Que o Brasil é um país desigual, isso é um lugar comum. Mas o Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus, parece que samba na nossa cara mostrando essa realidade de uma maneira atroz.

Os números gerais mostram que milhares de brasileiros perderam a vida pelo novo coronavírus. Eram mais de 60 mil, quando esse artigo estava sendo escrito. Isso apenas segundo os dados oficiais. Na realidade, devem ser muito mais por conta da enorme subnotificação de casos e mortes. Milhares de brasileiros já foram infectados. E outros milhares ainda serão ao longo dos próximos meses.

Mas quando deixamos de lado a grande fotografia das estatísticas do coronavírus e passamos a analisar os detalhes, os dados mostram, de forma nua e crua, a desigualdade atávica do Brasil. É como um tapa na cara. Não que seja surpreendente. Mas, dessa vez, está desenhado para todo mundo entender.

Uma pesquisa financiada pelo Instituto Semeia, grupo Fleury, Ibope Inteligência e Todos pela Saúde traz cores vivas a esse cenário trágico que afeta as classes mais pobres do Brasil.

Realizada no município de São Paulo, ela colheu 1.183 amostras de sangue dos participantes, divididos em 115 setores da cidade. Em cada um deles, foram sorteadas 12 residências e os moradores convidados a participar do estudo.

Basicamente, os pesquisadores pediam aos moradores para responder um questionário e para fazer uma exame de sangue para medir a quantidade de anticorpos do Sars-Cov-2. A coleta foi feita de 15 a 24 de junho.

Os resultados, divulgados nesta semana, mostraram que 11,4% dos paulistanos têm o anticorpo do vírus. Portanto, tiveram a Covid-19. É um dado impressionante por si só. Mas ele é ainda pior quando analisado sob outros ângulos.

Um exemplo: a soroprevalência da metade mais pobre da população é 2,5 vezes maior do que da metade mais rica (16% versus 5%). Mas não é apenas isso.  Os indivíduos que não completaram o ensino fundamental foram 4,5 mais contaminados pelo novo coronavírus do que aqueles que terminaram o ensino superior (22,9% versus 5,1%).

A soroprevalência é 2,5 vezes maior nos participantes que se identificaram como pretos do que nos brancos (19,7% versus 7,9%). E, por fim, os participantes que vivem em habitações com cinco ou mais indivíduos tiveram contato com o vírus quase duas vezes maior do que aqueles que habitam com um ou dois indivíduos (15,8% versus 8,1%)

A conclusão do estudo é inequívoca. “A epidemia de SARS-CoV-2 no município de São Paulo pode ser entendida como sendo duas epidemias com dinâmicas de propagação distintas, refletindo a desigualdade social presente no município.”

Empiricamente, acreditava-se que essa dinâmica acontecia. Afinal, a maioria das pessoas dos bairros mais pobres não pôde ficar em casa se protegendo do vírus. Portanto, estavam mais suscetíveis ao contágio. Não saíram de casa porque queriam. Ao contrário. Precisavam trabalhar porque suas rendas, em muitas casos, despencaram.

Um estudo divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que a renda de trabalhadores informais foi a mais afetada pelos efeitos da pandemia, com diminuição de 40% do valor habitual.

Estudo divulgado aponta que a renda de trabalhadores informais foi a mais afetada pelos efeitos da pandemia, com diminuição de 40% do valor habitual

No setor privado, os trabalhadores com carteira assinada receberam 92% do salário habitual. Já os não registrados ganharam somente 76% do valor de costume. Os funcionários públicos contratados no regime da CLT perderam 4% da renda, enquanto que militares e estatutários, somente 2%.

Muito se fala do novo normal, numa referência de como vai ser a vida das pessoas e das empresas quando a Covid-19 passar. Em geral, comenta-se sobre a aceleração do processo de digitalização da sociedade e do aumento da solidariedade entre os brasileiros. De fato, são tendências que devem se materializar.

Mas eu gostaria que o novo normal fosse uma valorização de serviços públicos com o Sistema Único de Saúde, o SUS, que apesar de todos os seus problemas e limitações impediu uma tragédia ainda maior no Brasil.

O personagem Macunaíma, do escritor Mário de Andrade, dizia que “pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Quase um século depois de o livro ser publicado, muitas coisas mudaram no Brasil. Mas ainda falta saúde à população. Se quisermos encarar nossos reais problemas, precisamos começar a combater a desigualdade nossa de cada dia.

Como diria Macunaíma, com sua indefectível ironia: “Ai que preguiça!”

Siga o NeoFeed nas redes sociais. Estamos no Facebook, no LinkedIn, no Twitter e no Instagram. Assista aos nossos vídeos no canal do YouTube e assine a nossa newsletter para receber notícias diariamente.