A rotina do executivo Daniel Martines se divide entre Londres, São Paulo e Johanesburgo. Ele está à frente da expansão do BCG Platinion, unidade do Boston Consulting Group voltada para transformação digital.

O BCG Platinion existe desde 2000, mas ficou restrito à Europa. Só a partir de 2015 começou uma expansão global. Naquele ano, chegou aos Estados Unidos, sob o comando desse paulistano, que hoje é o diretor global da unidade.

Depois, foi se expandindo para diversas geografias ao redor do globo. Agora, baseado em Londres, Martines dá suporte às operações europeias e é responsável pela expansão da África do Sul e do Brasil.

Atualmente, o BCG Platinion conta com mais de mil consultores globais. A tarefa da consultoria é traduzir a estratégia de negócios em produtos tecnológicos. No Brasil, a missão de Martines é crescer o time local. “Não vou dar um número, nosso fator limitante é a velocidade que preciso contratar”, afirma Martinez.

Nesta entrevista ao NeoFeed, Martines discute as principais práticas de transformação digital no mundo e os desafios das empresas tradicionais para não serem “disruptadas” por startups da noite para o dia.

Ele fala ainda sobre o avanço das big tech em serviços financeiros e das inovações das empresas chinesas. E faz uma recomendação inusitada, seguindo uma prática de um gigante do setor de tecnologia do Vale do Silício.

“Para o Google, quando você define seus objetivos de negócios, você tem de acertar 70% deles. Você precisa construir seu plano de negócios com 30% de falhas. Se você é um executivo do Google e acerta 100% do plano, alguma coisa está errada”, afirma Martines. “Usar o Google como um barômetro é uma ideia bem interessante que as empresas deveriam contemplar.”

Confira os principais trechos da entrevista:

O que é transformação digital?
Várias clientes perguntam para a gente: o que é ser digital? Temos uma fórmula em quatro camadas. A primeira é como se cria uma experiência do seu cliente que seja digital através de canais digitais. Num banco, é como você migra o cliente para o banco online em vez de necessariamente focar na agência. A segunda é como você pensa em produtos e serviços digitais. A terceira camada é como você digitaliza os processos internos. E, por último, é quais são as capacidades de viabilização da transformação digital.

O presidente da Accenture, Leonardo Framil, disse em entrevista ao NeoFeed que coragem é o principal componente de um processo de transformação digital. Você concorda?
O melhor exemplo que me vem à cabeça é a forma como o Google pensa. Para o Google, quando você define seus objetivos de negócios, você tem de acertar 70% deles. Você precisa construir seu plano de negócios com 30% de falhas. Se você é um executivo do Google e acerta 100% do plano, alguma coisa está errada. Você não está sendo corajoso o bastante. Mas, refletindo nas empresas tradicionais, eu não sei se isso ainda existe. Começamos a ver, cada vez mais em nossos clientes, times de incubação. São aqueles times que fazem uma aposta, de lançar um produto novo ou um negócio novo, e tentam fazer algo paralelo. Isso acontece porque em vários setores do mercado estão aparecendo startups. Elas precisam começar a fazer algo diferente e a fazer apostas. Usar o Google como um barômetro é uma ideia bem interessante que as empresas deveriam contemplar.

"Para o Google, quando você define seus objetivos de negócios, você tem de acertar 70% deles. Você precisa construir seu plano de negócios com 30% de falha"

Hoje, algumas startups ameaçam setores inteiros. Algumas nem pequenas mais são. A Netflix, por exemplo, ameaça todo o setor de tevê por assinatura. O WhatsApp, as empresas de telefonia. Os taxistas não viram a Uber chegar. Como as empresas devem ligar o radar para um dia não acordarem e descobrirem que todo o seu mercado foi “disruptado” por uma startup?
Fazemos com frequência avaliações de mercado para saber o que pode ameaçar as empresas. Uma das coisas que vimos é que existem casos como o WhatsApp e a Uber que vieram do nada e pegaram as empresas dormindo. Mas não se viu isso acontecer no setor financeiro, de saúde, de transporte e telecomunicações. Neste último, a Netflix está acabando com o mercado de cabo, mas, ao mesmo tempo, está aumentando o tráfego de internet. Há diversas startups no setor financeiro, tanto na área de seguros, como na área de banking. Elas atraíram um público jovem, mas não chegaram a crescer em uma escala grande para ameaçar os grandes bancos, com exceção da Paypal.

Os grandes bancos estão preocupados, fazendo parcerias ou comprando startups. Por outro lado, as big tech dos EUA, como Apple, Amazon, Google, Facebook e Microsoft, estão de olho nos serviços financeiros. Não são eles as principais ameaças aos bancos tradicionais?
É difícil de dizer. Os bancos ainda estão muito protegidos na parte regulatória. Principalmente, os grandes. Acredito que existe muita oportunidade no setor financeiro porque a experiência do cliente raramente mudou. Se você se logar em algum banco aqui ou nos EUA ou na Europa, você vai ver o seu saldo e as suas transações. Mas cada um de nós tem uma necessidade de personalização que os bancos não oferecem. Isso é uma coisa em que as big tech podem entrar muito forte.

Quais setores estão mais ameaçados de serem “disruptados” por uma startup?
Acredito que existem setores que deveriam ser disruptados, como o de saúde e financeiro. Eles são setores que têm mudado muito pouco nos últimos anos.

Mas você acabou de dizer que são setores protegidos na parte regulatória.
Mas também são setores onde há oportunidade de trabalhar com os reguladores. Hoje em dia abrir uma conta no banco é um negócio enorme. A regulação protege o sistema, mas não é a ideal para o consumidor. É algo que com tecnologia pode avançar e tem avançado em países da Ásia. A gente vê uma inovação gigante com o Alipay e o WeChat. E é um nível de inovação que nunca foi replicado. Não existe o equivalente ao WeChat por aqui.

"A gente vê uma inovação gigante com o Alipay e o WeChat. E é um nível de inovação que nunca foi replicado"

Por que a China está mais avançada do que qualquer lugar do mundo na questão de serviços financeiros?
Acredito que existe uma plataforma de base tecnológica que permitiu esse avanço. A Tencent criou a plataforma WeChat e a partir disso foi adicionando outros serviços. Esses serviços existem nos EUA e na Europa, mas são “silados”. Você pode fazer uma coisa ou outra, mas não houve uma centralização como o WeChat conseguiu. Eles (a Tencent) estavam no lugar certo e na hora certa e não tiveram competidores. E isso não aconteceu nos EUA e na Europa, que já eram mercados mais avançados com competidores.

Quais os erros mais comuns num processo de transformação digital?
Há um elemento de tentar fazer uma transformação digital, mas pensando de forma tradicional. Os projetos que a gente vê com mais sucesso são aqueles onde os negócios e TI estão trabalhando junto, fazendo uma parceria no sentindo de metas de negócios. A transformação digital não é uma implementação de sistemas. Ela tem um componente cultural, de empoderamento do negócio, de ter uma visão clara e de uma mudança cultural que não pode entregar valor daqui a três anos, mas sim daqui a três meses.

Por outro lado, quais são os bons projetos de transformação digital em que você trabalhou?
Os melhores projetos são quando as lideranças seniores pensam que ´do jeito que estou fazendo, não estou mais criando valor e os meus competidores estão criando valores de uma forma acelerada, startups estão entrando no mercado e preciso pensar de uma forma diferente’. Quando a empresa cria um apetite de trabalhar de uma forma diferente, esse é o começo de várias mudanças tectônicas que tem de acontecer. Um exemplo é um banco que trabalhamos na África do Sul.

"Não acho que as empresas brasileiras estão atrasadas. O Brasil segue muito rápido as inovações que vem de fora"

O que eles fizeram?
Eles perceberam que os lojistas usavam muitas notas de dinheiro. Na África do Sul, isso levava a uma taxa de crimes muito alta. E todos os lojistas tinham um feature phone (telefone com recursos limitados de acesso a internet), mas não um smartphone. Já que eles já tinham esse aparelho, era uma oportunidade de criar um banco digital que servisse a esses clientes. Eles fizeram um estudo etnográfico e visitaram várias cidades pequenas. Trabalhamos com eles em um time multidisciplinar. Alugamos um espaço tipo WeWork. Se você entrar lá e visitar esse time de Joanesburgo, é como se estivesse no Vale do Silício. Há na parede toda a jornada do cliente, do começo ao fim. Lançamos o projeto como um negócio incubado da empresa, totalmente isolado. Tem até um CEO que senta junto com o time e toma decisões na hora, rapidamente. Lançamos um MVP (Minimum Viable Product) em dezembro. Teve quase o dobro do fluxo de pagamentos que estávamos esperando. E, neste ano, vamos lançar várias versões e escalar para todo o país.

Qual o estágio das empresas brasileiras?
Não acho que as empresas brasileiras estão atrasadas. O Brasil segue muito rápido as inovações que vêm de fora. Hoje, as inovações são mais acessíveis. O brasileiro culturalmente tem mais valor prático. Não fica muito tempo discutindo. Tem de mostrar resultado e ser mais focado em valor. E o Brasil foca em projetos de valor, faz de uma forma econômica, mas que gera valor para as empresas. Inclusive temos clientes globais que escolhem inovar no Brasil para ver se funciona e depois levam para a Europa e para os EUA.  Temos uma conversa com uma seguradora que é exatamente isso. Ela nos disse para inovar nos mercados emergentes para aprender com essa experiência e depois levar para os mercados mais desenvolvidos.

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