Em janeiro, cerca de um mês antes de sua abertura, em 10 de fevereiro, a exposição dedicada ao pintor holandês Johannnes Vermeer (1632-1675), em cartaz no Rijksmuseum de Amsterdã até 4 de junho, já havia vendido mais de 100 mil ingressos, fazendo com que o museu estendesse seu horário de visitação até às 22h, de quinta a sábado, para acomodar a grande procura. De lá para cá, o número pulou para 450 mil e, por ora, não há entradas à venda. A instituição holandesa promete anunciar um novo lote em 6 de março.

Há mais de uma razão para se entender o grande apelo da mostra junto ao público. Ela abriga, claro, seu célebre quadro “Moça com brinco de pérola” (1664-1667), cuja história ganhou as telas do cinema em 2003, com Colin Firth, no papel do mestre holandês, e Scarlett Johansson, como a garota por ele retratada. Mas há outro fator em jogo: o ineditismo da exposição.

O Rijksmuseum apresenta 28 obras de Vermeer – o que representa cerca de 75% do que resta de conhecido de sua parca produção. O museu reúne sete obras a mais do que sua última grande retrospectiva, uma mostra conjunta realizada pela National Gallery of Art, de Washington (EUA), em 1995, e, no ano seguinte, pelo museu Mauritshuis, de Haia, na Holanda.

Moça lendo uma carta à janela (1657-1659)
Moça lendo uma carta à janela (1657-1659): pela primeira vez exibida na Holanda

Uma delas nunca foi vista na Holanda e acaba de ser restaurada: “Moça lendo uma carta à janela”, (1657-1659), pertencente à Pinacoteca dos Mestres Antigos, de Dresden, na Alemanha.

Acredita-se que Vermeer tenha criado de 40 a 45 pinturas, numa carreira que durou cerca de duas décadas. Ou seja, uma média de duas pinturas por ano, um número modesto se comparado a contemporâneos como Rembrandt (1606-1669), a quem se reputa a criação de mais de 300 quadros.

De Vermeer, restam por volta de 35 obras e, uma delas, “A arte da pintura” (1666-1668), considerada uma de suas mais importantes criações, não foi cedida à exposição pelo Kunsthistorisches Museum de Viena, por circunstâncias não reveladas.

A curadoria de “Vermeer” é assinada por Pieter Roelofs e Gregor J.M. Weber. As obras apresentadas no Rijksmuseum vieram de coleções particulares e, em boa parte, de museus, dos Estados Unidos, de outras cidades na Europa e até mesmo do Japão.

Abrem a exposição duas das únicas paisagens conhecidas feitas por Vermeer: “Vista de Delft” (1660-1661), sua cidade natal, e “A pequena rua” (1658-1659), que retrata uma típica morada da região, com mulheres costurando e crianças brincando. A partir daí, somos levados ao universo doméstico, às cenas tranquilas e ao uso singular da luz quem reinam no restante das telas do mestre holandês, como em “A leiteira” (1658-1659).

“A leiteira” (1658-1659)
“A leiteira” (1658-1659)

Assinada pelo arquiteto francês Jean-Michel Wilmotte, a expografia, ou cenografia de “Vermeer”, é considerada por críticos um dos destaques da mostra no Rijksmuseum. Laura Cumming, do jornal britânico The Guardian, ressalta que a disposição das obras é “dramática”: uma sequência de salas pouco iluminadas, em que os quadros ora aparecem sozinhos, ocasionalmente em duplas ou trios, cada um com sua própria iluminação.

Já Philippe Dagen, do francês Le Monde, salienta que a expografia “sóbria, desprovida de qualquer artifício inútil, favorece o olhar na organização dos vazios entre as telas”. Para as paredes, Willmotte escolheu cores sóbrias – tons leves de vermelho, azul e verde – e acrescentou à cena pesadas cortinas de veludo que vão do teto ao chão, abafando ruídos e sussurros, emprestando certa majestade ao ambiente.

As obras apresentadas no Rijksmuseum vieram de coleções particulares e de museus até mesmo do Japão

Ainda nas paredes, nada de vídeos ou longas pensatas curatoriais: em letras de bom tamanho, estênceis trazem breves descrições dos quadros, da vida e da obra de Vermeer, além dos nomes de instituições ou coleções particulares que emprestaram as telas.

O visitante não tem a necessidade de “desempenhar aquela dança constrangedora entre a pintura e sua identificação que frequentemente quebra o ritmo da apreciação”, como escreveu, na plataforma especializada The Art Newspaper, a escritora americana Tracey Chevalier, a autora do romance histórico “Moça com brinco de pérola” (1999), que deu origem ao filme.

Em seu texto, Chevalier destaca que se surpreendeu ao descobrir novos detalhes acerca de Vermeer, como “a frequência com que ele usa o vermelho, às vezes como um realce – fitas no cabelo, um laço numa saia amarela ou um fio de linha numa caixa de costura, ou ainda um item de vestuário. ‘A leiteira’ salta aos nossos olhos pelo azul e o amarelo. No entanto, ela está vestida com uma saia vermelha”.

“A rendeira” (1669-1670)
“A rendeira” (1669-1670)

Pode-se reputar a Chevalier, a seu livro e à consequente adaptação para o cinema boa parte da popularidade que Vermeer, um pintor do século 17, adquiriu nos últimos anos. A “Moça com brinco de pérola” ganhou versões em personagens como Margarida, Caco, o Sapo, e Marge, de “Os Simpsons”, tornou-se objeto de inúmeros memes e sua figura foi recriada à exaustão nas redes sociais.

Mais recentes, outros dois livros trouxeram de novo à tona a figura do mestre holandês, ambos retratando, no entanto, Han van Meegeren, um falsário do século 20, especialista nas obras do pintor: “Eu fui Vermeer”, de Frank Wynne, e “O último Vermeer”, de Jonathan Lopez. Esse último também virou filme, presente no catálogo do Prime Vídeo.

Porém, pouco se sabe da trajetória de Johannes Vermeer, que morreu aos 43 anos, deixando uma viúva com mais de uma dezena de filhos e muitas dívidas. Uma nova biografia, recém-lançada pelo próprio Rijksmuseum, tenta revelar mais detalhes sobre vida e obra do pintor. Escrito por Gregor J.M. Weber, chefe do Departamento de Belas Artes do Museu, o livro “Fé, luz e reflexão [ou reflexo]” revela, por exemplo, a influência da Igreja Católica, por meio dos Jesuítas, sobre Vermeer, que era protestante.

Segundo Weber, os religiosos teriam apresentado ao pintor a câmara escura, um tipo de aparelho óptico que esteve na base da invenção da fotografia. Efeitos luminosos encontrados nos quadros de Vermeer teriam sua inspiração naqueles proporcionados pelo tal dispositivo. Por exemplo: o olho humano automaticamente foca naquilo em que estamos mirando, deixando as demais áreas como que embaçadas. Tal efeito seria visto, por exemplo, no quadro “A rendeira” (1669-1670).

Um mês antes da abertura a exposição já havia vendido 100 mil entradas. Nova cota de entradas só em 6 de março

Para investigar essas e outras questões relacionadas às técnicas de Vermeer, o Rijksmuseum e o museu Mauritshuis, de Haia, estão realizando uma pesquisa conjunta, que envolve curadores, restauradores e cientistas, para examinar a fundo sete pinturas pertencentes a instituições ou colecionadores da Holanda.

Em entrevista ao NeoFeed, Abbie Vandivere, conservadora do Mauritshuis, que em 2018 chefiou um projeto de pesquisa acerca de “Moça com brinco de pérola”, ressalta a relevância de se pesquisar os materiais e métodos de Vermeer para entender como ele conseguiu aqueles “efeitos visuais espetaculares”.

“Também é importante saber como salvaguardar seus quadros para o futuro. Uma porção dessa pesquisa foi incorporada à exposição, mas a maior parte dela será publicada em alguns anos, assim que as informações de diferentes pinturas tiverem sido comparadas”, diz Abbie.

“Ainda que o objetivo primordial da atual mostra não seja compartilhar detalhes técnicos com o público, sabemos que alguns visitantes são muito curiosos acerca deles. No Mauritshuis, percebemos que esse tipo de informação foi muito bem recebida, especialmente com restaurações feitas em frente ao público, em exposições como “Facelifts & Makeovers” [2021-2022].

Pesquisa conjunta sobre às técnicas de Vermeer envolve o Rijksmuseum e o museu Mauritshuis, de Haia

Aos que não poderão visitar “Vermeer” enquanto estiver em cartaz no Rijksmuseum, resta a ótima oportunidade de assistir online no seu site, aos vídeos feitos pelo museu, com narração em inglês do ator Stephen Fry, além de legendas, que se debruçam sobre vida e obra do pintor holandês.

Um dos destaques é a possibilidade de se dar um zoom nas pinturas, ver detalhes dos pigmentos utilizados pelo artista, por meio de fotografias com altíssima resolução. Faltam, é claro, a ambiência, a experiência ao vivo. Mas Vermeer e sua luz estão lá.