A recém-aprovada emenda constitucional com aumento de despesas às vésperas das eleições (PEC Kamikaze ou PEC da Bondade, a depender de quem usa o apelido), é “um horror”, do ponto de vista das regras democráticas; mas terá, porém, efeitos fiscais limitados, avaliou, ao NeoFeed, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco.

Ele considera a aprovação um “exemplo espetacular” das habilidades do Centrão, e um alerta para as dificuldades de governar numa democracia. “Fizeram uma coisa muito inteligente, porque passaram uma emenda constitucional por quase unanimidade, com votos do PT”, avalia Franco, que minimiza o efeito em curto prazo da medida.

“Na parte fiscal não é essa coisa toda; tinha uma gordurinha, não é um dano espetacular, dramático; foi oportunismo, mas é do jogo”.

Mais que trazer ameaças ao controle das contas públicas, a nova emenda mostrou a capacidade, no Congresso, de encurralar minorias e abriu precedentes para mudanças oportunistas em véspera de eleição, diz Gustavo Franco, que acaba de lançar um novo livro com o amigo economista Fabio Giambiagi, “Antologia da Maldade 2, Epígrafes para um país estressado”.

A obra reúne frases notáveis (e nem tão notáveis) distribuídas em verbetes, em geral carregados de ironia, que ajudam a falar desses tempos atuais. Num desses verbetes, o ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, diz que “em política, não se escolhe o interlocutor”; e “soluções políticas não são boas ou más; (elas) funcionam ou não”.

Para Franco, a aprovação da emenda foi “com os defeitos que estamos vendo uma arquitetura política muito bem urdida pelo Centrão, que apoia o governo”. “Como monta-se um sistema político onde o voto não importa? Todo mundo vota por unanimidade num negócio e aí está errado?”, provoca Franco.

“Sem entrar no mérito; as críticas são pertinentes, é um horror do ponto de vista da lei de responsabilidade, de lei eleitoral sobretudo; mas, foi aprovado por unanimidade”, argumenta. “Por muito menos as pessoas querem enforcar ministros do Supremo; e a pusilanimidade da oposição que votou a favor dessa emenda?”

“Fizeram uma coisa muito inteligente, porque passaram uma emenda constitucional por quase unanimidade, com votos do PT”, avalia Franco

Nas 224 páginas do novo livro de citações (o primeiro, com mais de 300, saiu em 2015), há um verbete dedicado às declarações de Bolsonaro; e o ministro da Economia, Paulo Guedes, é um dos nomes mais frequentes.

Diferentemente do primeiro livro, quando a presidente era Dilma Rousseff, Gustavo diz que, desta vez, teve dificuldade em aproveitar os ditos de Bolsonaro, pela violência, longe da graça que os autores pretendiam para a obra. “Vamos combinar, a Dilma era engraçada, tinha tiradas muito boas”.

“Bolsonaro até pode ser engraçado, mas de um jeito completamente diferente: é grotesco, pesado; precisa estar num dia muito politicamente incorreto, sem tomar banho, para poder achar graça nele”, comenta Franco.

No verbete Bolsonarices, há desde a apologia ao uso de armas a várias manifestações contra as medidas de prevenção contra a pandemia da Covid ou minimizando o impacto da doença.

Há até a frase de desdém por quem lhe cobra pelas declarações desastradas: “Vou me arrepender porque fiz xixi na cama aos cinco anos? Saiu, pô", declarou o mandatário da Nação, em entrevista a jornalistas.

“Bolsonaro até pode ser engraçado, mas de um jeito completamente diferente: é grotesco, pesado; precisa estar num dia muito politicamente incorreto, sem tomar banho, para poder achar graça nele”, comenta Franco

A colaboração com o economista Fabio Giambiagi, filho de argentinos, trouxe à obra grande número de referências ao país vizinho, e frases de personalidades de lá, especialmente jornalistas como o respeitado Jorge Lanata.

Giambiagi é o responsável pelo começo da série, que sugeriu a Gustavo Franco trazendo a coleção de anotações feitas desde a adolescência. “Eu entro com a Maldade”, sugeriu Gustavo, firmando a parceria.

A inclusão da Argentina em verbetes e nas fontes rende descobertas interessantes sobre as semelhanças entre os dois países. Lá também – talvez com mais força – são inúmeras as queixas sobre nepotismo e favoritismos no melhor estilo do “homem cordial”, e frases de efeito com lamentações sobre os rumos do país.

“Na Argentina, o militarismo terminou em catástrofe, a social-democracia em incêndio, o neoliberalismo em ruína e o populismo de esquerda em roubo”, lamenta, na obra, o jornalista Jorge Fernando Diaz.

Curiosamente, frases que parecem se referir ao Brasil de hoje são coisa de um passado distante, como um longo lamento de Rubem Braga, no verbete cansaço, falando da mediocridade de conhecidos na elite carioca “que se acreditam e, ao menos aparentemente, são mesmo o Brasil”.

Diferentemente dos tradicionais dicionários de citações, a “Maldade” de Franco e Giambiagi nem sempre se presta a consultas para buscar fontes de citações famosas. O livro mistura frases edificantes ou bem-humoradas com citações contemporâneas não necessariamente destinadas à eternidade.

“Na Argentina, o militarismo terminou em catástrofe, a social-democracia em incêndio, o neoliberalismo em ruína e o populismo de esquerda em roubo”, lamenta, na obra, o jornalista Jorge Fernando Diaz

A colocação das frases em verbete, também, tem um papel de criar relações irônicas. Como na frase de George Orwell, “Às vezes, o primeiro dever dos homens inteligentes é restabelecer o óbvio”, listada no verbete “Teoria Econômica”. Ou a citação do juiz Ives Gandra Martins desaconselhando empregos a mulheres que as afastem do lar, classificada no item “Talibã”.

Em se tratando de dois economistas firmemente abraçados ao time dos liberais, boa parte das fontes e ditos reforçam ideias e princípios desse grupo, mas com bom humor não raro, jogos irônicos ambíguos.

O heterodoxo Luís Carlos Bresser Pereira até aparece com uma frase criticando economistas liberais de ignorância sobre o uso da taxa de câmbio para aumentar a competitividade da economia que pode ser lida com desdém por quem defende o câmbio livre e com enfática concordância por filiados a outras escolas econômicas.

O próprio Gustavo Franco rejeita a interpretação de que o ministro da Economia, Paulo Guedes aparece como alvo de troça por quase todo o livro. Defende que teme o pior, se o “Posto Ipiranga”, cada vez mais sem gás, for substituído por alguém do círculo bolsonarista. Mas indagado se concorda com algumas frases sobre ou do ministro, sorri malicioso e desconversa: “esse livro só tem aspas, e elas falam por si”.

São frases como aquela em que Guedes jurou não ser calote a proposta de adiar pagamento de precatórios, que, na época mereceram um comentário do próprio Franco (infelizmente não incluído no livro: “Precatório é quando a Justiça manda pagar um calote. Calotear um calote é uma reincidência”).

Em uma obra que pode ser lida para buscar ideias edificantes (e existem muitas) ou para pura diversão, Franco reluta em destacar alguma mais notável. Foi um desafio evitado inclusive na discussão sobre a publicidade do livro, conta.

De fato, não é fácil exemplificar o que seja a obra tendo de escolher entre sacadas tão diferentes quanto “O fascismo [...] não é um programa, é uma paixão”, do escritor italiano Antonio Scurati, e “gosto do Botafogo; não há na terra time mais dostoievskiano”, de Nelson Rodrigues.

No terreno das atualidades, é revelador o verbete “Centrão”, como o primor de pragmatismo do deputado Jovair Arantes (PMDB-GO): “a eleição passou, tem que ajudar a governar; não pode, em hipótese alguma, pensar em atrapalhar porque perdeu a eleição. [...] A bancada está sempre discutindo a melhor forma de ajudar.” Ou, de Fernando Henrique Cardoso: “no Brasil, os partidos que se consideram progressistas disputam quem vai controlar o atraso para fazer o atraso andar”.

Para julgar o atual cenário rancoroso e inflamado da política nacional, há uma escolha farta entre as citações do livro, como a do escritor Milan Kundera: “nada mais tolo que sacrificar uma amizade pela política”. Mas o autor concorda com isso? Não brigou com nenhum amigo nesses últimos tempos? Responde Gustavo Franco:

“Sou culpado de discutir na mesa do jantar; levantar a voz; evitar algumas companhias; escolher com mais cuidado as conversas”, confessa. “Sou culpado, mas, quem não for, que atire a primeira pedra; está acontecendo com todo mundo, e é uma pena.”

ANTOLOGIA DA MALDADE, VOLUME II - Epígrafes para um país estressado
Gustavo H.B. Franco e Fabio Giambiagi
Zahar
Páginas: 184
Livro impresso; R$ 89,90
e-book: R$39,90
Lançamento: 20/07/2022