A cliente no balcão revela morar em Berlim e o chef Tsuyoshi Murakami começa a cantar uma canção de ninar em alemão para ela. Para o outro comensal sentado próximo e que vive em Nova York, ele discorre sobre porque precisa usar na harmonização sakês mais adocicados do que o moço estaria acostumado na metrópole americana. E por aí vai sua interação individualizada que, dependendo do nível de intimidade, pode terminar com uma declamação do Pai Nosso ou uma zombaria. “Quero que a minha venda seja um abraço.”

Quem chega ao restaurante Murakami, no Jardins, em São Paulo, pode pensar que faltou dinheiro para finalizar o projeto do espaço minimalista. Mas bastam poucos minutos acomodado em um dos 12 lugares da longa mesa de madeira alinhada ao balcão de aço inox, que faz as vezes de cozinha aberta, para perceber que aquele é o palco perfeito, sem interferências, para receber o estilo extrovertido do chef.

Misto de poeta, cantor e sátiro, ele vale-se, mais do que nunca, de uma enxurrada de sensações, informações e provocações para seduzir sinestesicamente em seu primeiro voo solo após romper há alguns anos com o empresário Marcelo Fernandes, de quem foi sócio por 10 anos no restaurante Kinoshita.

A marca, criada pelo sogro de Murakami, no bairro da Liberdade, foi transferida em 2007 para a Vila Nova Conceição com roupagem de luxo, e segue com a estrela Michelin adquirida pela primeira vez em 2015. “Negócio é como casamento, entre quatro paredes só quem está ali sabe realmente como é”, desconversa, quando questionado sobre a saída.

Foram dois anos fazendo apenas eventos privados até sua própria casa ser inaugurada no final de 2019. E fechada por conta da pandemia apenas seis meses depois. “Fizemos take away por um tempo e em agosto passado reabrimos para almoço. Fiz um menu especial, mas as pessoas chegavam querendo o menu degustação”, lembra. O horário durou apenas três meses. “Não estávamos no desespero de fazer almoço e jantar. E ainda cortamos a segunda. É bom para a equipe relaxar”, completa.

A cada noite são servidos em dois turnos apenas três menus fechados para 12 clientes por vez

Ao lado da esposa Suzana Kinoshita e do filho Jun, o chef showman está decidido a virar o showrunner do próprio futuro. “Com 54 anos de idade, a gente precisa começar a aprender a ganhar dinheiro, se é que eu tenho esse vento a meu favor. Às vezes, acho que ainda estou muito preso na poesia, mas a maturidade ensina e tenho que aprender o ‘show me the money’”.

Ao ver Murakami falando, parece que o restaurante viveu um longo soft opening e agora está em seu momento de grande decolagem. O lugar, é sempre bom reforçar, não tem cardápio fixo ou liberdade de horário para chegar. A cada noite são servidos em dois turnos apenas três menus fechados: a Experiência Murakami, de seis tempos, a R$ 470, pedido por 80% da clientela; o menu de sushis e sashimis, com 18 etapas, a R$ 680; e a Experiência Única, recém-lançada, que conta com nove tempos, inclui uma lata de caviar e sai por R$ 1.150.

Com a segurança de quem é uma das principais referências em gastronomia japonesa no Brasil e mantém há décadas um relacionamento de respeito e confiança com os melhores fornecedores de peixes e outras iguarias da culinária nipônica – caso o wasabi fresco produzido em Pilar do Sul (interior de São Paulo), que foi por dois anos de uso exclusivo do chef –, Murakami diz não precisar de firulas para agradar o paladar.

“Comida japonesa não tem a complexidade de uma cozinha francesa ou italiana. São poucos elementos. O mais importante é saber comprar. É a segurança do corte, do peixe que eu sei que foi pescado ontem e acabou. Os fornecedores já sabem que se não está no nível que eu quero, nem manda. Só me avisa, porque posso usar carne, porco, cordeiro, produtos da horta. O que não dá é para fazer mais ou menos. É melhor fechar o restaurante se não tem produto bom”, define.

Experiência Única, recém-lançada, conta com nove tempos, inclui uma lata de caviar e sai por R$ 1.150

Feito de forma intuitiva, numa folha de papel rabiscada em família, o plano de negócios do empreendimento tem como meta “ter duas semanas de espera para conseguir uma reserva. Ainda não estamos assim. Mas estamos retomando o movimento dos primeiros meses de abertura pré-pandemia.”

Na contramão do mercado, afeito à injeção de capital vindo de sócios e acionistas, ele garante que não almeja parcerias. “Se vier, será algo orgânico e natural, como um relacionamento.” E, após “adquirir a musculatura necessária”, se prepara para escalar. “Em seis meses inauguramos um novo negócio. Não temos pressa, mas também não podemos perder tempo. Será algo único no mercado”, despista.

Wagyu e o wassabi fresco que é ralado na barbatana de tubarrão e vendido em porção de 15g por R$ 80

Mas Murakami deixa escapar que deverá ser um modelo menos intimista que o existente hoje, quando tudo é feito na frente do cliente, da finalização dos pratos à lavagem da louça. E onde, não raro, o serviço pode ser entremeado com tiradas picantes para temperar as fatias de atum bluefin, declamações de Fernando Pessoa para amaciar o lagostim, canções que adocicam o wagyu ou orações para abençoar o wasabi fresco ralado na hora e vendido em porções de 15g a R$ 80.

Apesar de ter os holofotes da casa virados para si, segundo o chef, ali dentro o "cliente é Deus", com direito a pedir o que quiser para satisfazer seu paladar, independente do cardápio. “Se quiser comer hot roll e yakissoba eu faço. É só me avisar antes. Mas será o melhor que ele já comeu na vida”, garante. “Não dá para agradar todo mundo, mas é minha missão atender cada cliente de forma muito personalizada.”

Confira a seguir, a entrevista de Murakami ao NeoFeed:

Você foi na contramão do mercado e retomou o modelo de gestão familiar. Não ter sócio foi uma opção?
Totalmente. Quisemos fazer com nossas próprias forças, em família e uma equipe pequena. Todo dia é uma ficha que cai. Gosto de estar com as pessoas, cozinhar. Mas com 54 anos a gente precisa começar a aprender a ganhar dinheiro, se é que eu tenho esse vento a meu favor. Às vezes acho que ainda estou muito preso na poesia, mas a maturidade ensina e tenho que aprender o ‘show me the money’”.

Como está sendo esse aprendizado?
Está sendo muito desafiante porque sou do operacional. Todo dia tem coisas para resolver. É um equilíbrio entre liberdade e servidão. Mas só de pensar que você está livre, já está preso, então, faz parte do jogo. Suzana (esposa) e meu filho Jun ficam mais no administrativo. Não tenho, nem quero ter de pensar muito no dinheiro. O que não podemos é parar, porque as contas estão aí. É firula falar que restaurante não dá dinheiro. Se não dá é porque se calculou mal. Aí tem que aumentar o preço, reduzir equipe, mandar gente embora, trocar o ponto.

"É firula falar que restaurante não dá dinheiro. Se não dá é porque se calculou mal"

O formato do restaurante, com poucos lugares e sem menu fixo facilita essa equação?
Ter um menu que muda todo dia deixa tudo mais fácil quando você tem um negócio pequeno. Dessa forma, é fácil olhar e conseguir imaginar aquilo multiplicado por 10, 100 ou mil. Claro que a responsabilidade aumenta, mas quando você começa a ter mais operações, consegue ter mais margem ao otimizar o organograma. Além disso, ter os donos próximos e as pessoas certas na operação faz o sangramento curar mais rápido quando acontece. É tudo mais dinâmico.

Sócio nunca mais?
Não tenho esse desejo ou ansiedade. Se vier, será algo orgânico e natural, como um relacionamento. Às vezes, você tem uma boa proposta e não custa nada escutar. Mas o negócio tem que ser baseado na confiança e no respeito para respirar, não pode ser travado. Não dá para levar um mês para comprar uma panela. Um mês! Um mês que a gente podia estar ganhando dinheiro e vendendo mais.

E como você imagina esse relacionamento no futuro?
É possível ter vários formatos de negócio e sócio. Isso é um mundo. Não quero é que entre alguém que estrague o nome que levei anos para construir. Quero estar sempre na operação, no dia a dia. Sinto que ainda se ganha muito dinheiro com restaurantes que tenham um bom líder.

"Quero estar sempre na operação, no dia a dia. Sinto que ainda se ganha muito dinheiro com restaurantes que tenham um bom líder"

Sua operação hoje é focada em você. É possível escalar sem estar fisicamente presente?
Hoje você consegue administrar tudo de um só lugar, não importa se tem negócios em Miami, Porto Alegre ou Manaus. Mas é preciso ter soldados bem escolhidos e treinados para botar tudo na linha, se não desanda. Porque a comida japonesa não tem a complexidade de uma cozinha francesa ou italiana. São poucos elementos. E quando você já tem uma boa conexão, como eu tenho com fornecedores que desenvolvi há anos, tem a segurança de trabalhar sempre com um produto muito legal, independente de onde esteja.

Mas e a logística dos fornecedores?
As peixarias daqui já têm a logística para enviar para todos os lugares. Mas se não mandar do jeito que eu gosto, a mercadoria nem volta. Vai ter de estar no contrato que, se vier fora do padrão – e eu não aceito nada menos que mercadoria 10, do peixe pescado no dia anterior, superfresco – vai virar comida de funcionário ou vou doar. Se não vira bagunça. Se você não tem uma relação de confiança com o fornecedor e um comprador que sabe avaliar, acabou. E isso não acontece só com peixe. Pode ser com qualquer ingrediente.

Você tem uma relação muito próxima aos fornecedores?
Antigamente viajava até a região de Angra para conhecer os barcos, as estruturas. Mas estou nesse mercado desde 1994, e meu sogro muito antes. Já não faço isso. Tenho uns dez fornecedores de peixe e uma relação muito próxima com eles. Sei quem tem barcos exclusivos e quero a confiança de que o meu pedido foi pescado ontem. Porque se o cara mente, sei a verdade na primeira incisão. O peixe pode te enganar por fora, mas começa a deteriorar de dentro para fora e você sente. Eu tenho a segurança de te dar um sushi sem nada em cima e ser um sushi único. Porque o cliente vem aqui para gastar, preencher um vazio e você tem que entregar.

"Eu tenho a segurança de te dar um sushi sem nada em cima e ser um sushi único. O cliente vem aqui para preencher um vazio e você tem que entregar"

Há planos para expandir?
O restaurante está sendo uma boa experiência para adquirirmos musculatura e pensar em novos projetos para escalar de forma organizada e fazer mais dinheiro. Mas seguirá sendo algo pequeno. Vamos sair de um lugar de 12 para 50 lugares, com um modelo único. Acho que inaugura em seis meses. Não temos pressa, mas também não podemos perder tempo.

E essa casa? Tem como crescer?
Há planos para um bar de sushi e uma sala reservada no andar de cima, para quem quiser mais privacidade (o espaço hoje é ocupado por escritório e equipe). Mas meus negócios daqui pra frente, mesmo pensando em escala, sempre terão cozinhas abertas. Não tem como deixar o chef preso, trancado lá no fundo. É preciso ter essa interação com o cliente. Para isso tem que aprender a contratar certo e pagar para ter bons profissionais.

Você conseguiu uma estrela Michelin para o Kinoshita desde a primeira edição do guia no Brasil, em 2015. Mas sua nova casa não entrou na mais recente edição. Batalhar por prêmios está no seu foco de trabalho?
Não seria o meu desejo, não tenho ansiedade de querer mudar o meu serviço – continuarei eu sem meia, de camiseta e falando um monte de besteira –, mas ajudaria para o negócio estar no 50 Best, no Michelin, porque são referências. Atendemos pessoas de todos os estados, e hoje há um poder aquisitivo muito grande espalhado por todo o Brasil. Imagine que eu atenda 1% desse público, de Manaus ou de qualquer outro Estado. É gente pra caramba. E ainda tem muitos desses que não me conhecem. Nossa divulgação ainda é muito no boca a boca.

Você disse que o cliente, para você, é Deus. Como é essa relação?
Todos os dias olho a lista de reservas para estudar quem vai. Se não é um cliente antigo, vou lá no Google pesquisar. Queria ter o luxo de ter um gabinete de inteligência que fizesse isso, mas sou eu mesmo. Quero que o manobrista, os garçons me contem o que está acontecendo com os clientes, qual o momento, o clima que eles chegaram. Porque sua energia para atender é outra quando você tem informação. Automaticamente você modifica a sua abordagem se for preciso. Porque a gente tenta ter um atendimento quase psicanalítico. Porque eu não quero vender de longe.

"Todos os dias olho a lista de reservas para estudar quem vai. Se não é um cliente antigo, vou lá no Google pesquisar. Isso porque a gente tenta ter um atendimento quase psicanalítico" 

É uma relação de afeto?
É uma conquista. Quero que a minha venda seja um abraço. Jogo um monte de isca para me aproximar das pessoas e deixar o negócio menos frio. É um jogo, um teatro, um tabuleiro de xadrez. Se eu falo uma primeira besteira e a pessoa me corta, eu entendo, não tem o que ficar bravo, eu mudo a estratégia. Mas é muito legal quando ela se permite entrar na leveza do momento. É preciso estar relaxado para ter sensibilidade para receber algo diferente. Se não, você fica normal. E eu não quero o normal. A vida é curta.