No último dia 18 de novembro, Elizabeth Holmes, fundadora da Theranos, foi condenada por fraude a 11 anos de prisão nos Estados Unidos. A sentença pôs fim ao julgamento de um ano e dois meses e a uma longa trama encenada pela empreendedora, que já foi considerada uma das estrelas do Vale do Silício.
Na próxima quinta-feira, 8 de dezembro, três semanas depois desse veredicto, um novo julgamento terá início. O caso envolve outro roteiro, não menos intrincado, e que também promete render longos capítulos nos tribunais.
O palco em questão será um tribunal criminal de Munique, na Alemanha, e o personagem principal será Markus Braun, executivo que foi um dos protagonistas de uma série de escândalos contábeis envolvendo a empresa de pagamentos alemã Wirecard.
No banco dos réus, Braun, ex-CEO da Wirecard, terá a companhia de Stephan von Erffa, ex-head de contabilidade da companhia, e de Oliver Bellenhaus, ex-executivo-chefe de uma subsidiária da empresa em Dubai. O trio será julgado sob acusações de fraude, peculato e manipulação contábil e de mercado.
Esses elementos estão por trás da saga que levou a Wirecard a pedir falência, em junho de 2020, com uma dívida de US$ 4 bilhões. Antes da derrocada, a empresa chegou a ser avaliada em € 28 bilhões, mais do que o Deutsche Bank, e despontou como uma das grandes promessas entre as startups alemãs de tecnologia.
“Espero que os réus enfrentem toda a força da lei. A confiança na Alemanha como centro financeiro foi abalada. Reconstruí-la exigirá um acerto de contas legal completo”, disse Matthias Hauer, membro do partido União Democrata-Cristã (CDU, na sigla em alemão), que integrou uma comissão parlamentar sobre o caso, em entrevista ao Financial Times.
O jornal britânico é, inclusive, uma peça importante nessa saga. Em 2015, o Financial Times publicou uma série de reportagens de Dan McCrum sobre a empresa, que envolveu um trabalho de seis anos, com base em documentos e pistas sobre o esquema de vendas forjadas e manipulação dos balanços da companhia.
A série rendeu o livro “Money Man – A Hot Startup, a Billion Dollar Fraud”, também de autoria do jornalista, além do documentário “O Escândalo da Wirecard”, produzido pela Netflix e que foi lançado pelo serviço de streaming em setembro desse ano.
Apesar dessa repercussão, na época da publicação do material, a Wirecard negou todas as acusações e, nesse movimento, contou com o apoio e a defesa da BanFin, a entidade de supervisão financeira da Alemanha.
Como parte desse enredo, Markus Braun propagou o discurso de que as reportagens do Financial Times iam ao encontro de um plano dos investidores que operam em posição vendida – alugam ações e depois vendem. A ideia seria fazer o preço dos papéis desabar para, posteriormente, recomprá-los mais baratos.
Após uma sequência que envolveu episódios como a montagem, por parte da Wirecard, de uma rede para espionar investidores, McCrum e outros funcionários do Financial Times, os problemas da empresa só trouxeram consequências, de fato, em 2019, após um aporte de US$ 1 bilhão do Softbank na operação.
Novas reportagens voltaram a questionar a contabilidade da companhia que, pressionada por investidores, contratou a KPMG para fazer uma auditoria que, por sua vez, não localizou US$ 2,1 bilhões referente às reservas da empresa, informação que foi confirmada posteriormente pela EY.
A Wirecard chegou a ser avaliada em € 28 bilhões
Sem saída, Braun admitiu que o dinheiro não existia e, em junho de 2020, na mesma época em que a Wirecard pediu falência, ele renunciou à presidência da companhia. Dias depois, o executivo foi preso em Munique.
Braun foi o nome que ajudou a disseminar a fama da Wirecard. Nesse roteiro, que incluiu a construção da sua própria imagem, ele chegou a ser chamado de “Steve Jobs dos Alpes”, em um sinal da ambição dos alemães em mostrar que o país também poderia ser o berço de startups como as novatas do Vale do Silício.
Agora, o executivo deve encarar uma longa batalha nos tribunais. A expectativa é que o julgamento em Munique se estenda, pelo menos, até 2024. Na quinta-feira, os trâmites terão início com a leitura de 89 páginas de acusações e as primeiras testemunhas devem ser convocadas apenas a partir de janeiro.
O fio condutor das acusações é a alegação de que Braun seria o chefe de uma gangue que praticou uma série de fraudes na operação. Entre elas, usar contas adulteradas para convencer bancos a fornecer mais de € 3 bilhões, em dívida, e desviando pelo menos € 255 milhões do caixa da companhia.
Paralelos
Além do longo tempo no banco dos réus, há outros paralelos entre o caso da Wirecard e de Braun com a “novela” da Theranos, estrelada por Elisabeth Holmes. A começar pelo fato que essa última história também inspirou um documentário da HBO, intitulado “A Inventora: À procura de sangue no Vale do Silício”.
Em outra semelhança, Holmes também chegou a ser comparada com Steve Jobs. A Theranos, por sua vez, chegou a ser avaliada em US$ 9 bilhões e também atraiu investidores de peso, como o magnata Rupert Murdoch e os ex-secretários de Estado George Schultz e Henry Kissinger.
Esses recursos e essa fama vieram na esteira da promessa da startup, fundada em 2004, de revolucionar a indústria americana de saúde. O mote era um laboratório portátil, batizado de Edison, capaz de fazer mais de 200 exames com apenas duas gotas de sangue do paciente. E por um preço inferior a US$ 3.
Depois de Holmes estampar a capa das principais revistas de negócios americanas e ser alçada ao status de prodígio do Vale do Silício, a Theranos começou a naufragar à medida que a empresa nunca apresentou um equipamento que entregasse, de fato, sua promessa, entre tantos outros problemas que vieram à tona.
Com isso, Holmes passou a frequentar outras páginas do noticiário em 2018, quando a Theranos fechou as portas, sob uma acusação de fraude de US$ 700 milhões. A empreendedora também foi multada e enfrentou uma série de sanções da Securities and Exchange Commission (SEC). E o capítulo final dessa sua jornada no mundo dos negócios, ao que tudo indica, foi encenada há exatamente duas semanas.