Repensar a história da alimentação brasileira a partir da construção cultural dos ingredientes é a proposta dos professores do Senac João Luiz Máximo da Silva e Sandro Marques. O resultado dessa reflexão está no livro “12 Ingredientes e Uma Dose – Uma Viagem pelo Brasil Através da Comida” (Editora Alaúde, 113 páginas, R$100).
Os ingredientes são mandioca, milho, dendê, arroz, boi, feijão, porco, peixe, açúcar, farinha, pimenta e galinha. Embora sejam apresentados nessa ordem, a ideia não é privilegiar nenhum em escala de importância.
O historiador e sociólogo Luís da Câmara Cascudo, autor de “História da Alimentação no Brasil” batizou a mandioca, por exemplo, de “rainha do Brasil”. Máximo e Marques dão outros contornos para essa obra clássica, trazendo elementos mais contemporâneos de análise, levando em consideração a interferência da imigração e do entendimento dos biomas.
A mandioca foi “domesticada” na região amazônica muito antes da chegada dos portugueses, há 9 mil anos. Para os autores, o tubérculo é uma "planta-civilização". Foi o seu domínio de cultivo que permitiu o assentamento há 4 mil anos de grupos nômades na região.
O crescimento desta populações pelo país fez com que a mandioca chegasse até o litoral. É por isso que os portugueses quando aportam no país no século XVI encontram o tubérculo como base da alimentação indígena.
“Assim como o arroz no Oriente, o trigo na Europa e o milho no México, a mandioca era capaz de alimentar e sustentar uma civilização inteira. O seu cultivo e os diferentes preparos são um grande case de tecnologia de desenvolvimento de alimentos”, explicam os autores ao NeoFeed.
A pimenta, por sua vez, é um caso de "collab" entre brasileiros e portugueses. Os portugueses já conheciam a pimenta do reino (piper nigrum) e a pimenta do paraíso, que vinha da costa da Africa e era chamada de malagueta.
“Aqui, eles conheceram as pimentas da família capsicum e as espalharam pelo mundo. Mas sempre fizeram uma grande confusão lingüística, misturando diferentes espécies e chamando todas de pimenta. A lógica deles era simples: se arde, é pimentas”, contam.
A ideia do livro surgiu a partir de um curso online ministrado pelos autores na Escola Itaú Cultural no ano passado. Por isso, a obra tem cara meio de almanaque, meio de enciclopédia, porque vai em busca de um conhecimento vasto e de curiosidades sobre cada tema.
Para enriquecer o texto, há uma parte iconográfica com desenhos e imagens produzidas por viajantes estrangeiros que revelam a forma como o Brasil era visto nos primórdios, nas gravuras do alemão Johann Moritz Rugendas ou nas pinturas do holandês Albert Eckout.
Há igualmente relatos de Hans Staden, mapas, esculturas, cestaria indígena e referências do século XX com pinturas do modernista Vicente do Rêgo Monteiro.
Máximo e Marques são colegas de trabalho na pós-graduação, no Centro Universitário Senac, onde coordenam dois cursos: “Gastronomia, História e Cultura” e “Cozinha Brasileira”.
Máximo é doutor em história pela Universidade e São Paulo, Marques, mestre em língua e literatura também pela USP. É, ainda, degustador profissional de azeites e participa de júris internacionais, experiência que lhe rendeu o livro “Extrafresco: O guia de azeites do Brasil”, que atualiza a cada dois anos para incluir novos produtores, já que o país experimenta um boom na produção de azeites.
No livro, eles fazem uma espécie de reposicionamento da obra de Cascudo, tido como um papa da história da alimentação no Brasil. O sociólogo colocava em pé de igualdade as três culturas formadoras de nossa identidade culinária (indígena, portuguesa e africana).
Já os autores dizem que essas culturas participaram de forma desigual, em patamares diferentes. E consideram que Cascudo também esquece de mencionar contribuições mais recentes, do século passado, ligadas à imigração e que são essenciais.
“Claro que o Cascudo teve um papel importantíssimo, mas ficam faltando esses dois pedaços pra gente ter uma composição melhor do cenário da cozinha brasileira”, diz Marques.
"Nós construímos o livro a partir de uma discussão que se coloca mais recentemente, que é a de tentar entender os ingredientes. Não os ingredientes em si, mas como uma construção cultural”, completa Máximo.
Outro aspecto interessante do livro é que os autores falam em biomas em vez de regiões. É uma forma mais correta de falar? “Sim", responde Marques: "A tradição culinária tem muito mais a ver com o bioma e com questões culturais de produtos que andaram pelo Brasil. Mas a gente tem que tomar cuidado para não ficar restrito ao ingrediente puro, porque sempre entra o papel do homem na transformação”.
Máximo considera, inclusive, que o bioma é uma excelente maneira de começar a repensar a cozinha brasileira. “A questão do regionalismo remonta ao início do século XX. Gilberto Freyre foi um dos que começou a usar a questão da divisão política brasileira tanto de estados quanto de regiões, né?"
Mas, como destaca, "a gente teve mudanças nas divisões políticas… e se a gente também só reduzir ao bioma, aí não consegue explicar alguns ingredientes que não tem nada a ver com bioma brasileiro."
Como exemplo, ele cita o dendê. “O que o dendê tem a ver com o bioma brasileiro originalmente falando? O dendezeiro veio da África trazido pelos portugueses durante o tráfico de escravizados, se deu superbem na Bahia e, hoje, o maior produtor é o Pará.”
Ou seja, nem tudo se encaixaria na ideia do bioma. “Muita coisa é apropriação humana que depende de cultura, de técnica e de uma série de outras questões”.
Ao pensar os ingredientes do ponto de vista da apropriação cultural, eles elegeram outro três produtos essenciais, a pedido do NeoFeed, que estão no livro e que resumem aqui:
MILHO: Sempre foi importante na alimentação dos povos originários, mas como os portugueses concentraram-se no litoral brasileiro, por muito tempo a mandioca foi considerada mais importante como base alimentar. Em anos mais recentes, pesquisas demonstraram que no interior do país, o consumo de milho era alto e muito relevante.
GALINHA: As galinhas foram trazidas pelos portugueses e serviam de moeda de troca com os indígenas. Eles não criavam as aves para consumo, mas elas se multiplicavam ao redor dos agrupamentos indígenas.
AÇÚCAR: Se o etanol hoje é importante para a economia, o açúcar de cana também era no Brasil Colônia. Seu papel era diferente e foi um motor do comércio de escravos. Nesse sentido, a produção de cachaça também era relevante.