A previsibilidade sempre foi uma marca das decisões do governo chinês desde que se abriu à economia ocidental a partir de 1979. O fim do 20º Congresso do Partido Comunista, no final de outubro, seguiu essa tradição ao confirmar a condução do presidente do país, Xi Jinping, para um inédito terceiro mandato de cinco anos

A decisão não foi uma surpresa – já estava decido e era esperado –, assim como a diretriz de substituir o modelo de crescimento acelerado das últimas décadas por outro mais sustentável, baseado no fortalecimento do mercado interno.

Mesmo assim, o mercado financeiro de Hong Kong recebeu o novo mandato de Xi logo após o fim do Congresso do PC com um colapso que há muito não se via, com o preço das ações chinesas caindo aos valores mais baixos desde 2008 e o yuan amargando sua pior cotação em 14 anos.

Há justificativas políticas e econômicas para esse tombo. Do lado político, a súbita humilhação imposta ao antecessor de Xi, Hu Jintao - que foi retirado por seguranças da cerimônia de encerramento do Congresso do PC, diante das câmeras de TV -, reforçou a certeza de que Xi consolidou seu caminho rumo a uma autocracia, o que está causando calafrios no mundo ocidental, principalmente pela agenda militar agressiva do presidente chinês no Mar do Sul da China e também em relação à Taiwan.

Do lado econômico, a economia chinesa enfrenta problemas como a redução das exportações, causada por uma desaceleração econômica global impulsionada pela alta da inflação.

“Embora essa mudança de estratégia chinesa, buscando fortalecer o mercado interno, tenha se iniciado nas gestões anteriores a de Xi, e reforçada por ele, o surgimento da Covid – incluindo a política atual de tolerância zero – bagunçou o processo, que estava mais acelerado”, afirma o economista especializado em China Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre) e sócio da consultoria BRCG.

De acordo com Ribeiro, frente ao choque da Covid, a China acabou voltando ao que ele chama de “velha China” – à parte de infraestrutura, menos voltada à migração dos serviços e ainda olhando a indústria pesada, embora menos que no passado, mesmo porque a volta da demanda externa vai demorar. “Ou seja, a China se volta para o mercado doméstico, mas não de forma tão intensa quanto a transição do modelo sugeriria”, acrescenta.

Outro aspecto que impede um avanço do mercado doméstico é a crise do setor imobiliário, que se transformou num dos maiores gargalos da economia chinesa. Até a recente intervenção do governo, cujo objetivo era diminuir a alavancagem do setor, as incorporadoras sozinhas eram responsáveis por boa parte de dívida da China, o equivalente a 70% do PIB. “O mercado está caindo 45%, de ano contra ano, enquanto as vendas estão caindo menos, em torno de 20%”, afirma Ribeiro.

Segundo ele, esse gargalo do mercado imobiliário causou um efeito colateral impactante: quebrou a forma de acumulação de capital das famílias chinesas. “Isso leva a um choque de confiança profundo, o que dificulta a dinamização da demanda interna”, afirma. “A China vive situação particular, com um erro de diagnóstico do governo: continua tentando sair de um problema de demanda olhando para a oferta, mas isso não vai funcionar, pois a momento de baixa do ciclo econômico parece bastante longo.”

O setor de construção civil, responsável por cerca de 11% do PIB, que antes bombava em Pequim e Xangai, se concentra agora em cidades de províncias menos conhecidas, como Ningxia, Shanxi e Jiangx.

Política Covid zero

O impacto da Covid e da crise da economia global já estavam reverberando na China. De acordo com dados do Banco Mundial, as exportações de bens e serviços como porcentagem do PIB chinês caíram de 36% em 2006 para 20% em 2021. Essa participação é aproximadamente a mesma de 2001, no início da ascensão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O fato é que os antigos índices de crescimento da economia da China, na faixa de 7% a 8% ao ano, ficaram no passado. Com a ampliação das restrições da Covid, a previsão de crescimento da economia, antes estimada entre 5% e 5,5%, devem ficar em 3,5% nos próximos anos. Muito pouco para um país que viu o PIB per capita crescer 40 vezes entre 1990 e 2021 – contra 2,9 vezes dos Estados Unidos.

Para os chineses comuns com 40 anos ou menos, que estão acostumados a viver em um país em ascensão, é um choque ter que se preocupar com um mercado imobiliário instável colocando a poupança em perigo e ver jovens de até 21 anos, incluindo graduados universitários, lutando com o desemprego crescente, entre 17% e 20% nessa faixa etária.

Para os chineses comuns com 40 anos ou menos, que estão acostumados a viver em um país em ascensão, é um choque ter que se preocupar com um mercado imobiliário instável

Para a economista Tatiana Rosito, sênior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), é preciso levar em conta o tradicional planejamento econômico a longo prazo da China para entender a atual estratégia de crescimento menor.

“O momento é negativo, seja pela fraca demanda externa ou pela política da covid, mas essa queda é deliberada, pois o governo precisava corrigir aspectos do modelo econômico, entre eles, reduzir o papel do setor imobiliário, além de diminuir riscos financeiros e as desigualdades sociais”, afirma Rosito. “Os desequilíbrios foram responsáveis pelo grande crescimento, mas foram criados; o governo agora está buscando corrigi-los, reduzindo esse crescimento.”

Segundo ela, agenda ideológica é muito forte, com mais controles. “A base de tudo é o marxismo, só que agora é um marxismo à la chinesa”, observa Rosito. No velho estilo de planejamento a longo prazo, o governo chinês tem como objetivo maior transformar a China numa grande sociedade moderna, na concepção de seus governantes.

“O foco é que, até 2035, a China alcance a renda per capita, hoje de US$ 12,5 mil, de cerca de US$ 24 mil, equivalente à de Portugal, por exemplo, não de países ricos como Estados Unidos”, afirma Rosito.

A especialista do Cebri fez as contas e afirma que, para chegar a esse patamar, a economia chinesa deveria crescer em média 5,5% ao ano até lá. “Como fazer é outra questão; mesmo porque no curto prazo o crescimento será mais baixo”, diz Rosito.

De acordo com ela, o crescimento continua no centro da agenda, só que sob outra perspectiva. “Os governantes locais não estão sendo mais avaliados pelo índice de crescimento da economia, mas sobretudo por metas ambientais e outros fatores, o próprio Congresso do PC reforçou a necessidade de prover segurança em formas múltiplas: segurança alimentar, política, energética, militar, das cadeias produtivas, tudo com resiliência.”

Estratégia à la “Companhia das Índias”

A redução do crescimento econômico chinês acabou prejudicando a ambiciosa agenda geoestratégica de Xi Jinping. O líder chinês vinha investindo pesado em projetos de infraestrutura em vários países por meio da ambiciosa Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI) – uma estratégia de abrir rotas comerciais por terra e mar, conectando Ásia, África e Europa. Iniciada em 2012, logo após assumir seu primeiro mandato, Xi fechou acordo com 60 países.

Na época, Xi parecia estar consolidando uma nova forma de integração global que pode ser chamada de funcional, onde a relação entre as nações não era mais intermediada por entidades supranacionais, como a ONU, e sim por meio de cadeias de suprimentos e de infraestrutura que conectavam os países.

Como observou o pensador indiano Parag Khanna, a China não buscava impor o controle político, e sim expandir a infraestrutura para ampliar as trocas comerciais das quais é dependente, seja para importar matéria-prima, seja para exportar produtos.

A China não buscava impor o controle político, e sim expandir a infraestrutura para ampliar as trocas comerciais das quais é dependente

“Xi emulou a Holanda do século 17, que adotou uma estratégia de domínio comercial por meio da Companhia das Índias, em contraposição à conquista de territórios usada pelas potências coloniais da época, como Portugal e Espanha”, escreveu Khana.

Os projetos saíram do papel a toque de caixa, em parte bancados pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês) – a instituição financeira multilateral criada por Pequim para fazer frente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O megaprojeto, porém, está dando prejuízos. Instituições chinesas tiveram de renegociar US$ 52 bilhões em empréstimos concedidos a países.

“A estratégia da Iniciativa do Cinturão e da Rota não foi bem-sucedida, porque está tendo default, mas se levarmos em conta a projeção de poder político por trás desse investimento, Xi pode topar pagar o preço”, diz Ribeiro, da FGV/Ibr e da consultoria BRCG.

Uma China militarista?

Mais preocupante são as ambições militares. A aproximação do líder chinês com o presidente russo Vladimir Putin, a quem se mostrou solidário na invasão da Ucrânia, tinha como objetivo passar um recado ao Ocidente sobre as ambições militares chinesas em Taiwan. Após a polêmica de possível uso nuclear da Rússia na Ucrânia, Xi recuou – mas o recado principal foi dado.

Para o scholar australiano Bates Gill, do Asia Society Policy Institute e autor de um livro sobre as ambições de Xi - “Daring to Struggle” ou “Atreva-se a Lutar”, numa tradução livre -, o presidente chinês desenvolveu um conceito de legitimidade do PC chinês que serve tanto para o público interno como para os países do Ocidente, em especial os EUA.

“Xi e o PC chinês querem que sejam não só aceitos internacionalmente, mas aplaudidos em muitos aspectos como uma forma vitoriosa de governança, devido ao seu intenso crescimento econômico das últimas décadas”, escreveu em seu livro. “A narrativa da legitimidade é importante para convencer a audiência interna na China (que deve agradecer por seus feitos) e a audiência internacional que eles merecem e devem ser respeitados”, escreveu Gill.

Xi terá de lidar com a mais séria ameaça dos EUA ao seu crescimento econômico: a proibição da venda de chips de alta qualidade para a China

Antes, porém, Xi terá de lidar com a mais séria ameaça dos EUA ao seu crescimento econômico: a proibição da venda de chips de alta qualidade para a China, tanto por empresas americanas quanto por estrangeiras que usam kit americano.

“Foi um golpe bastante duro”, diz Rosito, do Cebri. “Trata-se de uma área de alta tecnologia que os chineses colocaram muitos recursos e conseguiram avanços, mas não chegaram numa autossuficiência, nem de design, nem de manufatura, que permita prescindir de outros países”, acrescenta. Segundo ela, essa agenda de Biden é focada em atrasar os avanços em inteligência artificial e supercomputadores, por exemplo.

Depois de anos investindo na ampliação do arsenal militar, Xi ameaça agora amargar uma derrota no seu maior projeto de longo prazo – a supremacia chinesa em alta tecnologia, prevista no programa Made in China 2025.