Desde o início dos anos 2000 os economistas e analistas do mercado financeiro discutem o que se chama de “desdolarização”. Este seria um processo em que a moeda norte-americana progressivamente perderia a dominância nos pagamentos, no comércio global e na composição das reservas internacionais dos Bancos Centrais. O dólar, no entanto, permanece com relevância significativa no sistema financeiro internacional.

Mais recentemente, o assunto voltou ao foco com o anúncio das medidas protecionistas de Donald Trump que levaram a um redirecionamento do fluxo de capitais ao redor do mundo. Entre a posse (em 21 de janeiro) e o dia do anúncio do acordo entre China e EUA (maio), a moeda americana perdeu 2,7% do seu valor.

A desvalorização foi mais pronunciada em relação às economias avançadas (-3,33%) do que relativo aos emergentes (-2,03%). Os grandes beneficiados nesse movimento de diversificação de carteiras globais foram o ouro (19,7%), o euro (8,0%) e o iene japonês (6,6%). Neste estudo nos propomos a discutir a dominância do dólar como principal moeda e a possibilidade de substitutos a altura.

Há, de fato, uma ameaça à dominância do dólar? A análise da conjuntura indica que existem fatores importantes por trás do menor protagonismo da moeda americana em relação a que se via no início dos anos 2000, conforme elencamos a seguir.

Nossa lista começa com o uso do dólar como ferramenta de política externa e a imposição de sanções contra países considerados rivais. Exemplo de medidas como essas são as sanções ao Irã e à Venezuela e, mais recentemente, a determinação de restrições contra a Rússia após a invasão da Ucrânia em 2022.

Tais ações estimulam os países afetados a encontrar alternativas, como o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), criado pela China como alternativa ao sistema dominante (Swift). O novo instrumento, que permite transações internacionais e pagamentos em yuan, ganhou força após o início da guerra no leste europeu.

Uma outra questão relevante é a crescente inovação nos pagamentos digitais. A adoção de novas tecnologias, que abarca a ascensão das criptomoedas e a substituição dos meios de pagamentos tradicionais por opções online mais rápidas e mais eficientes, diminuem a dependência do dólar nas transações internacionais.

Mais recentemente, dois fatores conjunturais se somaram a essa lista. Em primeiro lugar a crescente preocupação com o déficit fiscal norte americano. A dívida pública do país já se aproxima dos 100% do PIB, mesmo patamar que foi atingido após a segunda guerra mundial quando o gasto público era necessário para garantir o esforço de reconstrução.

Por fim, o aumento de incertezas em relação à política externa norte americana levou a um rebalanceamento das carteiras globais e procura pelo porto seguro em outras regiões, como a Zona do Euro, o Japão e até mesmo em ativos alternativos como ouro e criptomoedas.

Dados apurados pelo FMI corroboram a queda de participação da moeda americana nas reservas internacionais dos Bancos Centrais de cada país, mas indicam que o dólar segue como o principal ativo. Em 2016, início da série histórica, o percentual alocado em dólar em relação ao total era de 65%. Ao final de 2024, o nível havia caído 7 p.p. a 58%.

Na outra direção ganharam força a participação do yuan chines, do iene japonês (+ 2 p.p. no período em cada um deles) e do Dólar canadense (+1 p.p.). Destaca-se, no entanto, que a moeda americana ainda tem representatividade bem acima das demais moedas. O euro, que ocupa o segundo lugar, representa apenas 20% da alocação total das reservas, percentual que se manteve estável entre 2016 e 2024.

A relevância da moeda americana também fica clara quando notamos a sua participação no sistema de pagamentos internacional (Swift). Mais de 80% das transações são feitas em dólar, seguida pelo yuan e o euro (7% e 6%, respectivamente). A representatividade fica ainda mais clara quando comparada à participação dos Estados Unidos no comércio mundial: 13% das importações e 9% das exportações.

É o fim do reinado do dólar?

Conforme mostram os dados, o dólar perdeu força de forma marginal nos últimos anos, mas segue como protagonista. Há, no entanto, alguma tendência de que este movimento se exacerbe e o reinado do dólar se encerre? A resposta é não, ao menos no curto e médio prazo.

A expectativa de que o dólar se mantenha como a principal moeda, apesar dos fatores apresentados aqui se baseia no fato de que não há nenhum candidato com as características necessárias para substituir a moeda americana.

Para resumir este argumento, listamos alguns critérios que levaram à dominância do dólar e comparamos com alguns ativos que poderiam ser os candidatos a assumir esse papel.

Começando pelo Euro, a moeda tem alta convertibilidade e conta com a base de uma economia forte com maturidade de mercado de capitais marginalmente menor que a americana. No entanto, há alguma fragilidade em relação à moeda única que representa os 20 países da Zona do Euro. Por exemplo, os países integrantes da união monetária têm estratégias fiscais diferentes e emissão independente de papéis de dívida pública, fazendo com que a confiança institucional também difira entre eles.

No caso do Yuan chinês, os principais contrapontos estão relacionados ao mercado de capitais ainda em amadurecimento e à baixa confiança institucional e no Estado de Direito. Por fim, as criptomoedas ainda são consideradas ativos demasiadamente voláteis e ilíquidos para se estabelecerem como ativo dominante nas transações internacionais.

A perda marginal de protagonismo do dólar de fato aconteceu, mas de forma lenta e limitada. Ainda assim, ele não parece ter um substituto, ao menos no curto e médio prazo. Atualmente, não há nenhum ativo que combine liquidez, confiança e estabilidade comparáveis com a moeda americana.

*Marcela Kawauti é economista-chefe da Lifetime Asset Management, que detém mais de R$ 20 bi sob gestão, sede em São Paulo e 10 filiais em todas as regiões do Brasil. Kawauti é economista formada pela USP com mestrado em Economia e Finanças pela FGV-SP. São 20 anos de experiência em pesquisa econômica, educação financeira e riscos