-vozes supermodelos, as doces, mas sensuais Angels, personificaram um novo padrão de beleza americano. À medida que a definição de beleza se expandiu nos últimos dez anos, porém, a Victoria's Secret não evoluiu e atingiu um ponto de crise.
Os demônios
Enquanto isso, Wexner tornou-se cada vez mais conhecido por seu relacionamento complicado com Epstein, seu consultor financeiro e confidente.
Essa ligação, bastante explorada na mídia, comprometeu sua reputação após a prisão do financista em 2019 por tráfico sexual — ele se matou na cadeia. No ano seguinte, um relatório do jornal The New York Times revelou que Ed Razek assediava as modelos, além de envergonhar as colegas cujos corpos fugiam aos padrões.
Essa soma de falhas financeiras e morais da empresa abalou o negócio.
Se não bastasse, anos antes, entre 2004 e 2006, a organização ambiental ForestEthics iniciou a campanha "Victoria's Dirty Secret", com mais de 750 protestos com críticas à empresa por enviar cerca de 1 milhão de catálogos por dia, totalizando aproximadamente 395 milhões de exemplares por ano.
O material era impresso majoritariamente com papel virgem, proveniente de florestas ameaçadas. A empresa buscou papel legal, mas só em 2016 parou de imprimi-los.
A partir de fontes da Victoria's Secret e de toda a indústria da moda e de lingeries, Selling Sexy discute a relutância dos executivos em atualizar seu modelo de negócios na era digital, o que contribuiu para os crescentes problemas financeiros da empresa ao longo da década de 2010.
Na mesma época, com o movimento de valorização dos “corpos reais”, aumentou o escrutínio da glamourização da magreza adotada desde sempre pela marca.
Nos últimos cinco anos, desde que Wexner deixou a Victoria's Secret, as vendas da marca melhoraram, depois pioraram e então se estabilizaram em um patamar de declínio lento e constante, segundo o livro.
“A empresa ainda é enorme, com mais de US$ 6 bilhões em receita anual e cerca de 18% do mercado de íntimos nos Estados Unidos, mais do que o dobro da participação de seus maiores concorrentes”, lê-se em Selling Sexy.
Para as jornalistas, a Victoria's Secret está longe do fim, mas já não é um negócio à prova de balas nem culturalmente relevante.
“Ela se posicionou de forma tão eficaz como a verdadeira porta-voz da beleza feminina que a estratégia de marketing tornou realidade. Sua visão singular de sexy tornou-se a visão de sexy da América", escrevem Lauren e Chantal. "Até que a cultura mais ampla começou a reconhecer e esperar múltiplas visões de beleza."