Em 1988, em um dos momentos mais marcantes da entrega do 30º Grammy Awards, Little Richard (1932-2020) desabafou no palco do Radio City Music Hall de Nova York. “Vocês nunca me deram um Grammy e eu canto há anos. Eu sou o arquiteto do rock and roll”, disse ele, ao ser aplaudido de pé.
Richard também brincou com David Johansen, ex-líder do New York Dolls, seu colega de palco, na hora de apresentar um prêmio. O cantor apontou para o topete de Johansen, parecido com o que ele eternizou nos anos 1950. “Eu tinha o cabelo assim. Eles pegam tudo o que eu tenho e tiram de mim”, contou, arrancando gargalhadas da plateia.
As cenas integram o documentário “Little Richard: I Am Everything”, uma das atrações da 28ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que vai até 23 deste mês. Com direção de Lisa Cortés, o filme passa a limpo a história de quem sempre brigou para ser reconhecido como o “Originador”, uma espécie de “big bang” do rock.
São muitos os depoimentos de músicos, de personalidades culturais, de estudiosos da cultura negra, de familiares, de amigos e do próprio Richard que endossam a tese da diretora. O cantor, compositor e pianista nunca teve o reconhecimento que merecia porque, na época, o produto cultural negro não era valorizado.
Isso explicaria artistas brancos e a indústria fonográfica administrada por brancos terem se apoderado da história do rock. “Eu sou o inovador, o originador e o rei do rock 'n' roll. Elvis (Presley) nunca compôs uma única canção em sua vida”, afirmou Richard, em trecho de entrevista de arquivo recuperado para o documentário.
“Michael (Jackson) se inspirou em mim. Prince também. Eu descobri James Brown, que foi meu vocalista. Jimi Hendrix foi o meu guitarrista. Ainda influenciei os Beatles e David Bowie”, completou o protagonista, em outro trecho do filme.
O material de arquivo traz imagens eletrizantes de Richard se apresentando ao longo das décadas, com uma fúria até então inédita nos palcos. A sua canção “Tutti Frutti”, gravada em 1955, com o refrão “a-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom”, é quase um marco zero do rock.
Além da tensão racial, o documentário explora também a sexualidade de Richard. Adepto de um guarda-roupa ousado e andrógino, ele admitiu, nos anos 1980, que era “omnisexual”, depois de uma longa luta interna por também se relacionar com homens. Sobretudo por vir de uma família cristã conservadora de Macon, na Geórgia.
Com primeira exibição no É Tudo Verdade neste domingo, 16 de abril, na Cinemateca Brasileira, às 16h30, em São Paulo, a produção revisita toda a trajetória do artista, batizado de Richard Wayne Penniman. Desde a infância, quando já cantava nas igrejas, até a sua morte, em 2020, aos 87 anos, vítima de câncer ósseo.
O foco cai no que há de mais tumultuado e transgressivo no percurso de Richard, justamente para mostrar as várias barreiras que ele precisou vencer. Até porque a proposta da diretora é explorar a origem negra e queer do rock, para ilustrar como o gênero musical mudou o mundo, quebrando tabus e virando um estilo de vida.
De certa forma, é como se o cantor tivesse mais motivos para se rebelar contra o racismo e o conservadorismo das décadas de 1940 e 1950. E isso explicaria a sua postura mais extravagante do que a de seus rivais, como Elvis Presley e Jerry Lee Lewis, com quem Richard disputava o título de “Rei do Rock”.
Tudo de mais polêmico é revisitado no filme, a partir da expulsão de Richard, que foi enxotado de casa aos 15 anos, pelo pai, “envergonhado por ter um filho gay”. E depois que ele se lançou no cenário da música, vieram todos os excessos.
No auge de sua carreira, Richard mergulhou nas orgias e nas drogas, com destaque para o vício por cocaína - o que lhe custava cerca de US$ 1 mil por dia (uma fortuna, na época). Houve ainda a fase em que ele virou pastor, gravando apenas gospel. Ele retornou ao rock, mas continuou pregando o evangelho até o fim da vida em igrejas e eventos.
O documentário sugere que o caminho tortuoso de Richard foi o que levou a indústria fonográfica a podá-lo, por considerá-lo uma ameaça. Cantores brancos teriam conquistado mais espaço na cena do rock por serem menos “perigosos”, embora todos rendessem alguns escândalos na mídia. Como Lewis, que se casou, aos 20 anos, com a sua prima de segundo grau, Myra Gale Brown, de 13 anos.
Daí tanta amargura da parte de Richard. “Quando eu lancei ‘Tutti Frutti’, a canção era considerada racial e, por isso, só era tocada nas rádios de música negra”, reclamou o artista, no documentário. Ele nunca se conformou com o fato de o seu hit ter sido ofuscado pelas versões na voz de Elvis Presley e também de Pat Boone. Ao gravarem a sua “Tutti Frutti”, ambos alcançaram muito mais reconhecimento do que o dono da canção.