Uma panela não é apenas uma panela… se ela for uma Le Creuset. Fundada em 1925, no vilarejo Fresnoy-le-Grand, no norte da França, por Armand Desaegher, especialista em fundição, e Octave Aubecq, craque na esmaltação, a marca se transformou em objeto de desejo — símbolo de luxo, artigo de coleção.

E há “Le Creuset lovers” espalhados mundo afora. Uma turma capaz de desembolsar pequenas fortunas por uma caçarola ou qualquer outro utensílio de cozinha colorido da companhia francesa. Alguns modelos chegam fácil a R$ 4 mil. Agora, em 2025, no centenário da empresa, eles estão mais alvoroçados do que nunca: ansiosos pelo lançamento das edições comemorativas.

Com operação em 40 países, a empresa exporta para mais de 100. Seu maior mercado é os Estados Unidos, seguidos pela Inglaterra, Alemanha, Canadá e Japão. O Brasil, onde foi inaugurada uma subsidiária em 1997, conta hoje com 14 lojas e, em 2022, passou da 17ª posição para o sexto maior consumidor.

Em termos de “paixão”, porém, os brasileiros não deixam a desejar a ninguém. Por aqui, uma das comunidades mais ativas é As Doidas por Le Creuset, com quase mil seguidores no Instagram. Até Alexandre Marques Pinto, CEO da Le Creuset América Latina, já participou do grupo.

“Queria saber quem eram, o que falavam…. E foi uma grande lição”, diz o executivo ao NeoFeed. “Vi que não é um produto só para o consumidor AAA. Muita gente da classe média também compra.”

O grupo é eclético mesmo. A criadora de conteúdo Andressa Pinto, de 31 anos, moradora da Zona Leste paulistana, economizou para comprar suas três panelas e uns tantos acessórios.

“Juntei para realizar um sonho”, afirma Andressa. “Quando consegui comprar a primeira stockpot [caldeirão de aço esmaltado, a partir de R$ 869], ficava olhando para ela sem acreditar.”

Já a empresária Rosângela Fidelis, de 58 anos, de Florianópolis, perdeu as contas de quantas peças acumulou com a filha, a arquiteta Marina Fidelis, de 30 anos. Há cerca de um ano, quando fizeram a última contagem, eram 70 e poucas panelas, fora as cerâmicas e utensílios — só de chaleiras, são 12, diz Marina. A dupla criou um perfil no Instagram, o Cozinha de Alice, só para exibir os mimos, a quase 750 seguidores.

Aos 40 anos, Josianne Machado, funcionária pública de Goiânia, pôs portas de vidro nos armários da cozinha para que suas Le Creuset ficassem à mostra. Em dezembro do ano passado, panelas com as respectivas caixas, que ela não joga fora, viraram sua árvore de Natal. “Dizem que a panela do centenário vai custar R$ 5 mil. É minha meta este ano”, afirma.

O lançamento a que ela se refere é o modelo Flamme Dorée (“chama dourada”, em francês) uma edição limitada que tem a cor laranja original adornada com pontinhos dourados cintilantes — feitos com ouro de verdade, garante o fabricante. Na França, o modelo redondo pequeno já está à venda por € 319, o equivalente a R$ 2,1 mil.

Essas pequenas edições, com poucas unidades e data marcada para sumir do mercado, são uma jogada de marketing que acerta em cheio o ponto fraco dos colecionadores. Pode ser uma linha em formato de abóbora, como a lançada no Halloween, ou coleções temáticas da Disney, Star Wars e Harry Potter.

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Lançar um produto em outro país e não trazê-lo para o mercado brasileiro, então, é cutucar o fã-clube com vara curta. Para adquirir a panela de arroz do Pokémon, vendida só no Japão, a goiana Josianne fez amizade com um colecionador japonês tão aficionado quanto ela.

Fã que é fã não se importa só com produtos novos. Nos grupos, há um frenético comércio de usados e quem tem peças raras consegue vendê-las rapidinho. Itens vintage ou que pertenceram a celebridades valem um dinheirão. Em 1999, um jogo de panelas amarelas do espólio de Marilyn Monroe foi arrematado por US$ 25 mil na Christie’s.

Andressa Pinto sobre sua primeira panela da marca francesa: "Ficava olhando para ela sem acreditar" (Foto: Arquivo Pessoal)

Na trend “collectable figure”, nem sempre dá para ler a marca, mas o formato do utensílio é inconfundível, como mostram os bonecos da confeiteira Carole Crema e do chef Felipe Bronze (Foto: Le Creuset)

Em comemoração a seu centenário, a empresa salpicou de pontinhos dourados a cor orginal da primeira panela. A edição do modelo "Flamme Dorée", é limurada (Foto: Le Creuset)

Postagens como a do perfil @lezinhas, no Instagram, dominam as contas dedicadas à marca: "Organizadinho! ❤️🧡💛" (Foto: Instagram @lezinhas)

A goiana Josianne Machado pôs portas de vidro nos armários da cozinha para que seus utensílios ficassem à mostra (Foto: Arquivo Pessoal)

Edições limitadas, como aquela em homenagem ao personagem Harry Potter, levam os fãs à louca. Um exemplar foi vendido, em dezembro passado, por US$ 700, em um leião na internet

O primeiro cor-de-laranja da marca foi inspirado na tonalidade do ferro incandescente (foto: Le Creuset)

Atualmente, o catálogo da companhia francesa oferece paneas e utensílios em 21 cores diferentes (Foto: Le Creuset)

Para o ano do centenário, a matriz francesa organizou ações mundo afora. No Brasil, a largada será dada em maio, com a chegada da Flamme Dorée e do livro Le Creuset: A Century of Colorful Cookware, edição luxuosa para ser exibida, claro, na mesa de centro.

Além disso, parcerias com influenciadores já foram estabelecidas. Entre todas as filiais, a brasileira, aliás, é a que mais investe em marketing de influência. “Depois que começamos, pouco mais de três anos atrás, as outras subsidiárias atacaram também”, lembra o CEO. Mas a empresa não precisaria fazer grandes investimentos em propaganda, porque a tem de graça.

Difícil ver um vídeo de receita de chef ou influenciador famoso sem ao menos uma Le Creuset colorida no fundo. Emmanuel Bassoleil, Carla Pernambuco, Claude Troisgros… “Tenho um acervo gigante. Quando vi aquela panela em formato de abóbora, por exemplo, pedi uma para gravar um vídeo”, diz a confeiteira Carole Crema. “Sou uma lecreusette.”

As panelas francesas entraram também na trend “collectable figure”, a brincadeira de usar o ChatGPT para transformar as pessoas em bonecos, com direito a acessórios e embalagem. Carole e Felipe Bronze têm os seus — nem sempre dá para ler a marca, mas o formato do utensílio é inconfundível.

“No grupo que mantenho com meus alunos, no WhatsApp, sempre que alguém consegue comprar uma Le Creuset, corre para mostrar aos outros numa excitação danada”, conta a chef carioca Flávia Quaresma. “Tenho as minhas há três décadas, é um investimento. A gente vai, a panela fica.”

Pioneirismo e inovação

E fica graças ao pendor para a inovação e o tino comercial de duas gerações de empreendedores. A Le Creuset escapou de ser uma fabriqueta qualquer quando Desaegher e Aubecq tiveram a ideia de fugir do lugar-comum. Em uma época em que só se fabricava panela cinza, eles se inspiraram na tonalidade do ferro incandescente para lançar modelos revestidos de esmalte cor-de-laranja. Hoje são 21 cores.

Sabe o conjunto panela + réchaud, aquele próprio para preparar fondue, que só sai do armário durante o inverno? Também foi invenção da Le Creuset.

No fim dos anos 1950, a marca já tinha ultrapassado as fronteiras da França quando passou por um banho de loja. O encarregado de redesenhar a coquelle, a mais tradicional caçarola Le Creuset, foi ninguém menos do que Raymond Loewy (1893-1986), considerado o pai do desenho industrial, criador da icônica garrafa da Coca-Cola.

Todo o pioneirismo dos fundadores, no entanto, não foi suficiente para impedir que a empresa entrasse em declínio na década de 1970.

É nesse ponto que entra em cena outro craque do marketing: Paul Van Zuydam, um sul-africano naturalizado inglês, que comprou a marca francesa, em 1988, livrou a Le Creuset da bancarrota e a transformou no “ai jesus” do mundinho da gastronomia.

Hoje, com 87 anos, ele investiu na modernização e expansão da marca e levou a Le Creuset para além da Europa. Criou ainda novas linhas de produtos, como as de cerâmica. De capital fechado, a empresa vende globalmente cerca de US$ 700 milhões por ano, nas contas dos analistas de mercado. Para 2025, a meta é chegar a US$ 1 bilhão.

Como diz Marques Pinto: “O Paul é fora da curva. Quando ele fez a aquisição, a Le Creuset era basicamente uma fábrica quebrada, uma marca europeia de baixa penetração. As panelas eram vendidas em hipermercados, mas ele teve a sacada de que o produto era um tesouro".