O valor de uma firma é modelado por dois conceitos: seu modelo de negócios (business model – em que a empresa cria e captura valor) e seu modelo operacional (operating model – como a companhia entrega valor para seus clientes). O modelo de negócios embute a estratégia e sua diferenciação competitiva no mercado e o modelo operacional engloba os sistemas, processos e capacidades para executar as tarefas.

O mundo digital amplia em muito os conceitos básicos típicos da sociedade industrial. Por exemplo, o valor de um carro sob modelo de propriedade (possuir o bem) faz com que haja clara distinção entre um carro popular e um BMW, bem como entre carros de mesma classe, diferenciados pela marca e design. Já sob modelo de uso, por exemplo, utilizando um Uber, uma vez determinada a categoria, como Uber Black, tanto faz a marca do carro que chega para fazer a sua corrida. O que vale mais é a disponibilidade do carro para a corrida.

O modelo operacional é o que entrega o valor prometido. Por exemplo, se o modelo de negócios se baseia em um delivery de encomenda em poucas horas, os processos de logística devem cumprir esse prometido. Isso se torna complexo quando olhamos algumas variáveis como escala (poucas entregas locais são totalmente diferentes de milhares de entregas em âmbito nacional ou global), amplitude de serviços e produtos (fazer um único produto versus uma linha de diversos produtos e serviços correlatos), e aprendizado (como incorporar o aprendizado do dia a dia na melhoria dos processos). Quão mais alinhados estiverem os modelos de negócio e operacionais, mas eficiente a empresa vai operar.

Em um mundo cada vez mais volátil, com mudanças ocorrendo de forma contínua, os modelos operacionais e os próprios modelos de negócio passam a ficar sob pressão de mudanças cada vez mais intensas. O que deu muito certo cinco anos atrás, não gera mais valor para o cliente hoje. A pandemia acelerou a chegada do futuro. O que se imaginava fosse acontecer em cinco ou mais anos foi compulsoriamente antecipado para ser colocado em operação em poucas semanas ou meses. Muitas dessas mudanças foram feitas no atropelo, até pelas incertezas do futuro e expectativas que, uma vez passada a pandemia, as coisas voltariam ao ritmo normal.

Mas as mudanças são irreversíveis. O que foi feito no atropelo, precisa ser aprimorado. Novos modelos de negócio começaram a surgir e provavelmente veremos muita coisa surgindo nos próximos anos. Após a crise financeira de 2008, vimos o nascimento de dezenas e dezenas de novos negócios que se tornaram multibilionários (Instagram, WhatsApp, Uber, Airbnb, Dropbox, Slack, entre outros).

Todos eles foram iniciados por empreendedores que provavelmente teriam conseguido empregos nas empresas já existentes se não fosse a recessão. Nenhum desses negócios foram criados por empresas já existentes. Nenhum foi spin-off delas. Veremos esse tipo de atividade novamente nos próximos anos, porque a crise provocada pela pandemia, muito mais intensa que a de 2008, vai levar a reinvenções dos modelos atuais. As lições que aprendemos com as crises é que as empresas que tentaram permanecer iguais foram cuspidas do mercado, enquanto as que se reinventam se dão bem, como Netflix, Disney, Apple e Microsoft.

Hoje um elemento diferenciador é a inteligência artificial (IA). Não apenas no uso da IA como uma aplicação isolada, um simples chatbot que atende a uma única e restrita área da empresa, mas a IA como motor que impulsiona a criação de novos modelos de negócio e permite a reinvenção dos modelos operacionais. Parodiando os modelos da sociedade industrial, uma empresa com IA no seu core seria como uma “AI Factory”, e como exemplos típicos temos Google, Uber, Airbnb, Amazon e Netflix.

Não existe ninguém no back-office do Google pesquisando a web para atender a uma busca solicitada por um usuário. Não tem nenhum atendente alocando e despachando um carro para atender a uma corrida pedida ao Uber e nem ninguém no telefone para recomendar um produto na Amazon ou filme na Netflix. São algoritmos que funcionam na própria essência desses negócios. Nós humanos podemos fazer tudo que a IA faz, mas não na escala que as máquinas conseguem.

As lições que aprendemos com as crises é que as empresas que tentaram permanecer iguais foram cuspidas do mercado

Usemos o Netflix como exemplo. Uma antiga locadora de vídeos tinha alguns atendentes que conheciam suas poucas dezenas de clientes e seus gostos, fazendo recomendações de filmes bem assertivas. Mas seria impossível apenas com trabalho humano chegar a uma escala de 200 milhões de assinantes, com milhares se conectando a cada segundo para começar a ver um filme ou série. Para ser ter uma ideia da importância da inovação contínua e uso da IA no core do negócio, a Netflix investe mais de US$ 1,5 bilhão em suas pesquisas. Vejam isso em mais detalhes no Netflix Research.

A “AI Factory” cria um círculo virtuoso entre interação e engajamento do cliente, captura de dados, desenho do algoritmo, predição, e aprendizado e melhoria. Mais uso, leva a mais dados coletados, que possibilita melhorar a eficiência do algoritmo, que melhora e otimiza os serviços, fazendo com que ele seja mais usado. E o ciclo se repete, em um processo contínuo de retroalimentação. Em uma “AI Factory” os humanos não estão na operação, mas no desenho e gestão dos processos, processos esses conduzidos pelos algoritmos.

Além disso, quanto mais digitalizados estão seus processos, mas fácil de se ajustar e se adaptar a um cenário em constante movimento. Agilidade e rapidez se tornam fundamentais em um contexto em que os limites e fronteiras entre setores de indústria estão se desmoronando.

Por exemplo, já vai longe o tempo em que a competição no setor financeiro se limitava a uma disputa entre bancos e fintechs. Agora, envolve também varejistas, aplicativos de entrega, operadoras de telefonia e qualquer outro segmento que tenha uma base expressiva de clientes para a qual se possa oferecer produtos financeiros.

O Mercado Livre tem a conta digital Mercado Pago; o Magazine Luiza, o sistema de pagamentos MagaluPay; a Via Varejo tem o Banqi; e a B2W, a Ame Digital. O Rappi criou o RappiBank, e o iFood lançou uma conta digital gratuita para donos de restaurantes. O cenário agora é outro: com o advento do Pix e do open banking, é possível que os superaplicativos das varejistas cheguem - de fato - a incomodar os grandes bancos.

Se olharmos a China, os marketplaces engoliram os tradicionais serviços de pagamento e crédito. Pode ser possível que daqui a alguns anos, se essas plataformas se tornarem mais robustas também por aqui provoquem disrupção nessas áreas tradicionalmente dominadas pelos bancões. Como resposta, as instituições financeiras também se mexem e procuram ir além do mundo das finanças, turbinando seus aplicativos e lançando marketplaces. Mas quem está saindo na frente nesse setor? Os bancos digitais, por serem muito mais ágeis.

Existem desafios imensos na adoção mais massiva de IA, como o pouco ou nenhum conhecimento do potencial e limitações da IA, passando pela escassez de talentos, ausência de governança de dados e da falta de engajamento do nível executivo com a estratégia de IA, muitas vezes relegada a uma simples ação do setor de TI.

Faça um teste fácil: pergunte ao CEO se IA é prioritário para a organização? Ele, muito provavelmente, vai dizer que sim. A seguir pergunte quanto de investimento está sendo dedicado a isso e qual o nível de engajamento dele próprio com as ações de IA? Aproveite e peça para ele resumir a estratégia da empresa e tente mensurar quão próximo ou distante ela está do conceito “AI First”, que vai demonstrar o nível e importância da IA na firma? “AI First” significa que IA se desloca para o core do negócio e não fica apenas na periferia, em sistemas isolados e protótipos.

Se olharmos a China, os marketplaces engoliram os tradicionais serviços de pagamento e crédito

Um dos mais intrigantes aspectos da gestão organizacional é a relação existente entre a estrutura de uma organização e a arquitetura dos seus sistemas tecnológicos. A organização reflete o sistema e o sistema reflete a organização. Com o tempo e a consequente consolidação e cristalização do modelo de negócios, o modelo operacional, suportado pela arquitetura tecnológica tende a refletir esse modelo.

Essa cristalização tende a criar uma forte inércia e resistência às mudanças, que faz com que a empresa tenha muita dificuldade de incentivar mudanças disruptivas nos seus modelos de negócio e operacional. Por isso, vemos muita pouca inovação disruptiva surgindo de dentro das empresas tradicionais. Apenas a inovação incremental é aceita. Sim, ela é importante, desde que o cenário de negócio se mantenha estável. Se muda o cenário, a inovação incremental não será suficiente.

Um exemplo típico de inovação incremental são os sistemas de ERP. Eles, de forma geral, modernizam o modelo existente nas empresas. Não mudam a estrutura e organização, nem transformam modelos de negócios e operacionais. Apenas refletem, com mais eficiência talvez, o que já existe hoje. Mas não são, de forma nenhuma, ferramentas de disrupção.

E se o cenário mudar? E se mudar rapidamente? Por exemplo, imaginemos o efeito de três forças convergentes transformando o que entendemos hoje por indústria automotiva: a eletrificação, a automação (veículos autônomos) e a disseminação do conceito de uso e não mais de propriedade do bem.

Quando olhamos esse cenário vemos uma empresa como a Tesla se posicionando favoravelmente e por isso seu valor de mercado hoje equivale a das outras dez maiores empresas veteranas do setor. A Tesla é uma empresa de tecnologia digital, centrada em IA, que faz automóveis, enquanto as demais são empresas fabricantes de automóveis que usam a tecnologia digital, com IA na periferia. Não é um ERP que vai transformar uma montadora atual em uma Tesla.

O primeiro passo para se tornar uma empresa impulsionada por IA é considerar IA como parte essencial e integrada da estratégia de negócios. IA sai dos labs para ser inserida na agenda do conselho e das decisões dos C-levels. Avaliando-se o potencial e limitações da IA pode-se desenhar novas estratégias e eventualmente novos modelos de negócios, inimagináveis alguns anos atrás.

Essa nova estratégia deve se refletir no modelo operacional. Não se chega lá de um dia para o outro. Precisa-se de forte convicção e paciência para mudar os modelos mentais, que criam resistência às mudanças. Mas a era digital com adoção massiva da IA vai transformar o cenário de negócios e a sociedade como um todo.

Não de um dia para o outro, mas como a eletricidade mudou e moldou nossa sociedade ao longo das últimas décadas, veremos a IA fazendo a mesma coisa nas próximas décadas. Assim, entender as oportunidades, os desafios e os riscos de uso massivo da IA tornam-se essenciais à gestão de qualquer organização. Para competir na era da IA, temos que usar IA.

Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.