O avanço do streaming como opção infinita de entretenimento tem atingido as empresas de mídia que reinavam absolutas no passado já nem tão recente, seja na TV aberta ou a cabo. Muitas tiveram de se reinventar, mas no caso da Disney – que sempre cativou o público infantil – o problema é mais complexo: o império de US$ 185 bilhões criado há 101 anos por Walt Disney está perdendo o monopólio das crianças.
O Disney Channel, que já foi uma porta de entrada para todas as atrações da Disney, despencou de uma das 10 principais redes dos Estados Unidos, com quase 2 milhões de espectadores médios diários no horário nobre em 2014, para a 80ª posição, com míseros 132 mil espectadores em 2023.
As crianças agora estão recebendo sua dose de TV no streaming. Lá, o YouTube se tornou o novo rei. As crianças preferem passar horas assistindo a vídeos curtos gratuitos em vez de episódios completos de TV e filmes ou de desenhos com Pato Donald e Mickey Mouse.
Em abril, estimou a Nielsen, crianças de 2 a 11 anos assistiram três vezes mais conteúdo no YouTube do que no Disney+. A prova maior da debandada de seu público-alvo já estava desenhada desde 2022, quando a Disney admitiu que mais de 60% dos assinantes do Disney+ eram adultos sem filhos em casa.
“O YouTube é a plataforma preferida das crianças, é ali que encontram suas paixões de maneiras diferenciadas, isso realmente mudou o cenário do entretenimento”, disse Alexia Raven, cofundadora da consultoria Maverix Insights & Strategy, onde estuda o comportamento de visualização de crianças, em entrevista ao portal Business Insider, que fez uma ampla reportagem sobre os desafios da Disney.
A Disney ao menos não teve uma reação negacionista à transição do público infantil para o streaming. Assim como outras gigantes de mídia, a empresa tem incorporado cada vez mais o YouTube em suas estratégias de distribuição, lançando curtas e trailers na plataforma.
Mas o resultado não é ideal sob todos os aspectos analisados. As empresas não controlam a distribuição ou a receita de seu conteúdo, e não está claro se o YouTube funciona como uma rampa de acesso para seus próprios canais, como o Disney Channel servia para a Disney. A única certeza é que as crianças que assistem a clipes da Disney no YouTube podem não precisar do Disney+.
Estrelas infantis
A guinada no interesse do público infantil dá uma dimensão do desafio imposto à Disney, que sempre se firmou por formar gerações de crianças – que depois viraram pais – conectadas aos seus personagens.
O programa infantil mais popular dos últimos dois anos foi “CoComelon”, feito pela Moonbug Entertainment, que vai ao ar na Netflix, mas que conquistou o 5º lugar em entretenimento infantil no YouTube no ano passado.
Outro golpe para a Disney foi o surgimento de estrelas infantis no streaming. No YouTube, canais como "Kids Diana Show" (123 milhões de assinantes) e "Ryan's World" (37 milhões) não dependem da Disney para atrair crianças.
Outras tentativas para recuperar o público-alvo ainda não trouxeram os resultados esperados. No maior investimento da Disney em jogos de todos os tempos, a empresa comprou uma participação de US$ 1,5 bilhão na Epic Games para trazer personagens da Disney para jogos megapopulares como “Fortnite”, onde crianças e jovens gastam cada vez mais seu tempo e dinheiro.
A aposta é que esforços como esses irão motivar as crianças a buscar mais conteúdo nas plataformas da Disney e melhorar os resultados. No segmento de streaming, considerando os serviços de entretenimento e esportes, a Disney teve um prejuízo operacional de US$ 216 milhões no primeiro trimestre do ano fiscal de 2024, encerrado em 30 de dezembro, uma melhora ante a perda de US$ 1 bilhão do mesmo intervalo do ano anterior.
Outra fresta de esperança surgiu com as franquias da Disney. A empresa teve seis dos 10 principais filmes em streaming de 2023, incluindo o popular “Moana, um mar de aventuras”, “Encanto” e “Elementos” (2023), de acordo com a Nielsen. E ainda cativa os fãs com “Star Wars” e spinoffs da Marvel como “Andor” e “Ahsoka”, que dominam o Disney+.
A dependência da Disney em franquias, no entanto, traz riscos, como ficou claro quando os lançamentos da Marvel fracassaram no ano passado. Daí a aposta em sequências, em vez de títulos originais. Em junho, "Divertida Mente 2", da Pixar, tornou-se o maior sucesso de bilheteria do ano, apenas uma semana e meia após seu lançamento
Para lidar com outro problema – a constatação de que o número de crianças nos EUA está diminuindo rapidamente -, o império de Mickey Mouse passou a investir mais no crescente mercado "Disney adulto", que representa cerca de metade do número de visitantes dos parques temáticos – cuja frequência tem aumentado gradualmente ao longo do tempo.
Em tese, ir atrás do público adulto – que, ao contrário das crianças, os anunciantes podem atingir livremente – poderia ajudar a Disney a colocar seu negócio de streaming no azul, mas também a coloca contra um campo maior de concorrentes como a Netflix e a Max, da Warner Bros, plataformas que têm uma vantagem inicial, já que não são vistas como “só para crianças”, como a Disney.
Ou seja, sem um fluxo constante de crianças crescendo com o conteúdo da Disney, os efeitos posteriores para os outros ramos de seu negócio – como parques temáticos e mercadorias – parecem sombrios.
E não custa lembrar que a questão fundamental segue em aberto: as crianças que preferem vídeos curtos no YouTube a episódios e filmes completos viraram um problema que a Disney parece não ser capaz de resolver.