O Brasil está a poucas semanas de colocar de pé sua taxonomia sustentável. O instrumento, que servirá como uma classificação para definir o que é ou não sustentável, será lançado em sua primeira versão no fim de agosto, em um esforço para que o país chegue à COP30, em Belém, com um produto concreto em mãos para iniciar discussões.
A demanda pela construção da taxonomia partiu do próprio mercado financeiro, e o governo abraçou a causa por entender a medida como estratégica para o país. O objetivo, com a padronização das classificações dos ativos sustentáveis, é atrair investidores locais e, principalmente, estrangeiros que ainda esbarram na falta de clareza sobre o que, afinal, pode ser considerado sustentável no Brasil e evitar riscos de greenwashing.
“Percebemos um aumento no interesse dos investidores por instrumentos rotulados como verdes e vimos a necessidade de criar infraestrutura para padronização e comparabilidade entre produtos, aumentando a confiança no mercado”, afirma Nathalie Vidual, superintendente de Orientação aos Investidores e Finanças Sustentáveis da CVM, que lançou, em 2023, sua Política de Finanças Sustentáveis, que previa, como uma das diretrizes, a colaboração para desenvolver uma taxonomia soberana.
A construção do instrumento tem sido costurada de forma multissetorial pelo Ministério da Fazenda, que coordena o Comitê Interinstitucional da Taxonomia, reunindo os reguladores CVM, Banco Central e SUSEP, com representantes da sociedade civil, da academia e associações como a Anbima e a Febraban. Foram mobilizadas 240 pessoas e mais de 40 consultores em um trabalho que envolveu também organismos internacionais nesse comitê.
“Essa não é uma agenda de governo, é uma agenda de país. Buscamos construir a taxonomia de forma conjunta, com o apoio de diversos setores, para que todos se apropriem dela como uma ferramenta nacional, necessária para destravar a transição e atrair investimentos”, afirma Matias Cardomingo, coordenador-geral de Análise de Impacto Social e Ambiental do Ministério da Fazenda.
O grande desafio é conseguir equilibrar padrões internacionais com o “sotaque brasileiro”. É preciso criar uma taxonomia que converse com o resto do mundo, em especial com a europeia e demais países latino-americanos, mas que também reconheça especificidades locais, como a bioeconomia e a matriz energética limpa do Brasil.
E o Brasil se propôs a ir além da taxonomia ambiental e também está agregando, de forma inédita em termos de abrangência, a questão social, trazendo a condição de país em desenvolvimento que precisa combater a desigualdade social.
Segundo Marcelo Billi, superintendente de Sustentabilidade, Inovação e Educação da Anbima, há três grandes preocupações do mercado financeiro. A primeira é sobre quem vai ter a responsabilidade de verificar o que é sustentável ou não. A segunda é em relação ao repositório de dados e à garantia da simetria das informações e, por último, não haver um grande custo de observância.
“A experiência europeia com o artigo 9 mostrou o perigo de ter regras muito engessadas e com alto custo para serem cumpridas. Por lá, estão havendo revisões para diminuir o custo de observância. Isso, aqui no Brasil, aumentaria ainda mais o custo de capital, indo na contramão do objetivo de atrair capital para projetos de sustentabilidade”, afirma.
Setores priorizados e fases
Para iniciar a construção da taxonomia, foram definidos oito setores prioritários: Agricultura, Pecuária, Produção florestal, Pesca e Aquicultura; Indústria de transformação; Eletricidade e gás; Água, Esgoto, Atividades de gestão de resíduos e Descontaminação; Construção; Transporte, armazenagem e correio; Serviços sociais para a qualidade de vida e seu planejamento; e Indústrias extrativas (mineração).
Excluindo as duas últimas, todas estão contempladas na taxonomia europeia, colombiana e mexicana. A inclusão da mineração acontece de forma inédita, pelo entendimento de que o setor tem “alta relevância em questões econômicas, sociais e ambientais para o Brasil”. O Chile, outro grande país minerador, também está contemplando incluí-lo em sua taxonomia.
Aqui já se abriu um certo debate por parte do mercado, por entender que outros setores poderiam ter sido contemplados. Para Mário Lewandowski, sócio da AGBI, há omissões preocupantes, especialmente no setor agro.
“Manejo florestal, produção de laranja ou cana-de-açúcar não estão previstos na primeira versão. Isso significa que fundos que investem em agricultura frutífera ou biocombustíveis podem não ser considerados verdes, o que é um contrassenso em termos de impacto ambiental positivo”, diz Lewandowski.
Ele lembra que países com perfil tropical semelhante — como Colômbia, México e Costa Rica — criaram taxonomias que contemplam mais atividades do agro. A exclusão de segmentos tão relevantes no Brasil pode, segundo ele, comprometer a aderência do mercado à ferramenta neste primeiro momento.
Mas a visão dos reguladores e do governo é que era preciso começar de algum lugar, e, com o tempo, a ideia é que todo o PIB brasileiro tenha a sua taxonomia.
“As atividades e setores definidos pela taxonomia são vivos. Precisamos acompanhar a implementação, monitorar a necessidade de revisão dos critérios e das atividades incluídas, além de olhar para novas atividades que surgirem e que não estavam previstas. A taxonomia vai sendo aprimorada conforme a realidade evolui”, afirma Cardomingo, do Ministério da Fazenda.
E, em relação à implementação, a partir da publicação dos cadernos prevista para agosto, entraria a fase 1, em que haverá as instruções para o cálculo dos indicadores-chave de desempenho.
Em uma segunda fase, prevista para o ano que vem, será desenvolvida a plataforma para a centralização do reporte de dados, e haverá a adoção obrigatória desses reportes por parte das empresas listadas e bancos, e voluntária para as demais. A expectativa é que a conclusão do processo para implementação total e obrigatória para todos seja de três anos.
A expectativa das gestoras
A ferramenta vem sendo acompanhada de perto pelas gestoras, que veem no avanço não apenas uma oportunidade de atrair capital, mas também de estabelecer regras claras para um mercado que ainda convive com ambiguidades e práticas de greenwashing.
“A iniciativa coloca o país em uma posição estratégica, especialmente entre países da América Latina, trazendo mais clareza, segurança e oportunidades para o capital nacional e estrangeiro. Atualmente, não é possível medir de fato o que é sustentável, o que traz uma série de dúvidas para o investidor”, afirma Marcelo Mello, CEO da SulAmérica Vida, Previdência e Investimentos.
Para ele, a chegada da taxonomia criará um referencial unificado que dará mais segurança às gestoras para canalizar recursos em projetos alinhados a uma economia de baixo carbono e inclusiva, além de potencializar o fluxo de capital estrangeiro, especialmente em setores como agro e energia.
Para as gestoras que já trabalham com referências internacionais, como o artigo 9 europeu, a classificação mais elevada em termos de compromisso com impacto positivo ambiental ou social, ter uma referência brasileira ajudará a diferenciar melhor o mercado e facilitar a interlocução internacional.
“Hoje, competimos com gestores no Brasil que muitas vezes declaram fundos como sustentáveis com critérios muito mais frouxos. E, tendo uma taxonomia que converse com os padrões internacionais, isso facilita a interlocução com investidores estrangeiros, que passam a ter mais segurança para alocar recursos”, diz Rodrigo Rocha, sócio da gestora Vinci Compass.
Mas, para ele, a grande questão é como isso será implementado. “O diabo está nos detalhes. O que vai ser requerido no dia a dia e quem é que vai checar se as gestoras estão com os critérios aderentes”, complementa.
Há também uma expectativa de que a classificação dê outro formato para como são classificados hoje os fundos sustentáveis pela Anbima: os fundos IS (Investimento Sustentável), criados em 2022. Pela norma, não há regras ditadas para o que deve ser ou não sustentável, mas os gestores precisam ser transparentes com a metodologia que estão usando.
Segundo dados da Anbima, são hoje 32 fundos que usam o sufixo IS, tendo juntos cerca de R$ 5 bilhões sob gestão.
Para Mello, a classificação evoluirá por deixar de ser totalmente autodeclaratória para ter uma padronização, pondo fim à ambiguidade entre a definição do gestor e o que o mercado espera, possibilitando a comparação e tornando possível a punição.
“Com mais clareza do que é sustentável no país, alguns setores podem ser ‘punidos’ diretamente com a escassez de investimentos oriundos desses fundos. Teremos o fim da ambiguidade entre a definição do gestor do fundo em relação a um determinado ativo e passaremos a ter uma visão mais técnica e padronizada em todo o mercado.”
Uma oportunidade de ouro mesmo em meio ao backlash
O governo quer utilizar a COP30, em Belém, como palco para apresentar a taxonomia como ferramenta de implementação do Acordo de Paris, reforçando o protagonismo do Brasil na agenda climática. A expectativa é mostrar avanços na interoperabilidade entre taxonomias, discutir mecanismos de reconhecimento mútuo e impulsionar o mercado de carbono.
“Queremos levar à COP30 um produto concreto que mostre ao mundo o compromisso do Brasil com a sustentabilidade e a transição de baixo carbono, e que possa inclusive nos pôr como referência em algumas questões”, diz Cardomingo, do Ministério da Fazenda..
Já para o mercado financeiro, há uma análise por parte de alguns gestores de que a demanda perdeu força com o backlash nos EUA, com declarações de Trump contra investimentos sustentáveis e grandes gestoras como a BlackRock e grandes fundos de pensão locais se posicionando contra a obrigatoriedade de se fazer investimentos do tipo.
“É verdade que, em um pitch para investidores americanos, atualmente é necessário cortar o capítulo ESG. E que tem se preferido usar termos que estão menos atrelados à política, como transição energética. Mas tudo depende de com quem você quer falar”, afirma Rodrigo Freire, co-head de Energia e Infra da Tivio Capital.
Os EUA, no entanto, estão longe de serem o único bolso do mundo. E não somente na Europa, mas no Canadá, na Ásia, especialmente na China, o tema de sustentabilidade nos investimentos não recuou. E não é por uma questão de propósito, mas de eficiência e rentabilidade.
“Essa narrativa de retrocesso tem mais a ver com o contexto político americano do que com a realidade global. Fora dos EUA, os investidores seguem olhando com seriedade para a sustentabilidade. E não por modismo, mas porque ela gera eficiência e oportunidades de ganho de longo prazo”, afirma Lewandowski, da AGBI.
Ele lembra que práticas sustentáveis no agro brasileiro — como agricultura de baixo carbono, reflorestamento ou uso de energia solar — são, muitas vezes, mais rentáveis do que os métodos tradicionais.
“No Brasil, ser sustentável frequentemente significa reduzir custo e aumentar produtividade. O problema é que nem sempre isso é contabilizado. A taxonomia pode ajudar a mudar esse cenário.”
Para Rocha, da Vinci Compass, é preciso deixar claro que essas estratégias visam um alpha considerável. “Estamos nessa estratégia porque dá um bom retorno, e acima de tudo porque vemos vantagens comparativas únicas no Brasil. O mundo precisa de soluções. E o capital vai continuar procurando onde essas soluções existem.”
Mas, se de fato alguns setores dão mais potencial de lucro que outros, espera-se que, em um segundo momento, a taxonomia possa vir acompanhada de incentivos por parte do governo para focar o capital onde é mais necessário. Como aconteceu com a isenção de imposto de renda para títulos de investimentos em projetos de infraestrutura, as debêntures incentivadas.
“A taxonomia ajuda a centralizar recursos, mas ela sozinha não vai resolver o problema. O governo está trabalhando com estratégias paralelas que estimulem o investidor a buscar projetos aderentes, inclusive com incentivos fiscais”, afirma Cardomingo.